AMOR: PERDAS E GANHOS
Há pessoas fissuradas em livros de auto-ajuda. Esse tipo de literatura deve ter seu valor, mas acho que ajudam pouco no que se propõe. Tudo indica que as relações afetivas, mais precisamente a busca de um amor ou a manutenção dele pra vida toda, são os aconselhamentos mais procurados. No geral, viver não tem receita; é exercício desenvolvido entre erros e acertos, norteados pela capacidade de cada um administrá-la. Naturalmente que a cultura estabelece modos de pensar, agir e sentir, compartilhados secularmente. Nessas bases a gente vai estabelecendo modos de vida particulares, mas legitimados nos processos culturais.
Retomando a questão do amor, inserimos princípios de felicidade. Ser feliz é, de certa maneira, outro exercício que poucos o fazem conscientemente. A idéia do príncipe encantado ou da cinderela, mesmo nestes tempos modernos, persiste. O romantismo não é démodé como se imagina – parece que apenas tem nova roupagem adequada a novos tempos. Ele não sobrevive sozinho; não há limbo para o amor nem para o romantismo. O que há é a necessidade que todos temos de nos realizar na plenitude afetiva. Esta perpassa, quase sempre, por um companheiro ou companheira que divida conosco a dor e a delícia que a vida venha oferecer.
Particularmente não concordo com a “alma gêmea” até que a morte separe. Simples: se a vida não é eterna, como poderemos querer um amor eterno na vida? Contudo, entendemos que as relações poderão durar enquanto durar a vida, mas como conseqüência, não como causa. Talvez a gente possa até passar uma receita de COMO SER FELIZ MUITO TEMPO. Diferente de uma receita de médico ou de bolo, a minha receita é NÃO TER RECEITA! Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, já nos diz Caetano Veloso. Conviver com outra pessoa sob o mesmo teto é misturar modos de vida diferentes. Insere-se aqui um dos melhores conceitos que ajudam as relações a serem duradouras: as pessoas são como são. Simples. Melhor investigar se com quem convivemos se enquadra em: a) os contrários se atraem; b) os iguais se completam. Em ambas alternativas há impasses, daí a necessidade de cada um se encontrar nesse processo. Mas sem a lógica da receita, pois talvez o segredo da manutenção duradoura de uma relação resida na maturidade dos parceiros. O dia-a-dia rompe com o romantismo piegas e dá lugar à vida em preto e branco. “Toda araruta tem seu dia de mingau” – dito popular no nordeste que se adéqua na medida em que remete às idiossincrasias de cada pessoa no seu cotidiano. Uma relação a dois tem discussão, mau humor, cara feia, grosseria, surpresas desagradáveis. Se houver afeto, companheirismo, sexo, cumplicidade, respeito, tudo se dilui e se recompõe no amor. O amor é entendido como a capacidade de altruísmo, de paciência, até mesmo de renúncia, nunca de violentação nem de servilidade!
Descobrir o valor das pequenas coisas – eis um diferencial que ajuda na construção do afeto a dois e por muito tempo. A base do amor não é o extraordinário. As relações se perpetuam em pequenos gestos; em pequenos fazeres; em pequenos quereres. Esses “pequenos” serão exclusivos e não poderemos repassar para amigos, pois não terão efeito nem valia. Fazem parte das descobertas que os casais tem que exercitar diuturnamente. O oposto disto é a ilusão de que só o dinheiro nos traz felicidade; só uma viagem a Europa nos pode fazer mais unidos na relação; só um colégio caro para os filhos, pode contribuir com a estabilidade afetiva do casal, etc. Nada contra o dinheiro, mas há pessoas felizes com poucas condições financeiras. Unir o útil ao agradável seria “o poder”, como se diz na gíria. Mas não é assim que a vida funciona. Querer alterar seu rito é perda de tempo e exercitar o sadismo existencial. Não que não possamos interferir no trajeto da vida, pois seria ignorar nossa capacidade humana de enfrentamento.
Uma relação doentia não é prazer pra ninguém e logo se deve cair fora, sob pena de um futuro imprevisível. Defendemos aqui, questões da relação. Da simplicidade do dia-a-dia que os entes terão que torná-las próprias, singulares. Quando um manual de auto-ajuda aconselha que o amor próprio seja fundamental, está discorrendo sobre uma questão genérica, pois isto serve para a vida independente da relação; quando ele lembra a teoria da plantinha que tem que ser regada todo dia, idem; quando estimula à criatividade, novamente se aplica a qualquer tipo de relacionamento. Como se vê, talvez seja por isto que esses manuais ajudam tão pouco. Eles se esquecem de lembrar que a receita é a falta dela; que cada um busque seu entrosamento com seu par de formas única, exclusiva.
Não lembrar a data do aniversário do cônjuge pode ser visto com gravidade. Depende. Particularmente entendo ser diminuto esse valor. Há pessoas que não se ligam nisto e a gente tem que respeitar, pois certamente, outros valores essa pessoa conduz e que podem ser mais relevantes na relação. Talvez outro segredo nesse emaranhado de emoções afetivas, seja a leitura holística dos atores envolvidos. Se o parceiro além de não lembrar a data do dia em que se conheceram, não se lembrar do aniversário, nem surpreende com um presente, nem convida para jantar fora, nem “faz” diferente na cama, nem divide a educação das crianças, nem te liga para dizer que vai atrasar no trabalho, nem, nem, nem... Melhor separar. Relação duradoura sem cumplicidade não existe. Melhor: existe sob forma de submissão, de salvar aparências. Cada um se vira como pode, desde que os outros não saibam. Resumindo, o que um dia foi RELAÇÃO agora virou RALAÇÃO...
Talvez não seja difícil encontrar RALAÇÕES em nossa volta. Reconhecer isto é, de certa maneira, reconhecer as dificuldades interiores de diversas pessoas que projetam tudo para a relação, mais precisamente para o cônjuge. Romper com toda uma lógica formal de casa, comida, conforto, etc., requer uma base psicológica forte, não obstante a financeira que pesa muito. Na verdade parece que ao ser humano, RECOMEÇAR é sempre difícil. Neste viés a doença da normalidade se instala e tudo fica mais difícil. A NORMOSE é essa doença atemorizadora que toma conta de muitos sem que se perceba e logo nos arruína, fazendo-nos achar que tudo está bem e normal. Deixo a cada um a capacidade de se consultar consigo mesmo. A NORMOSE não é tratada pelos médicos, mas por cada um em particular. Pílulas de coragem, drágeas de amor próprio, diagnósticos de que a vida é mágica, talvez sejam fortes aliados nesse processo. Não esquecendo, claro, que não se faz omelete sem quebrar os ovos; que viver é a conjugação entre a dor e a delícia, entre perdas e ganhos, entre Deus e o diabo na terra do sol...
Recife, 23 de julho de 2010