Condena-se a criminalidade e aplaudem-se filmes violentos. Dois pesos e duas medidas?
Estarrecida a sociedade assiste pela televisão ao crime bárbaro envolvendo o goleiro Bruno. Todos sem exceção são uníssonos em concordar que independentemente da autoria trata-se de um fato terrível, reprovável em todos os sentidos, algo execrável que assusta e enoja por si só, assim como outros crimes que têm ocorrido e que nos têm gerado - literalmente, a sensação de final dos tempos, de que não há mais o que fazer contra toda a criminalidade que nos assola no dia-a-dia.
Ironicamente, em direção oposta, cinemas e telas de televisão têm exibido cada vez mais filmes violentos e sensacionalistas, como se o ato de ser violento ou de praticar crimes, ou de combater a violência – com mais violência ainda, fosse algo virtuoso e digno de aplausos.
Há centenas de filmes que difundem a violência em cartaz nos cinemas brasileiros, trazendo a idéia de que a violência é boa desde que haja motivo. Como exemplo tem-se o filme Encontro Explosivo cujo cartaz de divulgação demonstra o ator Tom Cruise como um símbolo de virilidade. de coragem e de beleza – com sua cabeleira esvoaçando ao vento ao lado da linda Cameron Diaz, detalhe: na propaganda do filme, quase em “close” tem–se a imagem de duas armas de fogo, uma para cada ator (revolver, pistola ou outro nome que se dê), imponentes, cintilantes e com acabamentos impecáveis – provavelmente de última geração, além de uma bela obra, para quem gosta de armas de fogo, obviamente.
Parece pelo visto que se trata do último modelo de arma de fogo da indústria que não sei qual deve ser. Mas será que ninguém percebe que se trata de uma propaganda de arma de fogo?
Passar a imagem de uma arma de fogo como se artigo da moda fosse, é negar sua própria natureza - a saber: a de ceifar vidas, de destruir famílias, de gerar sofrimento, de impedir que muitas questões que poderiam ser resolvidas no diálogo, venham a ser motivos para mais óbitos, mais morte, mais tragédia.
È muita hipocrisia uma sociedade que condena a violência nua e crua que nos assola dia após dia, aplaudir e venerar uma obra cinematográfica em que se mata, explode, destrói, como se fosse a coisa mais normal, uma rotina, algo sem importância – como se fizesse parte da última moda.
Carros lindos, armas cintilantes, atores sensuais, tudo isto só vem a virtualizar o que é execrável.
O crime e a violência não são nada do que exibem estes filmes criados em Hollywood, e que passam a idéia de virtude em ser violento, competitivo, impiedoso - e mais: que impõem o uso de arma de fogo como condição para esta pseudo-virilidade, esta idéia de poder e de plenitude.
O leitor tem alguma dúvida de que indústrias de armas patrocinam estes filmes?
A aparição de uma arma com vários detalhes, com o “design” moderno em um cartaz que faz referência a determinado filme, obviamente aumentará vertiginosamente o comércio deste “acessório” que se tornou artigo de moda.
Mas o pior ainda está por vir.
Assim como as armas de fogo são tratadas como acessórios da moda nestas obras de cinema milionárias, a forma de agir dos indivíduos em sociedade, no geral têm-se tornado cada vez mais um detalhe, um acessório a ser exibido. O livre arbítrio, a escolha de como agir em cada situação não tem espaço dentro do que é imposto como o perfil de quem porta uma arma de fogo. È algo tipo matar ou morrer.
A conduta de cada um esta ali pré-estabelecida e não há escolha. A virtude está ali na tela. Daí surge o risco de uma criança optar pela vida criminosa logo cedo, quando não vê alternativas em ser considerado virtuoso no contexto social senão por aquele caminho.
Ou seja, a conduta não é algo proveniente de uma reflexão, decisão, livre arbítrio, mas um acessório da moda. O agir na moda é ser violento, individualista, indiferente ao próximo. È melhor estar na moda e colocar em risco a própria vida e a dos outros do que ficar “de fora” do contexto.
Assim como a arma de fogo se tornou um artigo da moda, o seu próprio usuário também se tornou, na medida em que naquele objeto tem-se uma norma de conduta, uma forma de encarar a vida.
È uma pena que muitas vezes o usuário de uma arma ou o criminoso só veja que a vida não é como mostra o cinema quando já é tarde; que só veja que a cadeira que se quebra na cabeça do bandido no filme, não se quebra na vida real, mas pode sim matar; que a arma de fogo sempre gera tragédias, perda de vidas, e não o que é exibido nas telas de cinema – algo belo e cintilante que enfeita a cintura.
A aquele que tem suas atitudes atreladas ao que é exibido pela indústria cinematográfica perdeu toda a sua humanidade, pois o ser humano que não é capaz de contestar, refletir, compreender, e que não tem espírito crítico abdicou de sua própria condição de ser humano.
Para Michel Foucault o criminoso é o pilar de sustentação da sociedade burguesa na medida em que é responsável pelo controle social. Segundo o pensador, os criminosos sendo os inimigos sociais têm a função de dividir mais e mais a sociedade, gerando dúvidas e incertezas de todos em relação a todos, e, impedindo, pelo medo, a mobilização do grupo social, que fica temeroso em relação a si mesmo assumindo a função de vigiar e punir.
Indivíduos amedrontados passam a exercer a vigilância recíproca, ao invés de se unirem em busca de um objetivo comum a todos; impedindo a formação de grupos coesos, uma vez que a desconfiança em relação ao próximo, rende ao indivíduo a função de vigília continua em nome da sobrevivência.
Segundo ainda, este grande pensador, o movimento de vigiar e punir iniciara-se na Europa - e, a partir da Revolução Industrial, teve seu maior crescimento, uma vez que os bens em forma de ouro, dinheiro, etc..., foram transformados em bens de produção em geral ( que era o que viria a produzir mais riqueza), ou seja o que antes era guardado “a sete chaves”, foi transferido para o seio da população mais pobre que eram os trabalhadores, o que gerou muito temor dos proprietários destes bens de produção. Foi então criada a figura do criminoso, para que os trabalhadores passassem a vigiar uns aos outros, mantendo seguros, desta forma os bens de produção que lhes fossem confiados para exercício de seu trabalho.
Após o início desta difusão do crime no contexto social, com intenções políticas, foram utilizados vários instrumentos para que o mesmo não viesse a acabar, entre eles o mais difundido foi o cinema, explico: após serem admitidas nas masmorras penitenciárias da França do século passado, as pessoas começaram a ver que o crime realmente não compensava, iniciou-se então um movimento de repulsa ao crime em geral.
Tendo em vista a necessidade da perpetuação da figura do criminoso como forma de garantia do controle social, foi utilizado o cinema como forma de difundir uma imagem romanceada do criminoso, algo que sugerisse a virtude na prática dos atos repugnantes ao convívio social.
Desta forma, inicialmente foi criada a imagem de “Robin Hood” o ladrão que dava aos pobres – vendendo a filosofia “rouba mas faz”; e posteriormente, quando não mais surtia mais efeito esta manobra, passou-se a divulgar a idéia de um criminoso estrategista e inteligente, no estilo ‘Missão Impossível”, para que a idéia de crime não fosse deixada de lado – como algo que não compensa, mas sim como algo virtuoso, que denota grande coragem, inteligência, ousadia, etc..., mas que na verdade tem a única intenção de dividir a sociedade gerando a vigilância recíproca, a divisão social, a desconfiança entre os indivíduos que muitas vezes se encontram em situação semelhante, mas que temem eventual intento criminoso do semelhante, motivo pelo qual se fecham em si mesmos e se omitem em relação às injustiças sociais e à luta por melhores condições de vida.
Com estas considerações vou me despedindo, deixando registrado o quanto a indústria cinematográfica influencia e promove a criminalidade, vendendo a idéia de que se trata de algo normal, virtuoso e belo.