Eu não sou Archidy Picado
Sempre que há uma exposição na Galeria de Arte Archidy Picado, amigos me ligam a pensar que estou expondo algo, e então explico que não sou Archidy Picado, mas outro Archidy – como ainda outro Archidy é meu filho mais velho e que Archidy Picado foi meu pai, cujo nome referenda a galeria de artes da Fundação Espaço Cultural José Lins do Rego (FUNESC), em João Pessoa (PB).
Entre jornalistas e amigos artistas com os quais trabalho, sempre que realizo algo por minha própria conta e risco se faz referência a mim como “Archidy Picado”. Poderia me locupletar da importância do nome de meu pai e de sua história. Mas repito: não sou Archidy Picado, e o que acontece na Galeria de Arte Archidy Picado não tem necessariamente algo a ver com exposições de meus trabalhos, ou dos dele.
Com meu pai, aprendi o valor da humildade e, ao mesmo tempo, a não pensar pequeno – embora, como descobriram as mulheres, certas coisas consideradas “grandes” às vezes não façam o que delas esperamos e muitas pequenas possam nos surpreender.
Num texto de apresentação de meu livro “A Máquina da Felicidade e o Cromossomo Zen”, meu ex-professor pernambucano Jomard Muniz de Britto observou como deve ser difícil para alguém carregar o peso do nome do pai; e ainda mais um pai como o meu que, por excessos de timidez e por ter morrido precocemente, não mostrou aos outros tudo o que era capaz, tendo seus excessos de boêmio feito muitos enxergarem somente seus desajustes com o mundo injusto que, como aquele que o cercava, ainda nos cerca.
“Absurdo”, dizia Archidy Picado das razões da presença da Vida, uma dedução efeito de suas inclinações filosóficas, de sua extrema sensibilidade e inteligência aguçada a percepção das realidades históricas e seus capítulos trágicos; como os capítulos heróicos, também resultados da capacidade de sentir, apreender, da imaginação e das tecnologias que as muitas artes ajudaram os “homens” e algumas mulheres a produzir ao longo da História que escrevemos e reescrevemos de nós mesmos.
Por esta razão, a despeito de saber que somos mais do que nos referendam nossas carteiras de identidade, ou nossos títulos de eleitores, insisto para que, ao citarem meu nome, se refiram a mim como Archidy Picado FILHO, uma vez que, além de muitas semelhanças, há muito que diferencia este que ora vos escreve de meu pai. Por exemplo, o fato de que não fui inteligente (como ele) o bastante para aproveitar toda sua cultura e sua disposição de me ensinar Inglês, o que teria me ajudado a passar algum tempo estudando numa grande universidade dos Estados Unidos. Entre os cinco idiomas que falava, o Inglês era provavelmente o seu primeiro, já que ele dizia pensar em inglês a maior parte do tempo.
Outro ponto que nos faz diferentes: apesar de ter participado de coisas bem mais substancialmente importantes do que eu, engajado que era em certas instâncias da oficialidade (a despeito de suas críticas a burocracias e as ilusões de importância conferidas a status) – como a realização da Fundação Virgínius da Gama e Melo/Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ou de ter sido um dos precursores, na Paraíba, do Modernismo na Pintura – além de Cônsul da República Dominicana, título do qual ele não quis se aproveitar a dar consideráveis saltos quânticos em sua carreira profissional; título que lhe foi outorgado por um seu influente sobrinho pernambucano colecionador de diplomas. Mas, como eu dizia, apesar de seus muitos feitos, meu pai não realizou tantas obras de artes quanto eu que, além de suas influências, herdei um tanto das capacidades de produção artística de meus avós paternos, sendo meu avô um músico e minha avó escritora, embora tenha ela publicado somente um livro dedicado aos seus filhos, noras, netos e netas.
Para completar as referências a interferências de heranças familiares em minha formação cultural, embora não tenha conhecido meu avô e minha avó materna, soube que também eram apreciadores das artes, e então tenho como primo materno o jornalista e escritor Walter Galvão, que também canta (ou cantava), tendo sido um dos integrantes de grupos musicais pioneiros na cidade de João Pessoa nos idos anos de 1970, hoje enveredando pela crítica jornalística, de Arte, pela produção de romances e poemas.
Quanto ao meu pai, expunha seus comentários, contos e poesias em suplementos literários brasileiros. Muitos de seus textos foram publicados no livro/revista CONVIVIUM, de São Paulo, tendo ele tido tempo apenas de escrever um livro de poesias: “A Máquina”.
Quanto a mim, aproveitei o talento herdado de minha avó paterna para escrever já perto de dez livros, tendo publicado seis deles, dos quais tenho muito orgulho. A Música, vinda da genética de meu avô, também me foi estimulada por meu pai que, diferente de mim – que toco violão, guitarra, dou umas cantadas e batidas – tocava piano em casa e, entre rocks, ouvia música clássica.
Dedicado à produção de pinturas e à crítica literária internacional, meu pai dizia que a Universidade atropelara sua vida artística. O fato, porém, é que as possibilidades de realizações artísticas pelas bandas da Paraíba em seu tempo de juventude – ainda um tanto como hoje – eram muito difíceis e, por causa de sua saúde precária, sua indisposição para a realização de grandes viagens o impossibilitasse de mostrar-se ao mundo.
Fico imaginando como meu pai teria hoje aproveitado bem as possibilidades de interações nacionais e internacionais da Internet, por exemplo, a produzir muitas coisas mais além das que deixou espalhadas por aí.
Entre muito do que aproveitei de seus conhecimentos, recebi orientações sobre como desenhar, pintar, ler e escrever à máquina, embora, a partir dos 14 anos, eu tenha enveredado pela produção de histórias em quadrinhos, ilustrações, tenha escrito muitos textos de crítica, ficção, poesias e realizado algumas pinturas. Agora, na era da Informática – como provavelmente também teria feito meu pai – realizo muitas experiências estéticas com os recursos da Computação Gráfica a serviço das artes visuais e da Música.
Diferente de meu pai, dou certa atenção à conservação de minha história artístico-pessoal – talvez mesmo porque, como ele não dera a dele, eu tenha descoberto como é difícil coletar dados sobre a vida e as obras de um artista que não se preocupa com a conservação de sua história, mesmo sendo ele um membro da família. Mas, tinha ele razões, sempre muitas razões para justificar qualquer coisa, principalmente seu desapego a sua história pessoal – uma história nada confortável, tendo ele muitas razões para dela desejar se desapegar. Porque, paradoxalmente, como um simpatizante cristão-existencialista, meu pai fora influenciado pelos ensinamentos de Jesus Cristo tanto quanto pelas perspectivas do filósofo francês Jean Paul Sartre – de quem certa vez traduziu em Recife uma palestra para o Português, filósofo que fora trazido para a capital pernambucana por aquele seu influente sobrinho.
Assim, ele sempre tivera razões para nos explicar certas coisas, razões que eram também de outros que ele conhecera em muitos livros; outros que viveram há muito tempo antes de nós a nos contar sobre coisas que talvez não devêssemos saber – como observara certo colega do psiquiatra desbravador Sigmund Freud acerca de suas pesquisas sobre os conteúdos do inconsciente – sendo uma das certezas inquietantes o fato sobre quão transitória é a vida e quão estúpido o desejo de conservar tudo “para sempre”, seja o que for.
Sei que, por saber isso, agora me parece bobagem estar aqui reivindicando que me chamem assim e não assado. Contudo, como dissera o psiquiatra suíço C. G. Jung, sabemos quem somos, mas não o que seremos, e então, com as facilidades de comunicação via Internet, não sou mais tão mundialmente desconhecido assim.
Graças ao poeta gaúcho/paraibano Lau Siqueira, por exemplo (colaborador do site Cronópios, entre outros), tive um poema traduzido para o italiano a circular pelas telas dos computadores de outros planetários compatriotas. Quem sabe quanto e o que mais de minhas produções anda a circular pelo mundo?
Ainda muitas coisas eu poderia dizer a tornar mais evidentes as diferenças e, além do nome, as semelhanças de meu pai comigo, mas não vou ocupar você aqui com uma leitura de nossas biografias.
Artista como meu pai, contudo, repito que às vezes me incomoda não ser reconhecido como Archidy Picado FILHO. Porque agora as coisas que sinto, penso e sobre que escrevo - como sentem, pensam e escrevem muitas outras pessoas - anda circulando pelo mundo na velocidade da luz por esta grande Rede que, no presente, une virtual e espiritualmente o planeta. E então será preciso ainda saber quem é quem a não sermos confundidos com aqueles que, tendo já provavelmente classificados seus verdadeiros nomes no Livro da Vida, podem fazer muitos confundir-nos com outros piores ou melhores que nós.