Os maridos da Samaritana (SERMO LXXXIV)
OS MARIDOS DA SAMARITANA
De fato, você teve cinco maridos.
E o homem que você tem agora, não é seu marido!
(Jo 4, 18)
Conforme vocês me pediram ontem à noite, ao invés de comentar um tema exclusivamente espiritual, e aproveitando esses quinze minutos de tempo vago antes do jantar, vamos realizar um pequeno exercício de exegese, sobre um texto bíblico, mais especificamente, o diálogo de Jesus com a mulher da Samaria (cf. Jo 4, 4-30). Desse contexto, vamos pinçar o tópico que fala dos “maridos” da Samaria.
Os seis maridos
Curiosamente, é para a mulher samaritana, talvez uma das pessoas (ou a própria nação) mais sofridas, por causa das guerras e invasões, que Jesus se manifesta integralmente como o Salvador. É nesse diálogo que se nota que o sinal messiânico de Jesus não tardava a chegar:
Jesus lhe disse: “Vai chamar teu marido e volta aqui”. A mulher respondeu: “Eu não tenho marido”. Jesus disse: “Respondeste bem: ‘não tenho marido’. De fato, tiveste cinco e aquele que agora tens não é teu marido; nisto disseste a verdade”. “Senhor – disse a mulher – vejo que és um profeta” (vv. 16-19).
A partir de agora, Jesus é mais incisivo. Como um cirurgião ele toca na região afetada, com a finalidade de elaborar o processo de cura. Vamos analisar este trecho pela última frase:
Senhor, – disse a mulher – vejo que és um profeta...
Certas pessoas, duras de coração, ou com os olhos obliterados pelas coisas do mundo ou percalços da vida, só conseguem reagir mediante impactos. Esta foi a pedagogia de Jesus. Ele revelou algo que era bem profundo na vida daquela mulher:
... tiveste cinco e aquele que agora tens não é teu marido...
As pessoas da cidade, por certo, conheciam sua vida, mas aquele estranho, como sabia desses fatos? Só poderia ser um profeta. Sem cerimônia, aquele homem foi chegando, pedindo coisas (dá-me de beber... vai chamar teu marido e volta...), como quem tem autoridade. Só poderia ser um profeta. Os profetas é que tinham essa autoridade. Ou, quem sabe alguém mais que um profeta?
A mulher tinha conhecimento de suas ações que, de uma forma ou de outra, procurava manter camufladas. Talvez se envergonhasse... E só alguém muito especial, com uma ciência muito aguçada ou um dom muito forte poderia ter descoberto seus segredos. Certos fatos de suas vidas, as pessoas gostam de manter sob a capa do sigilo.
Ninguém gosta de se revelar integralmente, muito menos de ver desnudados seus deslizes nem apontadas as suas faltas. Este trecho do evangelho, no qual era falado a respeito dos tantos maridos da samaritana, no passado não era lido nas Igrejas, pois podia suscitar a prática de maus costumes...
A partir de agora a pobre mulher começa a balançar. Reconhece seus erros, aceita as verdades de sua vida e parte para uma reconstrução em nível de fé. Jesus apossa-se espiritualmente dela e ela aceita essa posse. Pronuncia um sim, aceitando o dom de Deus.
No tocante aos seis maridos, cinco passados e mais um atual, os biblistas se dividem. A interpretação antiga trabalhava numa linha mais fundamentalista: tratava-se de uma mulher de má vida, quase uma prostituta. Embora a lei de Moisés permitisse à mulher casar até três vezes, esta havia exagerado, pois tivera cinco maridos e já estava no sexto.
Correntes mais modernas de exegese enxergam nos tantos maridos, mais do que transgressões morais, uma forma exacerbada de idolatria. Na linguagem profética do exílio e pós-exílio, a idolatria é comparada a uma prostituição ou a um adultério, onde a mulher se entrega a esses ou àqueles baalim (ídolos, maridos). Tanto assim que Israel, o Reino do Norte, cuja capital era Samaria, pelos deslizes religiosos enunciados, chegou a ser chamada de esposa infiel de Deus (cf. Jr 3, 20).
Para penetrarmos nessa linha de interpretação, é preciso que se conheça Israel, a partir de sua história e também da geografia. Na elaboração de um raciocínio exegético não basta ler o texto bíblico de forma simples (ou simplória) e apenas “tirar uma mensagem”. A exegese não se faz a partir de contextos individuais, onde cada um pensa de uma determinada maneira. Por se tratar de uma ciência, a exegese se forma a partir de uma consciência universal, onde a opinião é geral, a partir das teses dos exegetas..
Conhecer a história
Depois da morte de Salomão, em 922 a.C., o país se dividiu em dois reinos: o do norte, Israel, capital Samaria; o do sul, capital, Jerusalém. Por estar mais arraigado às tradições religiosas, Jerusalém, antes de capitular, resistiu mais tempo à inculturação das nações estrangeiras. Já a Samaria cedeu mais facilmente, adotando os padrões morais e religiosos dos conquistadores assírios, egípcios e babilônios. A região já havia assumido, no passado, mesmo antes da divisão do reino em dois, a parte mais negativa da cultura dos invasores filisteus.
Há ainda a se considerar que Jerusalém ficava nas montanhas da Judéia, enquanto a Samaria ficava localizada em região mais plana, mais acessível aos ataques estrangeiros. Por esta razão ela foi atacada em primeiro lugar.
Por razões políticas e religiosas, havia uma animosidade histórica, bem antiga, entre judeus e samaritanos, que remonta desde a época do exílio, no século VIII a.C. Na literatura sapiencial, o siracida (Joshua ben-Sirac), no livro do Eclesiástico, transcrevendo uma das tantas abominações relatadas pelo Senhor, ajuda, no séc. II a.C. a acirrar os ânimos:
Há duas nações que minha alma detesta, e a terceira nem é
nação: os estabelecidos na montanha de Seir, os filisteus, e
o povo insensato que habita em Siquém (Eclo 50, 25s).
Os samaritanos, como sabemos, eram como que um povo “mestiço”, fruto de muitas cruzas provenientes do tempo das dominações estrangeiras. Segundo segmentos confiáveis da literatura daquele tempo, a maior parte dos judeus sentia repugnância em manter relações sociais e religiosas com os samaritanos, alegando que estes não tinham o sangue puro dos hebreus, nem seguiam a religião judaica.
Depois que a Samaria caiu, sob o ataque de Teglat-Falasar, em 721 a.C., grande parte da população foi deportada para a Assíria e substituída por colonos daquele país (cf. 2Rs 17,24; Esd 4,2.9). Desta forma, foi se formando no antigo Reino do Norte uma população mista, que deu origem a uma nova ordem social e religiosa, onde se mesclavam os costumes judaicos com o culto aos deuses do país colonizador. Até hoje, século XXI, o judaísmo praticado pelo povo da região difere do culto das demais localidades do país.
Quando os judeus voltaram do cativeiro da Babilônia, movidos por um incontrolável desejo nacionalista de reconstrução, se depararam com a Samaria degenerada pelo pecado e pela idolatria. Por conta disto, os reformadores Zorobabel e Josué rejeitaram a oferta dos samaritanos para ajudar na reconstrução do templo de Jerusalém (cf. Esd 4,1-10).
Enquanto durou a perseguição promovida por Antí¬oco Epífanes, em 175 a.C. (período de dominação grega) contra os judeus, os samaritanos declaravam não pertencer a Israel, e tentavam agradar ao tirano, mostrando desejos de que o seu templo do monte Garizim fosse dedicado ao deus pagão Júpiter.
Os profetas denunciam
Por conta dessa rivalidade, grande parte da produção profética daquela época compara o mau procedimento do povo samaritano, acolhendo os ídolos dos povos dominadores, à mulher que trai o marido (Deus) para se entregar aos amantes (os ídolos). Cito agora, para que todos acompanhem, alguns textos dos profetas que execram a idolatria da Samaria e de Jerusalém, utilizando muitas vezes a linguagem metafórica da prostituição, como sinônimo dos cultos aos deuses pagãos.
Mas, para cúmulo de todas as suas maldades, ai de você! – oráculo do Senhor Javé – por todo canto você fez um nicho e um lugar alto; construiu um lugar de pecado nas encruzilhadas, desonrando sua beleza, abrindo as pernas para qualquer transeunte e multiplicando assim seus atos de prostituição. Você se entregou também aos egípcios, seus vizinhos corpulentos, só para aumentar suas prostituições e para me insultar. Então eu estendi a minha mão contra você, reduzi seus alimentos e a entreguei nas mãos de suas inimigas, as cidades dos filisteus. Até elas se envergonharam do seu comportamento indecente. Depois você se tornou prostituta dos assírios, porque ainda não estava satisfeita. Por mais que se entregasse à prostituição, você não se saciava. Com os caldeus você aumentou ainda mais sua prostituição na terra de Canaã, mas nem com isso você se dava por satisfeita. Que ódio que eu tinha de você – oráculo do Senhor Javé – quando você fazia tudo isso, prostituta descarada! (Ez 16,23-30).
Aqui, para esclarecimento, há que se salientar algumas expressões usadas no oráculo de Javé:
• nicho, lugar alto e encruzilhadas
trata-se de locais onde os pagãos erigiam altares aos ídolos;
• assírios, egípcios, filisteus e caldeus
quatro nações que dominaram a Samaria, impondo-lhe suas
divindades; como o povo aderiu a esses cultos, Javé se
considerou traído qual um marido cuja esposa se entrega a
amantes; haveria ainda os filisteus e os romanos.
Quanto ao pagamento aos amantes, denunciado mais de uma vez, há que se considerar uma realidade política daquele tempo, chamado de tributo. As nações mais fortes, no caso, a Assíria e a Babilônia (caldeus) não atacavam as mais fracas (a Samaria) de imediato, mas cercavam-nas por um, dois ou três anos. Nesse período, cobravam um tributo (em geral, ouro, prata e cereais) para não atacar. Como a Samaria não possuía ouro, trocava (com o Egito) o trigo destinado para o pão do povo, por ouro, para entregá-lo aos inimigos. Depois de algum período, quando a nação subjugada não tinha mais com que pagar o tributo, era então invadida de forma violenta e devastadora. A esse pagamento de tributo ao inimigo que o profeta comparou com uma mulher pagando a seus amantes.
Para as prostitutas se costuma pagar. Você, porém, é que pagava a todos os seus amantes. Você é que lhes pagava para que eles, de todos os lados, fossem à sua casa procurá-la como prostituta. Você fazia o contrário das outras prostitutas: ninguém a procurava; era você que pagava, não eram eles que lhe pagavam. Você era mesmo diferente das outras! (Ez 16,33s).
Por conta das invasões estrangeiras, Samaria foi destruída em 721 a.C. Tentando livrar-se dos invasores, as duas capitais (Samaria e Jerusalém) não vacilaram em pagar altos tributos e assumir ideologias, costumes e crenças dos dominadores. O alto preço dessa corrupção dos governantes foi assimilado pelo povo que teve seus ideais traídos, a liberdade roubada e a vida explorada. Para completar, vamos ler mais alguns oráculos proféticos que falam da corrupção da Samaria e que podemos apropriar ao assunto dos “maridos” da samaritana.
Mas puseste tua confiança na beleza e te prostituíste graças à
tua fama. Tu te oferecias deslavadamente a qualquer um que
passasse e lhe pertencias (Ez 16, 15).
Todos os teus ídolos (da Samaria) serão destroçados, todos os seus ganhos, queimados pelo fogo. Arruinarei todas as suas imagens; porque foram adquiridas com salário de prostituição e em salário de prostituição serão convertidas (Mq 1, 7).
Desta forma, a maioria dos biblistas modernos apropria à idolatria da Samaria os possíveis vícios de comportamento da mulher. Os cinco maridos passados podem representar não cinco homens que possuíram a samaritana, mas cinco deuses (cf. 2Rs 17, 30s) ou práticas de idolatria, representada por cinco culturas que dominaram a Samaria, por seis séculos, impondo-lhe seus costumes, culturas e divindades, a saber: os egípcios, os assírios, os caldeus, os filisteus e os gregos. Todos eles impuseram suas crenças, seus padrões duvidosos de moral e – sobretudo – seus sistemas religiosos.
Na Antiguidade, no Antigo Testamento, a divindade cananéia mais combatida pelos profetas de Israel era baal. Ora, a palavra “baal” tem vários significados, entre eles, dono, chefe, marido. É por esta razão que os estudiosos fazem a ilação da idolatria à relação marital. Toda a idolatria (sentido religioso) é como um adultério (sentido moral).
Subsiste uma dúvida: quem era o atual marido, o sexto? Dentro do contexto acima, a pergunta parece fácil de responder. A dominação, no tempo de Jesus, em toda a Palestina era exercida pelos romanos. A eles é atribuída a idolatria do sexto marido. Também os conquistadores vindos da Itália impunham uma adoração incondicional aos seus deuses, especialmente ao imperador e outras tantas divindades oriundas do panteão romano e aculturada pelos gregos. Uma religião idolátrica imposta, era como um “marido”:
... e aquele que agora tens não é teu marido (v. 18).
Na verdade os deuses pagãos, impostos pelo imperialismo dos conquistadores de todos os tempos, não eram dignos de adoração por parte do povo, mas sim Javé, o Deus único. Os romanos comiam carne de porco. Como estes eram uns animais impuros para os judeus, os conquistadores tinham seus chiqueiros longe de Jerusalém, exatamente na região baixa da Samaria.
Meditação realizada num “acampamento de espiritualidade”, realizado na cidade de Santa Maria/RS, em março de 2010. O autor é Biblista, Doutor em Teologia Moral e Escritor. Escreveu e publicou mais de cem obras, no Brasil e exterior, entre elas "As grandes civilização do Oriente Médio" (Ed. Ave-Maria, 2006) e “História de Samaritanos”, em preparação.