João Batista veio na frente
JOÃO BATISTA VEIO NA FRENTE
Ele terá na sua mão uma pá: vai limpar seu terreno, e recolher
o trigo no celeiro; mas a palha ele vai queimar no fogo que não
se apaga (Lc 3,17).
João é um dos santos mais populares do mundo, mas nem tudo em sua vida é folclore, como muitos supõem. Ele é “a voz que clama no deserto”. E é muito mais que isto: é aquele que incentiva o povo a “preparar os caminhos do Senhor”, não só naquela fase adventícia do cristianismo, mas em todos os tempos. Desde a novidade do batismo com água do rio Jordão até seu martírio sob Herodes, ele dá um autêntico testemunho de profeta e de apóstolo.
Tudo começa a partir de sua concepção, que é revestida de contornos miraculosos, uma vez que sua mãe era estéril. Quando João nasce, reconhecendo a intervenção divina nesse evento, seu pai diz: “ele se chamará Yohanan”, que quer dizer “Javé foi misericordioso”. Yohanan (João) tornava-se assim, uma dádiva de Deus, para seus pais, para o mundo e para o cristianismo que começava a se instaurar.
O Antigo Testamento está como que recheado de profetas e suas profecias, cada um deles anunciando fatos correspondentes a esse ou àquele tempo. É interessante observar que o Senhor, conforme a época, chamou homens para o anúncio de alguma circunstância, como nas fases que antecederam o grande exílio da Babilônia, assim como nas etapas anteriores e posteriores àquele marcante e doloroso evento da história de Israel. Para cada evento da antiga história havia o concurso de um profeta, alertando, ensinando, denunciando.
O profetismo israelita, que geraria arquétipos religiosos e culturais na sociedade judaico-cristã, traz consigo uma realidade progressiva e concêntrica. Ele tem início como um processo cultural, assume contornos históricos e só depois fixa-se como atividade religiosa. O profeta, que no século VIII a.C., por exemplo, era, em nome de Deus, um opositor do governante, dois ou três séculos antes, era um mero “funcionário público”. Sua trajetória identifica-o, no começo como um apoiador (cultural), passando para um inconformado (histórico) até tornar-se um opositor (religioso). Assim, o perfil do profeta se muda, de funcionário da corte em místico, que passa zelar pelos interesses de Deus e dos excluídos.
Emerge, a partir dessa mudança, o que se poderia chamar de verdade profética que, no dizer do célebre teólogo francês L.Monloubou, “pode ser expressa com uma palavra ou duas: homogeneidade, ou melhor, continuidade. Homogeneidade ou continuidade na fé, na proclamação do único e verdadeiro Deus... Na história sobretudo; na concordância entre a palavra e a realidade, que com o tempo se revela aos poucos”.
A concepção de João Batista (cf. Lc 1,5-25) é miraculosa, a partir de sua mãe, Isabel (Elišabet) uma mulher, qual Sara, que não podia dar à luz. A esterilidade das mulheres bíblicas, depois transformadas em fecundas, representa a humanidade sem Deus, posteriormente contemplada pela graça da maternidade. Elas se tornam férteis a partir da adesão ao projeto divino, cuja etapa nelas se cumpre.
Ao dizer a Zacarias que o menino seria grande diante do Senhor (v. 15a) o anjo está dando uma noção do que será seu trabalho de precursor, legítimo abre-alas do Messias, consagrado ao seu serviço como os antigos ascetas (cf. Nm 6,3s), amado desde o ventre materno, onde receberá, como Jeremias (1,5) o Espírito Santo. Sua missão profética é a de anunciar a conversão, reconciliar o povo com Deus (v. 16) e preparar – com o poder de Elias – o povo para receber o Messias (v. 17).
A Escritura diz (v. 80) que “o menino ia crescendo, e ficando forte de espírito. João viveu no deserto, até o dia em que se manifestou a Israel”, vestido de pele de camelo, cinto de couro em volta da cintura, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre (cf. Mt 3,4). Ele é sobrenaturalmente destinado a ser o profeta do altíssimo, aquele que vai à frente do Senhor para preparar-lhe os caminhos (v. 76).
Hoje se convencionou chamar o filho de Zacarias e Isabel de “João Batista”, unindo seu nome (João, Yohanan) e sua atividade (batista, aquele que batiza). Em Portugal e no Brasil há muita gente batizada e registrada como “João Batista”. Na verdade, a expressão correta seria João, o batista. Mas, o que fazer, se o povo uniu o nome do santo à sua atividade missionária?
João é profetizado em Malaquias (Ml 3, 23s), tornando-se o “novo Elias” que vem preparar o dia da justiça de Javé, que vai acontecer em Jesus. Como o Pai coloca no Filho o seu afeto (cf. Mt 3,17), na encarnação instaura-se um novo tempo de redenção e de aliança, ficando banida toda e qualquer idéia de destruição.
Pois num determinado momento, aquele homem, vestido de roupa de pelos de camelo, até então retirado do mundo, veio pregar, na região do Jordão. Ele exortava o povo a uma conversão ao Reino dos céus (cf. Mt 3,1s) que se revelava iminente. Seu discurso forte e intimorato, atuando mais na linha da denúncia do que da pregação religiosa, buscava exortar, o povo e as autoridades da Judéia à conversão, à partilha e à justiça (cf. Lc 3, 7-14). A pregação de João, diferente a tudo o que se vira até então, semelhante às invectivas dos profetas pré-exílicos, viria abrir um novo capítulo da espiritualidade da humanidade.
Se fosse hoje, o emissário de um grande governante ou de algum político de destaque, procuraria tirar proveito e auferir vantagens desse serviço, apresentando-se como representante, assessor ou preposto, tentativa de faturar algum benefício presente ou futuro, dando um “carteiraço”. Não é assim que acontece? Algumas pessoas, às vezes portadoras de uma autoridade mínima, simbólica ou presumida, assumem ares de grande celebridade. Pois com João foi diferente. A vaidade, o orgulho ou até mesmo a soberba, jamais estiveram presentes em João, e isso é possível comprovar pelos relatos evangélicos.
A verdade é que João, em algumas oportunidades, é confundido com o próprio Cristo, pelo povo, ávido de um salvador. Por sua austeridade e fidelidade cristã, ele desfaz qualquer mal-entendido, afirmando não ser o Messias (cf. Jo 3,28), confessando-se indigno até de desatar a correia de sua sandália (cf. Jo 1,27).
Quando seus discípulos hesitavam, sem saber a quem seguir, ele apontou em direção ao único caminho, demonstrando o rumo certo, ao exclamar: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (cf. Jo 1,29).O Batista é tão-somente aquele que, por revelação divina, apontou Jesus como o salvador do mundo, declarando-o maior do que ele, apesar de ter aparecido na história depois dele (Jo 1, 15). Cada um tem a sua missão. A de João foi anunciar o Messias; Jesus, a de implantar o Reino no meio da humanidade e abrir os caminhos que levariam seus seguidores à casa do Pai. E a nossa, qual é?
Sim, pois a reflexão a respeito da vida de um santo de atitude tão significativa junto ao projeto de Deus, perderia seu sentido se não nos conduzisse a uma profunda reflexão a respeito de nossa missão. Pois a nossa missão, de batizados e membros da Igreja-comunidade, é a de levar adiante a boa notícia da salvação.
É fundamental ver a pessoa de João como um homem escolhido por Deus para ser o precursor do Messias que havia de chegar em breve. As antigas promessas a Israel agora se tornariam realidade, e o menino João, por anunciar o tempo da fartura e da alegria espiritual seria motivo de gozo, com muitos se alegrando por seu nascimento (cf. Lc 1,14). Ele é considerado o maior de todos os profetas, porque pôde apontar aqueles de quem falavam todas as profecias. Em outras palavras, ele profetizou e viu realizarem-se as suas profecias. A grandiosidade da missão de João transcende sua pessoa.
O mundo está cheio de vozes. Todos os dias há vozes modernas, antigas, sedutoras, quase todas elas dizendo e sugerindo a mesma coisa a nossos ouvidos. Por vivermos entre crentes e ateus, ouviremos a palavra dos homens, mas seguir só à Palavra de Deus. As ideologias, o hedonismo, os apelos de consumo oriundos do poder econômico dominam a mídia, que reproduz os discursos daquelas instâncias, buscando “fazer a cabeça” ou “formar opinião”. A voz de João Batista clama até hoje contra as trevas, do pecado e do egoísmo. O profeta do deserto clama para que o mundo se abra à luz da palavra de Deus.
João vive da luz para a qual está voltado, e assim forma como que um só organismo com ela, do mesmo modo que o Logos forma uma só coisa com Deus e, nesse movimento de adesão ou aderência, ele leva os outros a crer, a participar desse mistério com ele.
A voz que clama no deserto traz consigo o mesmo clamor do povo no Egito, as interpelações do evangelho de Jesus e a denúncia da Igreja profética de todos os tempos, contra a insensibilidade do mundo, a aridez dos corações, a anestesia das consciências, e a proeminência do egoísmo. Em seus discursos fortes, a partir do início de sua vida pública, João denuncia a injustiça, exortando todos à conversão, à partilha e à penitência.
Desde a antigüidade, as Escrituras falavam na exigência de um coração puro, como requisito dos filhos de Deus: “Quem pode subir à montanha de Javé? Quem pode estar no seu lugar santo? Aquele que tem mãos inocentes e coração puro, que não confia nos ídolos nem faz juramentos falsos” (Sl 24, 3s).
Sem medo das represálias, João acusou o poderoso Herodes Antipas. Em função desse confronto, mais tarde, João seria preso e degolado por denunciar a vida imoral do governante. A verdade é que o rei repudiou sua esposa para viver com sua cunhada Herodíades, que era mulher de seu irmão Felipe. Como verdadeiro profeta, ele que viera para aplainar os caminhos por onde chegaria o Messias, João acusou o monarca de adultério, imoralidade e comportamento inadequado. Essa atitude revela a obrigação do seguidor de Jesus em acolher a verdade e denunciar a injustiça.
Não é próprio do cristão o ficar quietinho, acomodar-se, temer represálias ou ter medo de ficar malvisto. Cristão, fiel à doutrina do Mestre, não deve se acovardar nem se calar. Ser cristão é não ter medo de se incomodar. Esta é uma das tantas lições que João Batista nos deixou.
As Escrituras afirmam que muitas pessoas saíam de Jerusalém ao encontro de João Batista. Esse sair de Jerusalém tem um significado real e ao mesmo tempo metafórico. É real porque narra que os ouvintes saíam efetivamente da cidade, na direção das barrancas do Jordão para escutar a palavra do novo profeta. É metafórico à medida que dá a entender que o templo e o culto sacerdotal de Israel já não atendiam as exigências do povo, que buscava algo mais consistente, para melhor acolher a novidade do Reino de Deus que estava chegando (cf. Sl 96 – 98).
A figura da voz que clama em favor dos caminhos de Javé é oriunda do antigo Testamento, nos tempos proféticos (cf. Is 40,3ss). João veio na frente para anunciar, como boa notícia, a chegada da Luz.
Por que a voz do Batista clama no deserto? Qual o objetivo desse clamor? O que é o deserto? Tudo tem sua gênese nos fatos de os caminhos que Deus criou foram entortados e desnivelados pela injustiça que gera morte e exclusão. Desde a antigüidade, os profetas ergueram a voz contra todo o tipo de injustiça, que era uma flagrante violação à vontade de Deus. João era um profeta autêntico, por isso não poderia calar-se. A “comissão” dos fariseus que foi saber por que João batizava, já imaginava o advento de um novo tempo.
A boa notícia de libertação dos pobres, para eles, que eram opressores e hipócritas, iria se converter numa péssima notícia. Batizar, e eles sabiam disto, significava aderir a alguém, assumir algum projeto, abraçar alguma crença. O novo batismo, preconizado por João, traz consigo ingredientes escatológicos. A menção do machado encostado à raiz das árvores faz alusão a um juízo iminente. Cortar e jogar ao fogo é o destino das plantas inúteis.
O povo estava esperando o Messias. E todos perguntavam a si mesmos se João não seria o Messias. Por isso, João declarou a todos: “Eu batizo vocês com água. Mas vai chegar alguém mais forte do que eu. E eu não sou digno nem sequer de desamarrar a correia das sandálias dele. Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo. Ele terá na mão uma pá; vai limpar sua eira, e recolher o trigo no seu celeiro; mas a palha ele vai queimar no fogo que não se apaga” (Lc 3,15ss).
O ato de desamarrar a correia das sandálias é um gesto antigo, entranhado nas tradições culturais de Israel, revelando uma relação de submissão, inferioridade e ao mesmo tempo de fidelidade. Os alunos amarravam e desamarravam as correias das sandálias dos mestres e rabinos. Num outro viés da tradição, aparece, nas relações familiares, os mais jovens executando aquele serviço nos mais velhos ou mais importantes. João era parente de Jesus, mas considerava-se subalterno dele.
Durante seu curto tempo de vida pública, João pregou uma radical, metánoia, ou seja, uma mudança de vida, a partir do coração (cf. Lc 3, 10-14). Como sinal sensível e externo dessa mudança ele preconiza o batismo na água (uma novidade até então), assim como o desapego aos bens. É imperioso deixar as trevas e comprometer-se com a luz. Testemunhar é fundamental, pois torna o Cristo visível no mundo. O fato de pregar no deserto tem dois significados.
Primeiro, João provinha do deserto. Ele estivera lá recolhido, preparando-se para a missão. Ele é como que egresso de algum deserto da região, e a partir de lá faz fretenir sua voz. Depois, considerando-se a maldade e a indiferença humana, cada coração tornou-se um deserto de insensibilidade. Ao pregar a corações vazios e omissos, ele reconhece que está pregando num deserto de iniqüidade.
Num certo ponto, o evangelho descreve que João batizava em Betânia, do outro lado do Jordão (cf. Jo 1,28). Trata-se de um lugar simbólico, como que uma acomodação bíblica, no intuito de preparar a narrativa de um fato superveniente, pois, na verdade, olhando os mapas, podemos constatar que a cidade de Betânia, na Judéia, não fica às margens do Jordão, mas uns vinte quilômetros para dentro. É no dia seguinte, neste mesmo lugar onde João batizava, que ele iria apontar Jesus, como o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo (v. 29).
A transposição do Jordão tem raízes históricas. No êxodo, Josué cruza o Jordão para tomar posse da nova terra (Js 3), instaurando assim um nova vida política para Israel. Na plenitude dos tempos, Jesus atravessa o rio para dar início a uma vida nova, rica, abundante (cf. Jo 10,10).
A eficácia do batismo de João era real, mas ainda não-sacramental, pois dependia da vinda do Messias, que a tudo iria purificar pelo fogo. A partir daí, a água passa a ser um novo elemento litúrgico de conversão (cf. Lc 3,3), através da qual o precursor quer dar a conhecer o mistério da salvação, pelo perdão dos pecados (cf. Lc 1,77).
Nessa perspectiva, na abertura do cristianismo, João batizou muitas pessoas, inclusive o próprio Jesus (cf. Mt 3,13-17; Mc 1, 9ss). Embora sem pecado, como se verá adiante, Jesus submeteu-se ao batismo de João, no qual identifica um instrumento preparatório, fruto da justiça e da misericórdia de Deus, para a salvação de todos, e inauguração do Reino no meio dos homens. Sem querer usurpar a práxis messiânica de Jesus, João alertava que viria um outro, para ministrar um batismo definitivo: “Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3, 11).
Esse batismo de conversão que João preconiza, como uma terraplanagem dos caminhos pelos quais Jesus vai passar, é a conseqüência da irrupção do Reino dos céus no meio da humanidade, quando as relações entre as pessoas serão radicalmente transformadas, numa mudança para melhor. Jesus não se instala em corações que destilam ódio nem em espíritos repletos de indiferença e egoísmo. Desde o Antigo Testamento, a fidelidade, a adoração filial e a prontidão à vocação são requisitos fundamentais para que Deus arme sua tenda no meio do seu povo (cf. Ez 37, 27s).
O testemunho de João, por ocasião do constrangedor interrogatório a que foi submetido pelos sacerdotes e levitas enviados de Jerusalém, clareou a perplexidade do povo. Como todas as pessoas em Israel estivessem naquela expectativa, e como todos perguntassem em seus corações se ele era o Cristo, João, para que não pairem dúvidas quanto à sua missão de mero precursor, fez a distinção entre seu batismo (com água) e o que Jesus vem ministrar (no fogo e no Espírito). O testemunho de João Batista soa como um prenúncio do compromisso dos batizados em confessar sua fé, ou seja, em testemunhar o Cristo.
Mais adiante, o profeta ressalta o aspecto escatológico dos tempos do Messias, evidenciando a chegada de um tempo de julgamento, que será o reflexo do comportamento das pessoas. Não vai adiantar uma fé alegórica (como a dos fariseus de todos os tempos), mas uma proposta concreta de vida, onde a partilha, a fraternidade, o perdão e a gratuidade do amor sejam as tônicas. A figura do machado encostado à árvore é sinal de graça, mas também de julgamento.
Ele terá na sua mão uma pá: vai limpar seu terreno, e
recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele vai queimar
no fogo que não se apaga (v. 17).
Sabe-se que Herodes Antipas temia, havia muito tempo, que o movimento messiânico se transformasse numa séria ameaça para ele, numa insurreição contra seu governo cruel e corrupto. Cedo ou tarde, teria de se livrar de João, pois sua pregação destemida fazia o movimento crescer e as pessoas acreditarem nele. Semelhante a de Jesus, a pregação do Batista estava fundamentada em quatro pontos gerais:
• a proximidade do Reino de Deus (cf. Mt 3,2);
• a iminência do juízo (cf. Mt 3,10; Lc 3,9);
• convite ao batismo, em sinal de conversão (cf. Lc 1,4);
• preceitos morais e sociais (cf. Lc 3,10-14).
Quando Jesus fala em nascer do alto (cf. Jo 3,3s), Nicodemos, apesar de doutor do Sinédrio, não entende. A informação de que era necessário nascer de novo deixou confuso o doutor ( vv.3-4). Como Jesus não faz jogo de palavras, esclareceu que era preciso nascer da água e do Espírito para poder entrar no Reino (vv. 5-7). O Batismo é, portanto, esse nascer de novo, pela água e pelo Espírito, através do fogo que purifica, que dá o renascimento espiritual, abertura para uma vida nova, cujo ápice é o Reino dos céus.
Embora se fale muito nos efeitos do Batismo, na verdade, teologicamente, só há um, e os outros são conseqüências dele. O efeito do Batismo é a justificação (cf. At 2,38), que é a geração para a vida divina e infusão, na pessoa, da graça santificante e das virtudes teologais e morais. A justificação incorpora o homem a Cristo. Pelo batismo ele despoja-se do homem velho (morte, pecado) e reveste-se do homem novo (vida, graça, ressurreição), semelhante a Cristo (cf. Ef 4, 22ss; Cl 3,10).
O batismo, feito no rito próprio e com o impulso da fé é causa de justificação. Quando o carcereiro, em Filipos, pergunta aos prisioneiros Paulo e Silas, como salvar-se, escuta uma resposta que orienta a evangelização até hoje:
Crê no Senhor Jesus e serás salvo! Tu e tua família
(At 16,31)
Enquanto o precursor afirma que “o juízo está chegando” (cf. Mt 3,12) , o Salvador anuncia que “o Reino está próximo” (cf. Mc 1,15) e chama para junto de si todos o cansados e oprimidos (cf. Mt 11, 28ss). Enquanto o filho de Zacarias vai até o limiar da promessa, o Filho do Homem adentra no terreno da realização do que foi prometido.
João é voz; Jesus é ação. Jesus é o Cordeiro de Deus, que João Batista aponta. Ao apontar para o Cordeiro de Deus, João está se reportando à primeira páscoa, quando a mão forte do Senhor livra seu povo das garras opressoras do faraó do Egito. Agora, João indica (v. 29) o Cordeiro que vem tirar o pecado do mundo.
Se no passado histórico, a opressão era representada pelos grilhões do faraó, agora o cerceamento da liberdade ocorre por conta do pecado. Por pecado do mundo, a teologia de João quer dizer aquela odiosa adesão aos sistemas de morte e exclusão.
No primeiro momento da páscoa do Egito, o sangue dos Cordeiros, marcou as portas daqueles que deveriam ser salvos. Pelo batismo, o sangue de Jesus, o Cordeiro por excelência, marca os libertos que peregrinam na direção da casa do Pai. No templo de Jerusalém, a imolação de Cordeiros servia como oferenda, pedido de graças e de perdão, etc.
Para João Batista, a voz do Pai, que no batismo de Jesus deu testemunho de seu Filho, deve ter soado como sinal da missão cumprida. Até então o precursor se limitara a preparar os caminhos do Senhor, mas naquele momento, porém, a profecia acabava de se realizar. O que até então fora promessa, agora era uma constatação palpável. Não se tratava mais de alguém que estava por vir, mas da realidade de Deus através de seu Cordeiro.
Ali estava o futuro, passando em frente a João e seus discípulos. Aquele do qual ele não se julgou digno de desatar a correia das sandálias. Ao proclamá-lo “Cordeiro de Deus”, a João só restava desaparecer, “diminuir” para que o Outro pudesse crescer. O Reino de Deus começava a aparecer, de forma clara, no meio dos homens.
O destino de João foi ser ele mesmo uma voz, “voz de alguém que clama no deserto”. Assim ele tornou-se o último e o maior dos profetas. Profeta no seio materno, profeta na infância, profeta no deserto, profeta no Jordão, rio onde lhe esperava a tarefa de batizar aquele parente sobre cuja cabeça se rasgam os céus e desce o Espírito, profeta ao apontar com o dedo, de modo visível, o Filho de Deus que ia para casa: “sigam-no”.
João foi profeta da verdade até o martírio. Jamais deixará de gritá-la, e a raiva humana contra sua voz se tornará o gládio com o qual Herodes mandará decepar sua cabeça. Do sobressalto no ventre da mãe à violência profunda do martírio, sua história é em boa parte conhecida de todos nós.
Hoje em dia, numa sociedade violenta, interesseira, erotizada, onde os verdadeiros valores são suplantados pelo ter-mais, pelo poder-mais e pelo gozar-mais, é preciso que cada cristão se revista do poder de Elias para, como João Batista, chamar, com toda a coragem, de raça de serpentes àqueles que se tornam obstáculos ao crescimento dos filhos de Deus.
Chamado a ser testemunha (martyria) da luz, ele foi fiel a essa vocação, deixando tudo que era ambição material para cumpri-la integralmente. João é modelo para todos os que foram chamados para uma missão. Ele cumpriu sua tarefa com denodo e eficácia, até às últimas conseqüências. Dando seu sangue em martírio e holocausto, ele nos ensina que um ideal pode custar uma vida, mas dura uma eternidade. Ele é o grande paradigma do nosso ser-cristão, sem dúvidas!
Biblista, Doutor em Teologia Moral e Escritor. Autor de mais de cem livros, entre eles “João Batista: A voz que clama no deserto”. Ed. Recado, 2009.