Artigo de Opinião: «USO E ABUSO DAS PALAVRAS»

A linguagem apresenta-se como uma capacidade inata à espécie humana, que consiste em aprender e comunicar por meio de uma língua. Só o ser humano emprega a palavra para exprimir ideias. Julga e é julgado não só pelo que diz mas até pelo modo como fala, limita e vê-se limitado pelo próprio idioma que usa, compreende - por vezes mal - e é injustamente compreendido, pelos ruídos que se estabelecem na comunicação e que são impeditivos ao entendimento com os demais, mesmo em pleno uso de uma mesma língua.

A palavra é a faculdade natural de falar: pode ser memorável; consegue revelar-se fluente; constitui promessa, revelação ou crença; testemunha uma vontade forte, um pedido ou um direito; é motivo de interrupção e decisões definitivas; conota-se com os sinais de fidelidade, eloquência ou solenidade; mostra-se apressada ou arrastada; pode até ser Divina...

Há os que falam e os que conversam, aqueles que só estabelecem diálogos da treta, alguns que se revelam de poucas falas e outros que, sempre que pronunciam palavra, só parecem apostados em dar-nos cabo do juízo.

Há palavras ilegíveis e vocábulos que convencem, frases que confortam e expressões que nos magoam, palavras que, também nós, já lançámos ao ar e fizeram doer.

Se, por um lado, « as palavras são levadas pelo vento», é também com elas que os justos perdem, os sensíveis sofrem e os incautos são erroneamente avaliados. Se - em boa verdade - a palavra é importante, momentos há em que as palavras não são precisas e alturas em que se tornam obrigatoriamente dispensáveis. Um gesto pode, efectivamente, «valer mais do que mil palavras» e momentos há em que um abraço silencioso corresponderá, porventura, a outras dez mil.

Em todas as línguas existem, contudo, palavras bonitas e palavras feias. Há vocábulos que fazem pensar, palavras que trazem calma e insultos que agridem. Há termos pouco usados e outros que já quase nada significam, dado o uso e o abuso que fazemos deles. Facilmente se passa da palavra à palavrinha e desta ao palavreado; do palavrório ao palavrão e deste ao insulto, ao juízo de valor, à difamação, à maldade... E não é também difícil passar-se das palavrinhas às falinhas mansas e, a seguir, às promessas verbais, quando todos, já em justificada descrença, «queremos obras e não palavras».

«Amor» é a verbalização mágica do sentir, já sussurrada por muitos lábios ternos, em noites de luar, ou ao pôr-do-sol, em muitas areias de muitas praias. Esta palavra, por exemplo, de tão especial que é, acaba por ser interiorizada também por muitos oportunistas do palavrório, que lhe vão matando a beleza e muitos dos sentimentos que ela nos provoca: se continua a ter um valor que ninguém nega, não deixa de ser também uma palavra que poucos ouvem e usam com convicção. E sempre que mais um ser humano fala sem verdade, para dizer que é amigo, que é honesto, que é sincero, que ama, mais as palavras vão perdendo a sua beleza, a sua força, a sua verdade.

É por isso que se deve sempre desconfiar das pessoas que procuram os momentos fáceis para dizerem as palavras bonitas ou que usam as palavras bonitas numa tentativa de esconderem propósitos pouco claros, elaborando discursos de ocasião. Quando surge um incorrigível “fala-barato” (ou um exímio "aldrabão") aparece um novo inimigo da língua, um traidor de sentimentos, um novo demolidor da palavra. E, se não é possível inventar palavras novas que renovem todos os sentimentos, importa usá-las com verticalidade e com ternura. Mesmo as palavras feias, se o são, é porque nisso as transformámos. Podemos usá-las menos, balbuciá-las só quando for preciso, sermos menos levianos com elas. Se tentarmos livrar muitas palavras de todas as conotações que já lhes foram dadas, se soubermos reter no coração a sua beleza simples, encontraremos mais um motivo forte para a nossa felicidade e paz de espírito.

ANTÓNIO CASTRO

In Revista «Saber»

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(António Manuel Antunes de Castro)
Enviado por (António Manuel Antunes de Castro) em 16/06/2010
Código do texto: T2323699
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