Conversão: Adorar em Espírito e Verdade. SERMO LXXXI

CONVERSÃO

Adorar em espírito e verdade

Eu lhes garanto:

se vocês não se converterem,

e não se tornarem como crianças,

vocês nunca entrarão no Reino do Céu.

(Mt 18,3)

A purificação do espírito humano (o caminho da espiritualidade) começa com a “reforma” do coração (os afetos) e da vida (as atitudes). Trata-se de reformar com decisão tudo aquilo que nos separa do amor de Deus. Isto deve ocorrer com o intuito de uma avaliação no sentido de ver se nossas escolhas estão em conformidade com os ensinamentos e as opções de Jesus. Para uma conversão eficaz é preciso que cada um descubra o sentido de sua vida. Na abertura de sua vida pública, na exposição temática do Reino, Jesus recomenda a conversão como prioridade para o discipulado:

Depois que João Batista foi preso, Jesus voltou para a

Galiléia, pregando a Boa Notícia de Deus: “O tempo já se

cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e

acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,14s).

Estas primeiras palavras de Jesus funcionam como chave de compreensão para a novidade do Reino. Em seus discursos, Jesus indica uma realidade (o Reino) que requer uma mudança (uma transformação radical) em relação à situação de injustiça que assolava os homens submetidos ao jugo do pecado.

A informação de que o Reino está próximo aponta para uma dinâmica e, ao mesmo tempo, para um fato iminente: o Reino está aí; sempre crescendo. Na associação do convertam-se com o acreditem, o Mestre indica uma ação radical capaz de servir de orientação para a vida dos seus seguidores. Só se converte quem crê na missão redentora de Jesus; crê e se compromete com ela, como forma de espiritualidade e adoração.

Igualmente, no diálogo com a mulher samaritana (cf. Jo 4,42) junto ao poço de Jacó, Jesus define os verdadeiros adoradores: aqueles que exercitam sua espiritualidade em espírito e verdade (4, 23s). Hoje, em muitos lugares onde se ensina, prega ou assessora meditações, as pessoas têm alguma dúvida quanto a essa adoração. Já escutei dizerem que se tratava de uma autêntica “charada” proposta por Jesus para confundir a leiga samaritana. Teria sido assim? Não creio! A revelação, especialmente no caso da samaritana, é paulatina, crescente e definitiva. Inclusive, ele se manifesta a ela claramente como o Messias, coisas que para outros tantos ele deixou subentendido.

Pois é a forma adequada de adorar a Deus o ponto central do diálogo, quando Jesus oferece à mulher a graça da “água viva” que jorra para a eternidade. Ele penetra em sua vida, desnudando suas misérias e desencontros. Atordoada pela descoberta de seus segredos mais íntimos, a mulher tenta desconversar, buscando uma escapatória para fugir do conhecer-se. Como tantos de nós, hoje em dia, ela procura usar o recurso intelectual para, de forma sofista, não se render ao assédio da graça de Deus. Ela tem medo de se entregar... A

s tentações de Deus, às vezes, são assustadoras, pois tornam descoberto todo o nosso íntimo, mesmo aquilo que escondemos a sete chaves. Sentindo-se ameaçada a mulher busca escapar pela tangente:

Nossos pais adoraram a Deus neste monte, e vocês dizem que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar (v. 20).

Era o que Jesus queria. A samaritana foi direto ao assunto. Agora ela começava a discutir teologia com ele. Ao mencionar que “nossos pais adoraram...” ela se refere à polêmica existente entre judeus e samaritanos, onde o verdadeiro culto a Deus só podia ser levado a efeito no templo, em Jerusalém, conforme os ditames da reforma deuteronomista de Esdras, no século VII a.C. Nessa diferença existente entre judeus e samaritanos, quanto ao local do culto, começava a grande revelação de Jesus:

Mulher, acredite em mim. Está chegando a hora, em que não

adorarão o Pai, nem sobre esta montanha nem em Jerusalém.

Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que

conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas está

chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros

adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. Porque

são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e

aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade

(vv. 21-24).

Trata-se da grande lição do cristianismo universal, que não mais ficará restrito a lugares de culto, mas a todo o universo, templo onde Deus reina. Nos evangelhos há duas expressões que, para muitos, passam despercebidas: céu e céus, e que não são sinônimos. Por céu entendemos o lugar no Alto, onde Deus mora. Já céus nos dá outra idéia. Trata-se do universo onde encontramos a presença de Deus. A terra está incluída na expressão céus.

O anúncio “está chegando a hora...” coloca toda a situação de iminência de um fato novo (morte e ressurreição de Jesus), real e escatológico, quando serão abolidos os locais fixos de culto, e o Filho de Deus será adorado e glorificado a partir do coração das pessoas. Esta referência tem ênfase no versículo 23.

Mas está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. Porque são estes os adoradores que o Pai procura.

Os verdadeiros adoradores são os fiéis de todos os tempos, que reconhecem a presença de Deus nos céus e assim desenvolvem uma espiritualidade consciente, amando o Deus da vida e seguindo o seu Cordeiro. São aqueles que crêem e foram batizados (cf. Mc 16,16) e por essas duas atitudes que se completam obtêm a salvação. Adorar em espírito e verdade é ir além do mero formalismo das práticas dos fariseus, que professavam uma fé superficial, dentro de uma religião alegórica, tradicional, burocrática.

Esse novo tipo de adoração preconizada por Jesus é relacionar-se com Deus sob o influxo do Espírito Santo. Só a iluminação do Espírito de Deus é capaz de proporcionar essa adoração. Nas Escrituras vemos que o Espírito Santo move as pessoas no sentido de uma conversão ao bem e à justiça. Assim, ele, igualmente, move os crentes no sentido de adorar filialmente ao Pai. Os verdadeiros adoradores, os que se deixam conduzir pelo sopro do Espírito, são os renascidos da água e do Espírito (cf. Jo ,5). A verdade é associada à atividade do Espírito:

Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos.

Então, eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Advogado,

para que permaneça com vocês para sempre. Ele é o Espírito

da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê,

nem o conhece. Vocês o conhecem, porque ele mora com

vocês, e estará com vocês (Jo 14, 15ss).

O termo adorar em verdade indica o ato de amar a Deus com pureza de espírito, atitude de busca filial e coerência de vida. Adoramos a Deus com o íntimo do nosso espírito, porque ele é espírito. Adoramos amando porque ele é amor. Amando assim, aproximamos nosso espírito do dele. Igualmente amamos em verdade (com sinceridade e compromisso) porque Deus é verdade.

Trata-se daquela adoração sem fingimento, máscara ou interesse. Situa-se aí a síntese da nossa espiritualidade. A presença de Deus a partir de agora alarga o limite dos templos e dos altos montes. O templo agora é o coração (cf. 1Cor 3,17). Santo Agostinho (Sermão 68.7), na sua contínua busca de santidade e conversão não cansava de clamar: “Eu tenho sede de Deus! Tenho fome e sede dele!”. Exortando os judeus no tempo do exílio, à conversão a Javé, o profeta Isaías comparou o amor de Deus ao amor materno, aquele que ama o filho a partir das entranhas:

Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de

ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se

esqueça, eu não me esquecerei de você ( 49,15).

Já que o tema principal deste tópico é conversão, no que consiste de fato uma conversão? Converter-se, basicamente, é mudar de rota. A gente vai por uma estrada e de repente decide tomar outro caminho, mais à direita ou à esquerda. Diz-se que fizemos uma “conversão” para um lado ou para o outro. No terreno da espiritualidade, converter-se é mudar de vida, é deixar o caminho do pecado ou da indiferença para abraçar o itinerário de Jesus. Converter-se é reconciliar-se com o bem e a justiça, renunciando à mediocridade de uma vida sem sentido, longe de Deus, para uma adesão àquela vida cristã preconizada por Jesus em seu evangelho.

Nesse aspecto, conversão nada mais é do que a incondicional entrega de nosso coração e nossa vida a Jesus Cristo e seu projeto libertador. Trata-se de uma entrega na fé, na atitude e na missão. Sendo a conversão um crescimento progressivo e permanente na fé, ela se torna um processo em marcha, nunca acabado, nunca definitivo. Estamos sempre nos convertendo. É uma falácia dizer que estamos convertidos. Nesse terreno estamos sempre a caminho... Dirigindo-se aos crentes da Igreja primitiva, Pedro não cessava de recomendar: “Convertam-se” (cf. At 2,37s).

Cristo exige um seguimento radical que abrange o homem todo e todos os homens, que envolve todo o mundo e o cosmo todo. Essa radicalidade faz com que a conversão seja um processo nunca encerrado, tanto em nível pessoal quanto em nível social (P 193).

A partir da fé que nutre a conversão do coração e da vida, se estabelece a denúncia de tudo aquilo que impede e bloqueia a instauração do Reino de Deus no meio da sociedade humana. É impossível uma conversão pessoal se não houver a ressonância da conversão social, e vice-versa. Desde o princípio Deus propôs aos seus filhos dois caminhos, duas opções. Ele não violenta a vontade de ninguém, todos são livres para decidir o que vão abraçar: a vida e a morte, a graça e a des-graça, o bem e o mal. Tudo depende da opção que fizermos entre Deus e os ídolos do mundo:

Veja: hoje eu estou colocando diante de você a vida e a

felicidade, a morte e a desgraça. Se você obedecer aos

mandamentos de Javé seu Deus, que hoje lhe ordeno,

amando a Javé seu Deus, andando em seus caminhos e

observando os seus mandamentos, estatutos e normas,

você viverá e se multiplicará. Javé seu Deus o abençoará na

terra onde você está entrando para tomar posse dela.

Todavia, se o seu coração se desviar e você não obedecer,

se você se deixar seduzir e adorar e servir a outros deuses,

eu hoje lhe declaro: é certo que vocês perecerão!

(Dt 30, 15-18).

Deus (espiritual) e o próximo (social) são realidades indissociáveis. O desvelo com as questões sociais precisa ser conseqüência da nossa adesão ao amor e ao plano de Deus. Essa conversão ambivalente é fruto de uma fé elevada a conseqüências evangélicas e evangelizadoras. Convertermo-nos ao Pai convertendo-nos a seus filhos. Uma atitude é decorrente da outra, Não é possível separar.

É preciso então apelar ás capacidades espirituais e morais das pessoas e à exigência permanente de uma conversão interior, a fim de obter mudanças sociais que estejam realmente ao seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração não elimina absolutamente, antes impõe a obrigação de trazer às instituições e às condições de vida, quando estas provocam o pecado, o saneamento conveniente, para que sejam conformes às normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de pôr-lhe obstáculos (Catecismo 1888).

A conversão é exigida da espiritualidade mas também da solidariedade, pois se trata de uma realização da essência do cristianismo, que é a orientação na direção daquele que é Vida. Sob esse prisma, a vida espiritual é eminentemente a vivência concreta da alegria pascal. É a vitória da vida sobre a morte. A ressurreição vem pela cruz. A alegria dos cristãos nasce da vitória sobre o sofrimento. Só uma espiritualidade bem elaborada é capaz de trazer os frutos de conversão como Deus quer.

Assim como a graça, cuja irradiação é multi-direcional, nesse esforço, a forma com que conduzimos nossa vida espiritual, como já vimos, pressupõe vários encontros, que funcionam em várias direções, de forma concêntrica, abran-gente e conver-gente:

• O encontro consigo (o símbolo do encontro para os judeus

era o jejum).

O ponto de partida é o auto-conhecimento; não

podemos sair em busca do conhecimento externo se

desconhecemos nosso coração e nossa mente. Vale a dica

do filósofo Sócrates († 399), fundador da axiologia (filosofia

moral), que recomendou (conhece-te a ti mesmo). Jejuar é

impor ao corpo e ao espírito, através de uma privação, uma

ascese que limpa e dá a conhecer o interior de cada um.

Sobre o jejum, feito de qualquer jeito, o oráculo de Isaias

advertiu: “O jejum que eu quero é este: acabar com as

prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em

liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a

comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os

pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não

se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz

brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente,

a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória de Javé

virá acompanhando você. Então você clamará, e Javé

responderá; você chamará por socorro, e Javé

responderá: ‘Estou aqui!’ Isso, se você tirar do seu meio o

jugo, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você

der o seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então

a sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você

como a claridade do meio-dia; Javé será sempre o seu guia

e lhe dará fartura até mesmo em terra deserta; ele

fortificará seus ossos e você será como jardim irrigado, qual

mina borbulhante, onde nunca falta água; as suas ruínas

antigas serão reconstruídas, você levantará paredes em

cima dos alicerces de tempos passados. Todos vão chamá-

lo reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se

possa morar” (58, 6-12). Mais tarde Jesus também

recomendou: “Quando vocês jejuarem, não fiquem de rosto

triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto para que

os homens vejam que eles estão jejuando. Eu garanto a

vocês: eles já receberam a recompensa” (Mt 6,15). O jejum

(ato íntimo) indica a solidariedade (ato externo).

• O encontro com Deus (a oração e a meditação)

Na oração, o ser humano se volta integralmente para o

Deus da Vida, estabelecendo com ele uma relação visceral e

um conhecimento íntimo. Reconhecendo-o como Criador, o

homem se despe do egoísmo e da auto-suficiência que o

esmagam para se tornar um legítimo ser-com-os-outros.

Orar, como tudo na vida, também requer coerência: “quando

orarem, não sejam como os hipócritas que gostam de rezar

de pé, nas sinagogas e nas esquinas, para serem admirados

pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a

recompensa” (Mt 6.5). A palavra hipócrita é enraizada no

grego: hipó (abaixo) e xrites (julgamento). Uma atitude

hipócrita é aquela pessoa que está abaixo da crítica.

• O encontro com o próximo (a esmola, a caridade)

Uma vez encontrado consigo mesmo e com Deus, o homem

está apto a se encontrar com o próximo. Estas são as três

etapas da conversão. É o amor correndo nas muitas

direções das hastes da cruz. Fugindo da concepção irrisória

e moderna de esmola, nossa doação deve ser mais no

sentido profundo, radical e misericordioso da caridade. É

Jesus que nos diz “Quando você der esmola, não mande

tocar trombeta na frente, como fazem os hipócritas nas

sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens”

(Mt 6,2).

A estes encontros se poderia somar um quarto: com o cosmo, a natureza, o meio-ambiente, a criação de Deus, que hoje sofre tantas ameaças, e cuja violação tipifica uma ruptura com o projeto original. Quem ama a Deus deve igualmente amar aquilo que ele criou. Quem ama as pessoas deve zelar pela oikía (casa-terra) onde elas vivem. É curioso que Jesus classifica como hipócritas aqueles que praticam uma tentativa de espiritualidade, mais tendente à incoerência, alegoria e inconsistência.

A conversão, baseada numa espiritualidade vigorosa, gira em torno da fé que conduz às boas obras, segundo o apóstolo Tiago (2,17). Quem realmente crê, coloca essa crença a serviço da transformação dos corações (a partir do seu), gerando uma irreversível e incontrolável atitude fraterna. Fé sem obras transformadora tem pouco valor. Na identificação da espiritualidade verdadeira, aparece a (metánoia), uma mudança de sentimentos, de forma de pensar, de rumo e de atitudes. Se não mudarmos nosso coração, cheio das coisas do mundo, não conseguiremos suportar a exigência da conversão. Se colocarmos vinho novo (as exigências do evangelho) em vasilhas velhas (corações fechados e corrompidos) tudo irá se perder (cf. Mc 2,22). É preciso mudar os corações:

Diga, portanto: Assim diz o Senhor Javé: Eu vou recolher

vocês do meio dos povos, vou ajuntá-los de todos os países

para os quais foram levados, e lhes darei depois a terra de

Israel. Logo que aí chegarem, eles removerão dela todos os

seus ídolos e abominações. Darei a eles um coração íntegro, e

colocarei no íntimo deles um espírito novo. Tirarei do peito

deles o coração de pedra e lhes darei um coração de carne.

Tudo isso para que sigam os meus estatutos e ponham em

prática as minhas normas. Então eles serão o meu povo, e eu

serei o seu Deus (Ez 11,17-20).

Os místicos, especialistas em oração recomendam que, para um encontro eficaz com Deus é necessário que se faça um “deserto interior”, pois Deus não está no barulho. É preciso buscá-lo enquanto ele se deixa encontrar. Clamar seu nome enquanto ele está por perto (cf. Is 55,6). Nessa perspectiva, o deserto é uma etapa normal no itinerário da fé. Há momentos em que o mundo parece vazio, inabitável, e esse buraco parece ser o vazio da ausência de Deus em nossas vidas. Deus não cansa de nos exortar à mudança de rumo.

Que o ímpio deixe o seu caminho e o homem maldoso mude os

seus projetos. Cada um volte para Javé e ele terá compaixão;

volte para o nosso Deus, pois ele perdoa com generosidade

(Is 55, 7).

Certa secura espiritual que às vezes experimentamos, reflete o distanciamento de nossa vida com relação àquele itinerário que Deus projetou para nos resgatar do jugo do pecado. E é justamente por causa de nosso coração seco, duro, inconverso e difidente, que Deus parece se distanciar de nós, cada vez mais. Em muitas ocasiões chegamos a acusá-lo de omisso, mas fomos nós, pelos mais variados desvios da vida, que nos afastamos dele, fazendo pouco caso de seu amor e rejeitando seu plano de salvação.

Num mundo assim, onde Deus não é mais louvado e reverenciado, a única figura visível é a do mal e dos falsos ídolos do mundo. Nesse caos, a única escapatória é aquela engendrada pelo tentador, de nos aproveitarmos do poder e da riqueza para dominarmos os homens e tomar posse do mundo. É a estrutura do pecado, às vezes uma superestrutura, agindo em superveniência ao bem. Jesus Cristo passou por essas tentações. É ele que nos dá o itinerário para vencê-las: a fé.

Há diversas passagens em que a Bíblia (Antigo e Novo Testamento) se refere ao deserto como local de retiro, espaço de fuga ou situação de provação. É a partir do deserto que João Batista se apresenta anunciando a chegada daquele que é mais forte que ele e vai subjugar todo o mal (cf. Mc 1,4-7). A referência ao precursor, vindo do deserto funciona como uma antítese ao Templo e à própria cidade de Jerusalém, até então o centro religioso e político de Israel. No êxodo, o povo hebreu passou quarenta anos no deserto, em preparação a tomada de posse da terra da promessa (cf. Ex 16,35).

No tocante à conversão, especialmente dos leigos, há que se ter um especial cuidado com a laicização do mundo. Embora se requeira dos leigos o desenvolvimento de uma espiritualidade laica, a vida dos cristãos deve observar os limites desse processo. Hoje em dia a mística está dando lugar a uma laicização pragmática, onde tudo é mecânico e funcionalista.

As pessoas usam a religião para seu próprio interesse, sem buscar naquele segmento a Palavra, os Sacramentos e a Salvação. Na América Latina o povo ainda conserva alguns elementos da espiritualidade tradicional, o que não sucede na Europa, conforme alerta Frei Betto, em www.adital.com.br:

A crescente laicização da sociedade européia reduz

drasticamente o número de fiéis católicos e a freqüência à

igreja. O catolicismo europeu, atrelado a uma espiritualidade

moralista e a uma teologia acadêmica, afastado do mundo dos

pobres e imbuído de um saudosismo ultramontano que o faz

ignorar o Concilio Vaticano II, perde sempre mais o entusiasmo

evangélico e a ousadia profética.

O ser humano ao se converter ao amor de Deus, à graça de Jesus e às luzes do Espírito Santo (cf. 2Cor 13,13), quando faz a experiência do Absoluto, Deus irrompe em sua vida, tornando-se presente na família, na sociedade, no mundo. É salutar que se creia e proclame que Deus está presente no mundo, que faz parte, como já dissemos, dos céus. Se não o encontramos é porque nosso esforço é ineficaz, nossa busca é ilusória e nossos planos limitados.

Cristo quando reúne os homens para um deserto, não se distancia deles, mas os faz adentrar nos espaços de Deus. Estar em processo de conversão é aderir ao espírito das bem-aventuranças. Negar-se o recolhimento do deserto significa negar a dimensão vertical da existência, em última análise, a relação com Deus.

Como sabemos, espiritualidade é viver segundo o Espírito. Ora – como diz São Paulo – se vivemos pelo Espírito devemos por ele pautar também nossa conduta (cf. Gl 5,25). Nesse contexto, como ensinam os mestres da mística, nossa conversão precisa ser consciente, crescente e comunicante. Um dos pontos altos dessa metánoia deve será a revelação de que, pela graça, estamos mortos para o pecado, mas vivos para Deus (cf. Rm 6,1).

Seguir a Jesus implica em ter fé em suas propostas. Sob esse aspecto, a fé é sempre um salto no escuro. É dizer sim a um projeto que a gente não vê; é aderir a uma causa que não sabemos como vai terminar. Fé, sobretudo, é confiar. Crer no Filho de Deus é reconhecer a verdade do caminho por ele proposto, para assim termos vida plena. Jesus não quis ser aclamado e aplaudido como uma celebridade, nem consolado ou chorado. Ele quis – e quer – ser seguido e amado. Ele quer ser acolhido nos corações humanos como o sotér (o salvador) e como o kyrios (o Senhor). Ele quer ser seguido, e para isto é preciso conversão por parte dos seguidores. Conversão implica em adesão ao projeto de Deus e solidariedade às dores do irmão.

Jesus – é sabido por todos – nasceu pobre. Ao invés de vir ao mundo em um palácio, ele nasceu numa gruta, numa estrebaria, para adicionar em nosso processo de conversão um ingrediente radical a mais: a nossa opção pelos pobres, pelos abandonados, aos excluídos. Ele encarnou a pobreza que se doa alegremente. Aí reside o mistério da entrega, cuja reflexão sempre nos cabe atualizar, como ensina Bruno Forte:

A pobreza de Jesus, junto com sua radical escolha de liberdade, o transforma em homem de alegria, capaz de gratidão e encantamento diante do dom da fidelidade sempre nova ao Pai. Pobre em relação ao passado, ele se abre para o futuro; pobre em relação ao presente, com fantasia e coragem, sente-se capaz de transformá-lo; pobre diante do obscuro e pesaroso futuro que se lhe apresentam, Jesus vence a tentação do medo e se abandona completamente nas mãos do Pai.

Fidelidade é a fé levada às últimas consequências. Você só se torna fiel àquilo que crê. Se crermos no amor de Deus e que Jesus Cristo é o Senhor, assumimos nossa fidelidade à missão e ao discipulado. É aí que repousa a base da mudança (conversão, metánoia) de nossa vida – às vezes medíocre ou cheia de pecados – em vida cristã autêntica. Deus é fiel, sempre! Sobre a fidelidade de Deus às suas promessas, há na antiga profecia judaica um texto deveras significativo:

Eis que chegarão dias – oráculo de Javé – em que eu farei

uma aliança nova com Israel e Judá: Não será como a aliança

que fiz com seus antepassados, quando os peguei pela mão

para tirá-los da terra do Egito; aliança que eles quebraram,

embora fosse eu o Senhor deles – oráculo de Javé. A aliança

que eu farei com Israel depois desses dias é a seguinte –

oráculo de Javé: Colocarei minha lei em seu peito e a

escreverei em seu coração; eu serei o Deus deles, e eles

serão o meu povo. Ninguém mais precisará ensinar seu

próximo ou seu irmão, dizendo: “Procure conhecer a Javé”.

Porque todos, grandes e pequenos, me conhecerão – oráculo

de Javé. Pois eu perdôo suas culpas e esqueço seus erros

(Jr 31, 31-34).

Nós, em geral, cuidamos muito mais da parte física do que da espiritual. Quando nos sentimos debilitados ou enfermos, não titubeamos em ir ao médico. Muitas vezes, e isto é comum, nosso espírito está doente, nossos atos parecem estar em descompasso com nossas palavras, dizemos uma coisa e fazemos outra, não oramos mais, não frequentamos os sacramentos, esquecemos de perdoar, partilhar, acolher, amar... Esse espírito doente está a merecer um tratamento de choque, urgente, que pode ser chamado de retomada, revisão de vida ou simplesmente conversão. Converter-se é mudar de vida.

Os graves males do espírito, como orgulho, vaidade, fechamento, egoísmo, luxúria, ódio, ambição, podem nos levar à perda da vida. Da vida eterna. As enfermidades do espírito não são nada que um sacramento da Penitência e da Eucaristia não possam corrigir, e se curam no “hospital de Jesus”. A propósito, transcrevo abaixo, um post da Internet, que um amigo me enviou:

"Fui ao Hospital do Senhor fazer um check-up de rotina e constatei que estava doente. Quando Jesus mediu minha pressão verificou que ela estava em baixa de ternura. Ao medir a temperatura, registrou quarenta graus de egoísmo. Fiz um eletrocardiograma e foi diagnosticado que eu precisava de uma “ponte de amor”, pois minha veia estava bloqueada e não estava abastecendo meu coração vazio. Passei pela ortopedia, pois estava com dificuldade de andar lado-a-lado com meu irmão, e não conseguia abraçá-lo por ter fraturado o braço, ao tropeçar na minha vaidade. Constatou-se miopia, pois eu não conseguia enxergar além das aparências. Queixei-me de não poder ouvir direito e foi diagnosticado um bloqueio auditivo em decorrência das palavras vazias do cotidiano. Obrigado, Senhor, por não ter me cobrado a consulta, pela sua grande misericórdia. Prometo que ao sair daqui, somente vou usar os remédios naturais que me indicou, e que estão no receituário do seu Evangelho" (Texto respigado na Internet, atribuído a Luiz Gentile Filho).

Conversão é, portanto, vida nova vivida pelo “homem novo” (cf. 2Cor 5,17; Ef 4,24; Cl 3,10), ou seja, por aquele ser humano que deixou triunfar em si o poder do Espírito de Deus, capaz de tudo transformar. Onde está o Espírito há liberdade, amor, paz, perdão e mudança de vida. A moral cristã é uma expressão autêntica da vida nova que se vive sob o influxo do Espírito de Deus e moldada de acordo com a vontade de Jesus.

Deste modo, o discernimento moral se torna uma exigência tanto para o indivíduo quanto para a comunidade onde ele interage. Muitas vezes o que imaginamos ser conversão, pela falta de alguns (ou muitos) ingredientes da espiritualidade, pode ter o nome que quiserem dar, mas está longe de uma autêntica vida cristã. Converter-se é optar pelo amor.

Nenhum sacrifício pode excluir o amor. Não se pode (a exemplo de Abraão, pai de Isaac) sacrificar aquilo que se ama. Sacrificar coisas supérfluas ou o que não se ama é fácil; oferecer ao Pai o amor verdadeiro de nosso coração convertido, isto é difícil. A Deus não se oferta horas vagas, metade de nosso coração ou sentimentos descartáveis: a ele se oferece o amor maior. A respeito de nos entregarmos totalmente a Deus, como sinal de nosso amor e de nossa conversão, cabe ver aqui uma preciosidade de Santa Teresa (In: Castelo Interior):

Deus é amado não por suas consolações, mas simplesmente porque é Deus. Ele exige um amor absoluto. Só ele tem o direito de exigi-lo.

A espiritualidade, isto é, o modo de ser cristão, é desafiada hoje em dia por uma série de questionamentos, de época, de práxis, de conjunturas e ideologias. A chamada espiritualidade das minorias, ricos, poderosos e do laicato engajado em movimentos eclesiais (Cursilhos, MFC, Emaús, ECC, etc.) é como que o oposto, a contradição da espiritualidade do povo, dos pobres, injustiçados, desempregados, sem-terra, sem-teto, etc. É o individual se opondo, às vezes de forma sufocante, ao coletivo.

Atividades externas, aparentemente meritórias (orações, leituras bíblicas, visitas ao sacrário), mas sem a devida interiorização se tornam atividades ocas, despidas do conteúdo da fé que se faz partilha. Falta, nesses casos, uma ação efetiva, cristã, transformadora. Nesse escapismo, cada um estabelece juízos próprios, pensa por suas próprias idéias, alegando que será julgado “por aquilo que pensar”, como se esse pensar fosse o foro suficiente da moralidade, colocando em risco a oitiva à Palavra e o acatamento à lei do Senhor.

Frequentemente – ensina Gustavo Gutiérrez – a busca do caminho espiritual é apresentada por uma cultura de valores individuais, orientada desordenadamente para o aperfeiçoamento espiritual. A vida interior, nesses casos, parece obscurecer a presença dos demais, confinando muitos cristãos à sua própria interioridade (in: Beber no próprio poço).

Se há um casamento que não dá certo é o do individualismo com a espiritualidade. Nessa prática, a espiritualidade individualista, por alienada e medíocre, não está em condições de orientar aqueles que desejam embarcar na atitude comunitária da conversão e da libertação integral. Esse descompasso entre fé e vida, espiritualidade e individualismo pode empobrecer e até deformar aquilo que deveria ser o fundamento para o seguimento do ressuscitado.

A conversão precisa ser vista como um fenômeno interior, de conseqüências práticas que brota do coração e se concretiza na vida comunitária axiologicamente ativa. O cristão que vive uma espiritualidade madura e discernida, é aquele que ama o próximo por causa do amor de Deus. Este, no dizer de Bento XVI (in: DCE 33), são aqueles que se deixaram guiar pela fé que atua pelo amor (Gl 5,6). Por isso, devem ser pessoas movidas, antes de tudo, pelo amor de Cristo, pessoas cujo coração Cristo conquistou com seu amor, nele despertando o amor ao próximo.

Quando nossa espiritualidade está apagada, fraca, submersa nas rotinas, ela não nos dá alegria nem desperta em nós desejos missionários ou de apostolado. A conversão consiste em procurarmos reavivar o desejo de comunhão com Deus, uma vez que as experiências mais profundas começam com o desejo. Com o despertar desse desejo se abrem as portas da alma na direção do Absoluto. Para entrar na presença de Deus é preciso desejar ardentemente; é preciso sentir a necessidade dele, de sua luz, do seu amor, da sua glória, da sua paz.

Assim como se sabe que amar, mais que um sentimento é uma decisão, igualmente a fé igualmente se situa nesse patamar. Só se converte quem tem fé e decide por uma espiritualidade consciente e decisiva. Hoje, alguns afirmam que estão perdendo a fé. É como o casal jovem que diz que “o amor acabou”. Amor não acaba, e se acaba nunca foi amor. Assim ocorre com a fé. Quem afirma que “perdeu a fé”, de fato nunca a teve, pois não se perde aquilo que não se tem.

Só a manutenção de uma conversão permanente nos mantém na rica embocadura que nos conduz ao Reino do Pai. É salutar para o desenvolvimento de uma espiritualidade rica, perceber a necessidade de estarmos sempre nos convertendo, alimentando nossa fé, e que todo o esplendor do Universo seja a luz que desperta o anseio de entrar em comunhão com Deus, como ensina Santo Agostinho:

O que é o universo inteiro, a imensidão do mar ou o exército

dos anjos? Eu tenho sede do Criador de tudo; tenho sede e

fome dele.

No mesmo sentido, a grande mística medieval, Catarina de Sena († 1380), santa e doutora da Igreja, através de sua qualificada obra (Cartas Completas, XV. Ed. Paulus, 2005), não cansa de exortar o povo cristão no sentido de se entregar nas mãos da misericórdia de Deus. Segundo ela, Deus está sempre aberto a se reconciliar com o homem, desde que, por ato voluntário de um coração generoso ele queira mudar de vida, converter-se e retornar à casa do Pai:

Abre o olhar da inteligência e contempla a infinita Bondade

que age no teu coração, e mediante os seus servidores te

pede e convida, deseja fazer a paz contigo, sem olhar a longa

guerra que lhe fizeste por tua infidelidade.

Pregação realizada em um retiro de padres, em Minas Gerais, em 2009. O autor é Doutor em Teologia Moral, escritor, com mais de 100 obras publicadas, entre elas “As obras da fé”, Ed. Ave-Maria, 2001.