O direito nos relacionamentos
O direito nos relacionamentos
Quando o mundo foi criado, e Adão e Eva cometeram o pecado original a humanidade ingressou em outro reino, o reino do conhecimento.
A partir do conhecimento, o homem passou a ser dono de si mesmo, e não precisar de Deus, pois os sentidos e os desejos humanos passaram a ser as diretrizes para que algo fosse tido como bom ou mal.
Dentro desta perspectiva, na busca pela realização homem e mulher passaram a seguir caminhos diferentes, o homem buscando a realização por meio do seu trabalho e de seu suor e a mulher buscando no homem a imagem de Deus.
Tais alegações estão contidas no livro - A Cabana de autoria de William P. Young, e tem seu teor de veracidade. O que mais e chamou atenção na obra foi que conferiu uma dose de responsabilidade pelo caos em que nos encontramos atualmente ao direito nas relações.
A princípio “direito nas relações” parece ser algo inócuo sem qualquer perigo aparente, corriqueiro e comum no mundo atual, ocorre que no decorrer do livro este termo é esclarecido, e mostra-se tão trágico como a guerras ou doenças dentre outros elementos maléficos dos dias atuais.
O “direito nas relações”, conforme a citada obra, não é uma obrigação que surge naturalmente perante outrem proveniente de determinada relação, seja ela familiar, profissional, ou de qualquer outro elemento de ligação, ou que trate de mera conduta profissional, cidadã, ou mesmo de convívio e bem estar coletivos, mas sim, em âmbito diametralmente oposto de condutas afetivas entre seres envolvidos.
Com o direito nas relações à determinada conduta afetiva de outrem, esvazia-se por completo a própria afetividade que por sua natureza não pode jamais compor uma relação obrigacional.
A afetividade, o relacionamento, provém da natureza amorosa do seres – humanos e de suas inúmeras singularidades, é obtida por meio de afinidades, buscas, conquistas, e inúmeras outras formas de relação.
Não pode haver obrigação de uma pessoa amar outra, simplesmente porque o amor não pode partir de um elemento externo ao ser, outras coisas sim – obrigação de pagamento, obrigação de obediência às leis, de consideração e respeito mútuos, e qualquer outra conduta que esteja em consonância com a dignidade humana, mas não a obrigação do amor.
Um eventual direito dirigido a outrem para que este me ame é falho em sua essência porque o amor é inerente ao ser, e aparece espontaneamente, de forma que a obrigatoriedade de amar alguém é por si só impossível.
O amor deve ser conquistado, obtido, cultivado no dia a dia, desta forma, não há possibilidade de alguém amar outrem por mera obrigação. Pode haver qualquer outro sentimento a que se queira nomear, mas não o amor.
Mas como foi criada esta obrigação de amar, desde os tempos originários, e tendo em vista a impossibilidade da criação “artificial” de tal sentimento, veio em socorro da sociedade, o que a obra em comento, com muita propriedade denominou de cumprimento de papéis.
Cumprir o papel resolveu toda a celeuma de que não existe o amor por obrigação.
Após o primeiro momento, não sendo possível amar – uma vez que o próprio amor se esvai a partir do momento em que surge a obrigação, a utilização do cumprimento de papéis foi o mais conveniente. O homem cumpre o papel de homem, a mulher o seu papel, e, cada um segue o seu caminho, o que para todos os efeitos aparenta a existência de amor.
Todo este raciocínio consta na obra em comento de uma forma breve, e sintetizada, esmiuçada no presente texto.
No desenvolvimento da cadeia, tem-se que o direito no relacionamento desencadeou o cumprimento de papéis, desta forma, o amor passou a ser algo obrigacional, cujos papéis representados preenchem a sua impossibilidade, ou seja, o homem que paga todas as contas não deve dar mais nada a sua esposa, esta por sua vez cumpre a sua função sendo gerenciadora do lar.
Tudo se resumiu no cumprimento dos papéis respectivos, pré-estabelecidos.
Esta situação veio crescendo ao longo dos séculos, e com a corrida consumerista cada vez maior, o cumprimento do papel social pré-estabelecido se tornou cada vez mais difundido, não se resumindo tão somente a homem- mulher mas a todo o contexto social. Todos os personagens cumprindo tão somente o seu papel, o filho, o tio, o amigo, sogra, padrinho, etc...
E enquanto isto o amor, não o amor, mas o que foi criado após toda esta distorção tornou-se algo totalmente obrigacional e contratual, as pessoas se identificam com os papéis respectivos pré-estabelecidos socialmente, e diante disto, iniciam o que se denominou relacionamento.
Mas relacionamento é identificação de afinidades, opiniões, gostos, tendências, e não um mero termo contratual de cumprimento de papéis.
Mas não é o que pensa nossa sociedade industrializada. Os relacionamentos estão aí, pré-concebidos. Não se fala, não se discute, não se discorda, avaliam-se os prós e contras - financeiros na maioria das vezes, e se unem ou desunem os parceiros.
Até aí tudo bem, quem quer se relacionar de outra forma - como o autor que escreve estas linhas, que se vire, procure o seu lugar e encontre alguém que pense da mesma forma, cada macaco no seu galho.
Mas e o amor? Onde fica o conceito de amor, no meio de todo este turbilhão de direitos nos relacionamentos?
O pai cumpre seu papel de pai, e o filho também, o resultado são dois desconhecidos em busca de melhor representarem para a comunidade, um amor que nem sequer existe, mas que aparenta a plena existência.
De repente, como se surgisse do nada, uma filha mata os pais, e toda a sociedade se comove e se volta contra aquela que é tida como o pior dos seres-humanos. Mas ninguém avalia se existia amor, se existia um relacionamento com as respectivas afinidades e outras características próprias da afetividade. Ninguém vê o fato como a ponta do iceberg de uma sociedade alicerçada em meras aparências, onde a imagem por si só é único elemento que deve ser considerado – a sociedade big-brother em que tudo é permitido desde que se saiba aparentar que não há nada de errado.
Não se defende, no presente texto, que sejam tomadas atitudes extremas em tragédias deste tipo, mas sim o entendimento de que a nossa sociedade criou o relacionamento obrigação, e um amor que deveria existir naturalmente independente de vínculos familiares ou de qualquer outro, esta sendo extinto a cada dia, dando lugar a uma afetividade meramente fictícia, com base em representação de papéis e cumprimento de convenções sociais.
Desta forma, com o mundo consumista produzindo pessoas e relações cada vez mais padronizadas, chega-se a um tempo em que discutir opiniões, gostos ou afinidades, é ofensivo,o contestar padrões é contra social, é preconceituoso, simplesmente porque todo mundo tem que se amar. Está é a teoria que tem sido pregada neste mundo. Amar sem entreter, sem se inteirar, sem debater, discutir ou interagir – este é o amor obrigação.
Pergunta-se: pode existir o amor obrigação?
Que amor é este baseado em obrigações sociais, e em cumprimento de papéis? Como pode nascer o amor de uma busca pelo ser ideal por parte do homem, mulher, pai, filho, ou seja quem for ?
Se vou representar algum papel, então consequentemente vou representar um amor, ou outro sentimento qualquer que venha a ser exigido, em uma relação em que busco tão somente atuar como personagem. Relaciono-me com o personagem e não com o outro que está ao meu lado. Quanta alienação.!
O mercado consumista tem investido cada vez nesta alienação. No natal, todos querem presentear, mas as pessoas querem presentear, não como uma forma de dar algo de si, mas apenas para cumprir seu papel social.
Tudo parece ser, mas não é. Não se trata de amor ou afetividade, mas tão somente de mais uma forma de alimentar na consciência coletiva a noção de amor como algo inerente ao direito, inerente ao cumprimento de uma obrigação, à noção de aparência em primeiro lugar e o resto é meramente detalhe.
Aos poucos a escolha vai sendo substituída pelo cumprimento do papel, e o resultado está ai, casais destruídos, porque não era para ser mesmo, mas se casaram porque insistiram assim mesmo.
Pais e filhos em conflitos simplesmente por não aceitarem o próprio desinteresse recíproco, o que é normal. Um pai pode querer se relacionar de uma forma diferente com aquele filho com quem tem mais afinidades, mas isto não está sendo aceito. A afetividade o amor, ao invés de ser algo inerente ao livre arbítrio do ser humano, esta se tornando uma obrigação.
As pessoas devem ter afinidades para se relacionar, o que não quer dizer que deve haver inimizade caso não existam, mas nada é pior do que o amor forçado, o desinteresse pelo outro pode ser bom, na medida em que é o que é, e, desde que haja respeito e consideração, o problema é que isto não coaduna com o cumprimento do papel social em que todos devem se amar igualmente, e de forma padronizada.
O livre arbítrio para relacionamentos é algo inerente ao amor porque sendo este um sentimento espontâneo, não pode surgir simplesmente de uma obrigação pré-concebida. Mas não é isto o que ocorre e não é isto o que pode vir a ocorrer tão cedo, porque o mercado de consumo e nem as pessoas querem isto. O ser humano moderno não quer sair de si mesmo para partilhar algo com outrem, quer tão simplesmente a cômoda atividade de representar seu papel, e se proteger em si mesmo, em um muro em que ninguém pode penetrar.
Nada mais cômodo, desta forma nada muda, e a vida se torna um grande e diverso teatro, representa-se o filho ideal, o par ideal, o amigo ideal, com uma simples pitada de amor industrializado, que pode ser encontrada de forma abundante na cultura de massa.
Tudo superficial, sob controle e sem alterações, desta forma o ser humano esta seguro em sua cápsula, hermeticamente fechada, vivendo tudo de forma virtual e superficial.
Ah, a superficialidade e o nosso ser humano moderno! A superficialidade é o melhor caminho para ele. Não assumir compromissos. Não assumir opiniões. Não se dar a conhecer. Não discutir. Não contestar. Sempre concordar com tudo, mas também, sem concordar, concordar sem concordar, discordar sem discordar, e nada mais.
Este é o ser humano moderno não concorda não discorda, não discute, não contesta, mas somente espera, boiando na sua superficialidade, e cumprindo religiosamente todos os papéis inerentes ao seu contexto social. Não tem opinião, nem interesse em conhecer sobre qualquer assunto, prefere que alguém conheça para então somente concordar, obviamente com o pé atrás para se retirar ao menor sinal de perigo.
Desta forma, este ser humano moderno, marcado por sua superficialidade, e pela ausência de qualquer compromisso, tem como objetivo levar vantagem. Cumprindo seu papel, ele cumpre a “obrigação amorosa” que alguém certo dia criou e pode inquirir os demais que não a cumprem com a legitimidade de um capataz sobre os escravos – que fugiram do script.
Esta é a triste constatação da nossa atual realidade, e, previsão da tendência de só piorar é o que não falta. A mídia nos big brother e afins tem cada vez mais divulgado a dinâmica do ser humano moderno, no sentido de que este deve simplesmente cumprir o seu papel e aparentar algo que não sente, quanto mais hábil em aparentar, melhor, quanto mais superficialidade melhor, desde que a aparência seja impecável.
E esta é a mensagem do mundo moderno: não ame somente aparente. Amor é obrigação, direito nos relacionamentos – portanto não é algo que deve ser plantado, cultivado, buscado com diligência, mas algo já pré-existente na forma de uma série de obrigações e que devem ser cumpridas sob pena de exclusão social – a mais temida das penalidades.