Luz e liberdade - O diálogo sobre a vida nova (SERMO LXXX)

A LUZ E A LIBERDADE

O diálogo sobre a vida nova

Outrora vocês eram trevas, mas agora são luz do Senhor.

Por isso comportem-se como filhos da luz (Ef 5,8).

Eu já escrevi e falei muita coisa a respeito de luz e liberdade, mas sempre usando a dialética, ou seja, uma tese (luz) contra a outra, onde (liberdade) se opõe à outra (escravidão). Aqui hoje não vai haver oposições de juízos, mas uma justaposição de idéias, onde uma abraça a outra para a completude de ambas. Na dialética há uma oposição, onde a tese vai contra a anti-tese (antítese) para, desse confronto sair uma síntese, que vai absorver os valores da idéia vencedora. Aqui, veremos, não vai ser assim. No lugar da palavra confronto vamos empregar outro termo, suave, construtivo e oposto: o diálogo.

1. A LUZ

As Escrituras, a partir dos primórdios do Antigo Testamento, relatam que no primeiro dia Deus fez a luz (Gn 1,3). É curioso observar que não se trata da luz do sol (natural), pois esta só seria criada no terceiro dia. Então que luz é esta? É a luz de Deus (sobrenatural) que ilumina para sempre a caminhada do homem, cuja vida só tem sentido se for banhada por essa claridade: a luz de Deus. O homem precisa desta luz (cf. Is 59,9), sem a qual se perde em perpétua escuridão. O tema da luz perpassa toda a revelação bíblica, desde o fiat lux (cf. Gn 1,3) até a nova criação que terá em Deus sua própria luz (cf. Ap 21,33). Começava aí um ciclo de vida nova para o universo, pois até então, como informam as Escrituras, o caos e suas trevas imperavam...

O sol não será mais a luz do seu dia, e de noite não será a lua a iluminá-la; o próprio Javé será para você uma luz permanente, e o seu Deus será o seu esplendor. O sol dela jamais vai se por, e a sua lua não terá mais minguante, pois o próprio Javé será para você uma luz permanente (Is 60, 19s).

Nas culturas semitas da Palestina, a escuridão era sinal de prisão, no ventre materno, no calabouço e nas garras da morte. A luz é um sinal que aponta para a libertação. A criança que nasce, é dada à luz, assim como quem morre depara-se, no estágio seguinte, com a luz de Deus. Em ambos os casos, luz e liberdade se interpenetram num diálogo amplo e aberto. É por esta razão que o salmista afirma que “ver a luz é viver...” (cf. Sl 49,20).

A escuridão, como ausência da luz, impede que a pessoa se movimente, com o risco de cair, tropeçar ou se bater em alguma coisa. A escuridão delimita a liberdade humana. Por esta razão a escuridão – a falta de luz – é vista como um sinônimo de calamidade (cf. Jó 30,26; Sl 23,4; Is 8,22; Jr 23,10). O verbete luz, conforme estudamos nas Escrituras, aparece no grego como fôs,(phi.ômega.sigma), enquanto no hebraico é ‘or, (alef.waw.rô). Na vulgata latina é lux. Para o resto dos justos, humilhado e angustiado, um povo que andava nas trevas (a falta de liberdade no exílio) viu uma grande luz (cf. Is 9,1; 49,9; Mq 7,8s) que é a face da alegria da luz do Deus que liberta, resgata e traz de volta

Envia tua luz e tua verdade: elas me guiarão, e me levarão ao

teu monte santo, para a tua moradia (Sl 43,3).

Em seus ensinamentos espirituais a Bíblia diz que a luz é “a veste de Deus” (Sl 104,2) e simboliza sua presença (Ex 13,21); e mais: “o rosto de Deus irradia luz” (Sl 4,7) e esta luz ilumina a caminhada do homem (Sl 27,1). A História Sagrada não cansa de falar nas trevas para os ímpios e a luz plena para os justos (cf. Sb 17,1–18,4). Estes últimos resplandecerão como o céu e os astros, enquanto os pérfidos ficarão para sempre na escuridão do sheôl (Dn 12,3; Sb 3,7). Dentre as pragas do Egito, exceto a morte, a mais assustadora foi a das trevas (cf. Ex 10).

No Novo Testamento constata-se com frequência o uso simbólico e metafórico da luz nos escritos de Paulo e de João, como continuação de algumas idéias do AT. A oposição dialética entre luz e trevas dá um matiz moral e revela que a luz coloca abaixo o “reino das trevas” (cf. Jo 12,46; 2Cor 6,14). Em outros textos, a luz aponta para um julgamento (cf. Jo 3,19-21) e a renovação da vida moral (cf. Jo 8,12; Rm 13,12; Ef 5,13), o que se poderia chamar de “vida nova”.

Por ser o criador da luz, Deus é chamado “o Pai das luzes” (cf. Tg 1,17), que mora “numa luz inacessível” (cf. 1Tm 6,16) e é identificado com a luz (cf. 1Jo 1,5). Para Paulo, os que não seguem a luz são chamados de “filhos das trevas” (cf. Ef 5,8). Deste modo, comportar-se como “filhos da luz” é viver na liberdade dos filhos de Deus.

Javé é minha luz e salvação: de quem terei medo? (Sl 27,1).

No evangelho, Jesus se revela como a luz do mundo (Jo 8,12) e complementa o discurso com uma missão para os discípulos: vocês são a luz do mundo (Mt 5,14). Mesmo sendo essa luz divina, Cristo, quando viveu na terra, deixou essa luz velada sob a humildade da “carne”. Mas há uma ocasião em que ele a torna perceptível, conforme demonstra o Vocabulário de Teologia Bíblica (Ed. Vozes, 1987) a testemunhas privilegiadas, numa visão excepcional: a transfiguração de Jesus no Tabor. Aquele rosto a resplandecer e as vestes a ofuscar como a luz, já não pertencem à condição mortal dos homens, mas penetram no mistério inefável da ressurreição. O brilho dessa luz já havia sido anunciado aos pastores em Belém:

O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; e uma luz

brilhou para os que viviam na região escura da morte

(Mt 4,16).

Em um dos seus mais expressivos discursos, no chamado “sermão da montanha”, na colina de Cafarnaum, à beira do lago de Genezaré, Jesus dá ênfase ao compromisso que seus seguidores têm de se tornarem aquela luz que liberta, para fazer frente às trevas que provêm das investidas do Maligno. Ao trazer visão aos cegos e cura aos enfermos, ele traz uma luz que liberta e projeta a uma vida nova, prenúncio do Reino definitivo.

Vocês são a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma

cidade construída sobre um monte. Ninguém acende uma

lâmpada para colocá-la debaixo de uma vasilha, e sim para

colocá-la no candeeiro, onde ela brilha para todos os que

estão em casa. Assim também: que a luz de vocês brilhe

diante dos homens, para que eles vejam as boas obras que

vocês fazem, e louvem o Pai de vocês que está no céu

(Mt 5,14ss).

Mais adiante, o Mestre se refere ao olho humano, através de cuja atividade sã é possível enxergar claramente o mundo.

A lâmpada do corpo é o olho. Se o olho é sadio, o corpo inteiro fica iluminado. Se o olho está doente, o corpo inteiro fica na escuridão. Assim, se a luz que existe em você é escuridão, como será grande a escuridão! (Mt 6, 22s).

É curioso ler “se a luz for treva” – um paradoxo – como será espessa essa treva! Quando, espiritualmente estamos em trevas, estamos como que sentados na região da sombra da morte. Quem não sabe de onde vem e nem para onde vai, esta sem luz e seu destino é a morte. Esta era a situação deste povo descrito em Mateus, até o dia que Jesus apareceu naquele lugar. Foi como uma grande luz que revelou a condição de cada pessoa, todos viram que estavam com problemas. Quando não temos luz, não podemos saber a nossa condição, mas a partir do momento que sou exposto, vejo claramente meus defeitos.

Teologicamente, trevas equivalem a um exílio. Esse exílio hoje seria a distância de Deus, a carência do amor, a falta de sentido para a nossa vida. Conforme afirmou o filósofo judeu-austríaco Martim Buber († 1965), o verdadeiro exílio de Israel começou, não quando o povo experimentou a deportação para longe da pátria, mas quando ele aprendeu a suportar resignadamente os males, quando perdeu a saudade da terra natal e se acomodou com a perda dos referenciais de vida.

A inter-relação, segundo Buber, envolve o diálogo, o encontro e a responsabilidade, entre duas instâncias ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto. No caso do povo judeu, cativo na Babilônia, só foi possível sair das trevas do exílio reacendendo a luz da aurora, através da mensagem de esperança dos profetas e da ação libertadora de Deus.

O psicanalista Viktor Frankl (†1997), o mestre que cunhou a expressão “sentido da vida” relata suas experiências como prisioneiro de um campo de concentração, onde se refere à liberdade como uma luz: “O homem, por força de sua dimensão espiritual, pode encontrar sentido em cada situação da vida, por mais obscura que seja e dar-lhe uma resposta adequada”. (in: A busca do homem por sentido. Viena, 1946).

A Palavra de Deus é a única capaz de transformar a aridez de nosso deserto interior em fertilidade de um jardim... Como o próprio Jesus afirma, só ele é a luz que o mundo necessita... “Eu sou a luz do mundo... quem me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida...” (cf. Jo 8,18). Na referência ao “quem me segue...” ele lembra que não estamos sozinhos, mas acompanhados por uma “nuvem de testemunhas” (Hb 12,1) fiéis cuja fé, repleta de luz, aponta para a liberdade dos filhos de Deus. Com eles enxergamos a luz da beleza que salva. A purificação que brota da luz e da liberdade tem como objetivo reformar o coração, a mente e a vida das pessoas. Considerando as palavras de Jesus, “eu sou a luz...” e em paralelo “vocês são a luz...” concluímos que somos também luz porque ele nos ilumina: “enquanto estou com vocês eu sou a luz do mundo...”.

Há muitos anos conheço e canto a música “Deixa a luz do céu entrar...”, alusiva justamente à claridade que Deus nos manda para dissipar as trevas do pecado. Para banir essa escuridão se deve abrir de par-em-par as portas do nosso coração. No último livro da Bíblia lemos que na Jerusalém Celeste, a metáfora do paraíso, não há luz artificial, pois o próprio Cordeiro é a luz do povo e o sol não vai queimar suas peles:

Não haverá mais noite: ninguém mais vai precisar da luz da

lâmpada, nem da luz do sol. Porque o Senhor Deus vai brilhar

sobre eles, e eles reinarão para sempre (Ap 22,5).

Há na luz da páscoa a referência ao dia da ressurreição, na plena revelação do amor do Deus trinitário... É emocionante,a na celebração do “fogo novo” contemplar o círio aceso e o celebrante proclamar: “Eis a luz de Cristo...”. Fiéis, nós contemplamos essa luz que se abre à nossa frente. Por isto nós continuamos seguindo a Cristo através de seus itinerários de luz a liberdade que nos conduzem à vida totalmente nova... o kainós (o novo) de Deus, onde ele nos fala no silêncio

Ninguém acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma vasilha, e sim para colocá-la no candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão em casa. Assim também: que a luz de vocês brilhe diante dos homens...

Diante destas palavras de Jesus eu me pergunto: como eu posso me tornar luz para você? Como podemos ser instrumentos e fermento de libertação? Começa aí o diálogo da verdadeira espiritualidade justiça e paz, fé e atitude, quando luz e liberdade se abraçam... Fica claro que nos projetos do Maligno não há luz nem liberdade. Ele adora trevas e escravidão. Só Deus é luz; só nele há luz...

Se nós temos luz é porque ele nos “empresta” a sua luz... Só ele é completamente livre... Se desfrutamos alguma liberdade é porque ele nos libertou. O diabo, o “príncipe das trevas” não é livre para mudar, para se converter... Ele é fiel unicamente ao seu projeto de maldição, e dele não pode se afastar (falta-lhe a liberdade e a iluminação para mudar).

2. LIBERDADE

A palavra liberdade aparece no grego como eleutheria. Já no hebraico ela surge como hfsh (huphshah) soletrada em Hê, phi, shim, Hê. Na experiência de Jesus, filho de Deus feito carne, se deve distinguir vários níveis de liberdade, entre eles a liberdade de consciência (escolha radical e discernida de um sentido de vida). No guetsemany (prensa de azeitonas) Jesus sente a chegada da sua hora. Eu prefiro empregar gue-stemany (ní), fiel à pronuncia hebraica, no lugar de getsêmani usado. Os amigos o abandonam (Mt 26,38.40) e ele confirma, com liberdade, sua opção de fazer a vontade do Pai e salvar a humanidade.

O sim de Jesus nasce do amor sem reservas e sua liberdade é a do amor de quem encontra a própria vida, perdendo-a (cf. Mc 8,35). Como Jesus viveu sua liberdade, situada nas contradições históricas de sua época? Ele enfrentou a hipocrisia das autoridades judaicas , denunciando suas práticas, tornando-se livre de medos e preconceitos, apto a enfrentar tão poderosos adversários. É isto que a liberdade proporciona.

Discípulos do homem livre, os cristãos se esforçarão para fazer crescer, com a oração e com a vida, a experiência da liberdade em si mesmos e no mundo onde vivem, sem buscar a eficiência imediata ou o consenso exterior. Quem é verdadeiramente livre para o Pai e para os outros sabe se comportar diante do desconhecido, ou seja, crê para além de cada possibilidade, da possibilidade que é impossível, aquela que é a liberdade de Deus, revelada em Jesus e prometida na história (B. FORTE. Exercícios Espirituais do Vaticano. Ed. Vozes, 2005).

Em Jo 8 Jesus, ao dizer que a verdade nos libertará, faz a união, estabelece o diálogo entre a libertação (que é luz) e a verdade, que é ele próprio. Por isto, anima o povo ao afirmar que a libertação (com ele) está chegando aos que crêem:

[...] levantem-se e ergam a cabeça, porque a libertação de

vocês está próxima (Lc 21,28).

Jesus, um homem livre... livre para decidir e assumir suas opções. A entrega na cruz subentende liberdade. Ela é história do Filho, história do Pai e do Espírito. Trata-se da história trinitária de Deus, por amor, uma história de entrega e exílio, de luz e liberdade... Sob o aspecto teológico da fé, liberdade é adesão, vida cristã renovada e espiritualidade. Na liberdade que se comunica com a luz brota a vida nova, abundante. A gente pede a Deus água e ele dá um regato, um manancial, uma cascata...pede-se uma flor e ele dá um jardim, uma plantação de rosas...A quem pede uma árvore ele concede uma floresta, cheia de sombras, paz e perfume silvestre... Liberdade é graça e opção.

Eis que coloco à tua frente dois caminhos, o bem e o mal;

escolhe o bem e viverás (Dt 30,19).

A libertação deságua e se entrelaça em três questões:

1. do pecado

(Jo 8, 31-36; Rm 6,18-23;

2. da lei que escraviza

certas leis. pois injustas, anacrônicas e autoritárias ensejam o desejo de pecar (At 15,10; Rm 8,2; Gl 2,4; 5,1.13).

3. da morte

a morte é o salário do pecado (cf. Rm 6,23; 1Cor 15,56;

Em Jesus Cristo, o Pai instaura essa tríplice liberdade no mundo. A liberdade, ao eliminar o paradoxo da servidão, organiza a vida cristã de acordo com a “lei do Espírito” que nos torna filhos (cf. Rm 8,15) abertos à conversão e à solidariedade. A liberdade é operada por Jesus Cristo (cf. Jo 8,36; Gl 5,1) através do batismo. Ela é uma vocação, um dom, um convite a cada indivíduo... por esta liberdade, que vem do Alto, o cristão se distancia do “mundo”, das paixões e das “obras da carne”, como “impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, discórdias, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja, bebedeiras, orgias, e outras coisas semelhantes (cf. Gl 5, 19ss).

Onde está o Espírito do Senhor ali há liberdade (2Cor 3,17).

Deus desfruta de liberdade, desde sempre, e isto ficou evidente no momento em que decidiu criar ... A liberdade faz parte da sua essência. Um dos fundamentos da espiritualidade cristã e católica é a vivência da liberdade. Não é uma proposta teórica. É muito prática, porque sem liberdade é impossível falar em um verdadeiro amor. A liberdade vem implícita na missão de Jesus: “por em liberdade os oprimidos” (Lc 4, 18) e na destinação dos cristãos: “vocês foram chamados à liberdade” (Gl 5,1.13)

O cristianismo traz para o mundo a novidade de ser a religião da liberdade. Infelizmente nós não temos entendido isso, fazendo com que a nossa vida e a dos outros seja muitas vezes tão limitada. Ora, Jesus disse que veio para que tivéssemos vida em plenitude (cf. Jo 10,10) e isso é o que nós podemos viver e transmitir para o mundo. É outra novidade da nossa revelação.

O papel de Deus era pôr ordem no mundo, que, no começo, era puro caos, ou confusão. Como não gosta do feio, Deus criou enfeitando, deixando o mundo bonito. Por isso, em grego, a palavra mundo era cosmos, uma palavra que usamos até hoje no sentido de algo bonito, enfeitado, tanto que chamamos de cosméticos os produtos de beleza.

No Antigo Testamento a liberdade tem conotações ético-teológicas, pois é Javé quem liberta o povo, “da casa da servidão” (cf. Dt 15,15), e “das garras do Egito” (cf. Ex 14,30; 18,10). Esta libertação sociopolítica prefigura a liberdade do pecado, que vai ensejar a salvação. No terreno do livre-arbítrio supõe-se que o homem seja livre por opção própria, e responsável por seus atos (Gn 4,7; Js 24,15).

Desde o princípio Deus criou o homem livre e o entregou ao

poder de suas próprias decisões (Eclo 15,14).

A busca da liberdade é uma lição que nós também devemos aprender com os diversos carismas confiados a Pedro e a Paulo. É preciso que nos deixemos guiar pelo Espírito, tentando viver na liberdade, que encontra sua orientação na fé em Cristo e se concretiza no serviço aos irmãos.

É essencial sermos cada vez mais conformes com Cristo. É assim que se é realmente livre; assim se expressa em nós o núcleo mais profundo da lei: o amor a Deus e ao próximo. O respeito e a veneração que Paulo cultivou sempre pela Igreja de Cristo não diminuem quando ele defende com franqueza a verdade do evangelho. No caso do Concílio de Jerusalém, foi um momento de alguma tensão para a Igreja, dividida quanto à observância ou não das leis judaicas. A nós foi dada a liberdade para optar pelo bem ou pelo mal:

Deus colocou você diante do fogo e da água, e você

poderá estender a mão para aquilo que quiser (Eclo 15,16).

Neste sentido, a liberdade cristã não se identifica nunca com a libertinagem ou com o arbítrio de fazer o que se quer; ela se realiza em conformidade com Cristo e, por isso, no autêntico serviço aos irmãos, sobretudo aos mais necessitados.

O cristão é senhor livre de todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos. Estas duas frases se encontram claramente em 1Cor 9,19: “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos...” e adiante em Rm 13,8: “A ninguém fiquem devendo coisa alguma, exceto o amor com que vocês se amam uns aos outros.”. A única obra e prática dos cristãos deveriam consistir no seguinte: gravar em seu ser a palavra de Cristo, exercitar-se e fortalecer-se sem cessar nesta fé.

Onde está o Espírito do Senhor ai há liberdade (2Cor 3,17)

A liberdade dos filhos revela o apreço do Pai por sua criação. Só alguém com muita sabedoria é capaz de colocar esse precioso dom nas mãos da humanidade. Os escravos, os loucos e os irresponsáveis são privados do uso da liberdade, porque são julgados incapazes de fazer um bom uso dela. Aos filhos Deus dá a liberdade como prova de amor e de confiança. Ao ser humano, Deus concede a liberdade como força para enfrentar e vencer a batalha espiritual contra o mal.

No campo da terminologia acadêmica, a palavra liberdade surge por três vertentes, às quais podem corresponder três noções diferentes: a) o estado do homem livre (em oposição à escravidão); b) a liberdade moral que dimana do “livre arbítrio”; c) o evangelho como a “lei perfeita” da liberdade (cf. Tg 1,25). No Novo Testamento, a liberdade que possuímos a partir de Cristo (cf. Gl 2,4) significa uma liberdade redentora do “espírito de escravidão e do medo” (cf. Rm 8,15) que esteve tantas vezes inserido na “espiritualidade” judaica do Antigo Testamento.

Deduz-se, de tudo isso, que o cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e o próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor. Pela fé o cristão se eleva até Deus e de Deus se curva pelo amor; mas sempre permanece em Deus e no amor divino. Eis aí a liberdade verdadeira, espiritual e cristã, que livra o coração de todo o pecado, mandamento ou lei. É a liberdade que supera toda e qualquer injustiça, tal como os céus superam a terra.

Nas palavras ungidas de São Paulo vemos a liberdade formando um juízo unívoco com a essência divina (cf. 2Cor 3,17). Isto nos ensina que as estruturas sem Deus corrompem a liberdade. O homem nasce com sua liberdade girando em dois eixos: estado de homem livre (situação oposta a cativeiro) e liberdade moral (livre-arbítrio). Ainda nos escritos paulinos, vamos encontrar mais textos referentes à liberdade:

Vocês, meus irmãos, foram chamados para serem livres. Que

essa liberdade, porém não se torne desculpa para vocês

viverem satisfazendo os instintos egoístas. Pelo contrário,

coloquem-se a serviço uns dos outros” (Gl 5,13).

A consciência da liberdade e da dignidade do homem, conjugada com a afirmação dos direitos inalienáveis da pessoa e dos povos, é uma das características predominantes do nosso tempo. Ora, a liberdade exige condições de ordem econômica, social, política e cultural que tornem possível o seu pleno exercício. A viva percepção dos obstáculos que a impedem de se desenvolver e ofendem a dignidade humana encontra-se na origem das fortes aspirações à libertação que hoje fermentam em nosso mundo.

A Igreja de Cristo faz suas, tais aspirações, ao mesmo tempo em que exerce seu discernimento à luz do evangelho que, por sua própria natureza, é mensagem de liberdade e de libertação. Com efeito, essas aspirações assumem, às vezes, nos níveis quer teórico quer prático, expressões nem sempre conformes com a verdade do homem, tal como esta se manifesta à luz da sua criação e da sua redenção. Longe de terem perdido valor, aqueles desejos de liberdade se mostram cada vez mais pertinentes e oportunas.

A palavra de Jesus: “A verdade libertará vocês” (Jo 8,32) deve iluminar e guiar, neste terreno, todas as reflexões teológicas e todas as decisões pastorais. Essa verdade, que vem de Deus, tem o seu centro em Jesus Cristo, Salvador do mundo. Dele, que é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6), a Igreja recebe aquilo que ela oferece aos homens. No mistério do Verbo encarnado e redentor do mundo, ela vai buscar a verdade sobre o Pai e seu amor por nós como a verdade sobre o homem e sobre a sua liberdade. Contra os que afirmam que as ações humanas não são integralmente livres, pois são determinadas por outros fatores, Santo Tomás faz a seguinte declaração, com uma sutileza muito aguda:

A nenhum ser é dada em vão uma faculdade como a liberdade. Logo, o homem tem a capacidade de julgar e de refletir sobre tudo quanto pode operar, seja no uso das coisas exteriores, como no favorecer ou rejeitar as paixões internas; e isso seria inútil se o nosso querer fosse originado pelos astros e não pela nossa faculdade. Não é, portanto, possível que os astros sejam causa da nossa eleição voluntária (in: Summa Theologiae).

Mas a razão mais profunda com que Santo Tomás justifica a presença da liberdade na determinação das ações humanas é outra e tem como base a possibilidade que o homem tem de avaliar os limites e as carências das coisas que se oferecem à sua atenção e, conseqüentemente, de elegê-las ou repeli-las.

A análise teológica sobre a liberdade é muito rica e jamais se esgota. Cada escola, grupo social ou ideologia, tem suas pistas para obter a libertação. Desde que o mundo é mundo, ante a ameaça do mal, têm surgido muitas teorias a respeito do pleito mais plangente da humanidade: a libertação do mal.

Para os cristãos, Jesus Cristo, através da sua Verdade, é o autêntico libertador (Jo 8,32). Enquanto o mal é agente da mentira, Jesus é a “verdade que liberta”. Ora, a mentira escraviza, bloqueia, faz sofrer, trai e provoca uma derrocada na vida e nos projetos da humanidade. Quando ele traz a Verdade (“eu sou... Verdade...”), seu desejo é banir a mentira, e com ela todo o mal que separa os homens, de Deus e dos outros homens. Jesus é aquele que realiza a nossa libertação do mal. Para que haja uma libertação ampla e integral, alguns requisitos são necessários:

• que se reconheça a existência de uma situação de cativeiro e opressão;

• que exista um Libertador;

• que se tenha confiança em seu poder;

• que o oprimido queira se libertar.

Sem liberdade a Verdade não aparece, e ficamos com aquela impressão que o mal venceu. A pureza e a abertura do nosso coração nos liga àquela liberdade de ver as coisas velhas de outro jeito, de dizer e fazer coisas novas, de ir contra a maré das “idéias prontas”. É a liberdade de discordar, dissentir, decidir. Não se sabe até que ponto o livre-arbítrio é adequado às limitações do ser humano. Se todos estão aptos a assumir a liberdade de agir e responsabilizarem-se por tais ações, ainda é um assunto um tanto quanto obscuro. Com medo de ser livre, o filósofo J. P. Sartre († 1980) chegou a dizer que o homem é condenado à liberdade... O que será mais perigoso: a liberdade ou a falta dela? Somos livres para decidir entre o bem e o mal? Deus nos ajuda a decidir com liberdade, sem pressionar.

3. A VIDA NOVA

A vida nova começa com a ressurreição de Cristo e com a descida do Espírito Santo sobre sua Igreja. Já que ressuscitamos com Cristo, nada nos resta senão buscar, a todo custo, as coisas do alto. Onde está Cristo? Sentado à direita de Deus (Cl 3,1s). Mas quais são as coisas do alto que devemos buscar? Com certeza, é tudo aquilo que Jesus mesmo viveu, fazendo o bem a todos, a ponto de entregar a própria vida por todos: a justiça, o amor a Deus e ao próximo, a solidariedade, a misericórdia, o perdão, a paz, todo o empenho em favor da vida para todos. Por esses valores renunciamos às práticas do “homem velho” e aderimos à vida nova que Jesus veio instaurar no coração dos cristão.

Jovem, não aceite construir sua vida sobre outro alicerce que não seja Jesus Cristo. Comece sua vida nova agora (João Paulo II).

Para viver o novo de Jesus o que é preciso deixar para trás?

• abandone seus vícios, corrija seus defeitos grandes e pequenos

• deixe de lado ódios e inimizades

• renuncie a idéias radicais e arrogantes; dialogue mais

• pare de pensar que o mundo gira ao redor de você

• diga não ao egoísmo, à indiferença e à superficialidade

• afaste-se daquilo que é prejudicial a seu corpo e a seu espírito

Recordo, uma vez, faz quase trinta anos, foi um dos primeiros retiros que preguei, em João Pessoa, na Paraíba, para um grupo de senhoras da RCC e o tema proposto foi “Vida Nova”. Numa determinada hora, dei um pedaço de papel a cada pessoa e pedi que escrevessem ali todas as “coisas velhas”, pecados e defeitos que bloqueavam a instauração da “vida nova” proposta. Depois disso, fizemos uma oração de renúncia (aos problemas relacionados) e tudo fosse destruído numa bacia com fogo. É assim que se começa uma vida nova... A ressurreição de Jesus é uma novidade; uma realidade sempre nova. Não é somente um fato a ser lembrado. É uma vida a ser vivida. Nossa fé na ressurreição, que é dom de Deus, não é irracional, ilusória, nem alegórica.

Nossa fé é baseada no testemunho daquela “nuvem de testemunhas” já aqui aludidas. A espiritualidade pascal, fonte que alimenta a busca de uma “vida nova” consiste em viver como Cristo viveu e se entregou ao Pai pelo mundo. Os santos fizeram isso, sem deixarem de ser muito humanos. Esta vida nova ou espiritualidade nova vem de nossa inserção em Cristo no batismo. Não somos obrigados a nos conformar com o espírito do mundo (cf. Rm 12,2). Temos um evangelho a aderir uma vida da igreja a seguir, valores cristãos a abraçar, e sobretudo, o exemplo de Cristo a viver.

Como os primeiros cristãos, precisamos viver uma vida nova, uma nova espiritualidade, atuante, consciente e discernida. Para os judeus exilados, um resto (shear) que voltou (shub) a “vida nova” começou para quem teve iluminação para optar pelo retorno; muitos ficaram na escuridão do exílio na Babilônia. Outros, que ficaram na Palestina se deixaram dominar pelas trevas de um povo que se acovardou e perdeu sua liberdade

4. O DIÁLOGO

O que quer dizer diálogo? onde luz e liberdade se abraçam num diálogo obsequioso? O verbete diálogo vem do grego, diálogos, onde diá aponta para “dois pontos” e logos se refere a palavras. Trata-se da fala em que há a interação entre dois ou mais indivíduos; colóquio, conversa é um contato ou discussão entre duas partes em busca de um acordo. Nesse aspecto, o diálogo sempre subentende a comunicação entre duas inteligências ou valores, num mesmo nível de sintonia, em um canal necessariamente de mão-dupla. Como luz e liberdade podem se comunicar para dialogar? É preciso reunir essas tuas teses em convergência, sem oposição. Assim como justiça e paz se abraçam, fé e amor se complementam, também luz e liberdade têm condições de estabelecer uma sintonia no sentido de buscar a vida nova preconizada por Jesus.

Como disse na abertura, não quis fazer um confronto entre luz e liberdade; elas nada têm de antagônico, mas de harmônico. Como duas teses, elas, e foi visto neste trabalho, não geram uma síntese, onde uma se funda sobre os escombros da outra, mas resulta – isto sim – no surgimento de uma super-tese, onde ambas convergem, se apóiam, dão suporte uma à outra, e são capazes de estabelecer, pelo diálogo realizado, um itinerário. Em nosso caso, um itinerário cristão, de vida nova, a partir da práxis do Ressuscitado. Ele é luz e liberdade.

Esta meditação de espiritualidade, utilizada em um retiro, pela riqueza que permite respigar, irá, depois de ampliada, se tornar um livro.

Texto-base de um retiro para padres levado a efeito em abril de 2010 no interior de São Paulo. O autor é Biblista e Doutor Teologia Moral. Autor de mais de uma centena de livros, entre eles “Jesus Cristo, a libertação de Javé”, Ed. Ave-Maria, 1999.