E a água se fez vinho... (SERMO LXXIX)

E A ÁGUA SE FEZ VINHO...

Tu, porém guardaste o melhor vinho para o fim... (Jo 2, 3)

No evangelho de João os milagres são habilmente escolhidos, e via-de-regra entrelaçados com discursos de Jesus e reflexões do autor, constituindo “sinais” da ação concreta da glória do Verbo de Deus. O próprio evangelista indica a finalidade de sua obra:

...para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, Filho de Deus e,

crendo, tenham a vida em seu nome (20,31).

João é o apóstolo que “viu e creu”, e por essa razão quer confirmar a fé dos que “não viram e creram”. Sob esse enfoque, o evangelho de João leva os leitores a tomar uma decisão entre duas possibilidades. De um lado, estão as trevas, a cegueira, o mal, o mundo, o príncipe do mundo; de outro lado está a luz significada por conceitos como ver, Espírito, a água viva, o pão da vida, a luz do mundo, o amor de Deus. Optar pelas trevas é “perecer”; optar pela luz é “ter a vida eterna”. Nesta luta, a cruz ocupa um lugar central. Quando chegar a “hora”, a sua crucifixão, Jesus triunfará sobre as trevas e entrará na glória, passando deste mundo ao Pai. Quem crê em Jesus participa, sem dúvida, dessa vitória.

As antigas homilias e catequeses do passado tornaram o episódio de Caná um fato corriqueiro demais. A visão popular conta que houve uma festa, faltou vinho, Jesus foi à cozinha, fez um “abracadabra” e transformou a água em vinho. Nós sempre fomos mais ou menos condicionados a uma interpretação bem simples, simplória até, eu diria, de um fato riquíssimo em significados, especialmente no que se tange à cristologia e à nova lei, que toma o lugar da antiga.

No Novo Testamento, esta alegoria bíblica é retomada em um sentido mais profundo, quando o próprio Filho de Deus, encarnando-se desposa a humanidade, unindo-a intimamente a si. Esta é a razão pela qual, quando Jesus quer expressar a alegria do Reino, ele estabelece uma comparação com uma festa de casamento. A festa em Caná lembra, de fato, a relação de amor, de intimidade e de comunhão que Cristo veio estabelecer com seu povo.

Numa festa de casamento

A narrativa das “bodas de Caná” é conhecida por todos. Pena que às vezes não se consiga enxergar muito mais além do milagre da água transformada em vinho. Embora o fato de transformar taumaturgicamente água em vinho não seja simples, há no contexto, atrás do pano, algo fantástico que precisa ser bem dissecado. A gente, às vezes sofre a tentação de apenas querer ver o fenômeno físico, sem estabelecer uma leitura mais detalhada, com profundidade, de todo o acontecimento. Trata-se de um texto muito rico, uma fonte inesgotável de reflexões, e que às vezes nos passa despercebido. O evangelho de João possui uma riqueza teológica até hoje parcimoniosamente explorada.

Quando se fala na modéstia de Caná (é uma cidade pequena até hoje) surge a questão: Por que Caná? Na Palestina era voz corrente que não surgiria nenhum profeta da Galiléia. O começo dos sinais, a partir da Galiléia, é visto, por muitos biblistas como uma ironia teológica de Jesus: justamente a partir de um lugar desacreditado que ele dá início à sua vida pública. É a primeira manifestação do “profeta por excelência”.

As festas de casamento no Oriente Médio chegavam a levar uma semana. Hoje, em algumas regiões, não é muito diferente. Havia o evento formal, o pacto que os pais dos noivos firmavam em nome destes, ocorria a cerimônia, e os noivos iam para seus aposentos, mas alguns convidados permaneciam na festa, por vários dias, enquanto durasse a comida e o vinho, outros iam e vinham, dedicando-se a seus afazeres e também à festa. Comia-se pão, ervas, bolos e carneiro assado. A bebida era só vinho, em geral feito em casa, uma semana antes da festa. Além disto, pelos desdobramentos afetivos, culturais e de relações familiares, as festas de casamento eram o ponto alto da vida social daquele povo simples. A narrativa do Evangelho de São João nos fala claramente, sem meias palavras, que,

No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná

da Galiléia (Jo 2,1)

A nova lei

A grande verdade é que a lei de Moisés, mercê muitos séculos de interpretação, feita pelos doutores, sacerdotes e fariseus, apresentava lacunas, falhas na aplicação, e casuísmos sociais, conforme a classe dominante. Os constantes exílios, as dominações estrangeiras, a fome e a miséria do povo, tudo contribuiu para que a lei dos judeus experimentasse uma decadência.

A narrativa de Caná começa com uma festa de casamento, diferente das demais: nessa faltou o vinho. Isto foi dito no tópico anterior. Fugindo do óbvio e penetrando na linha da interpretação, podemos ver nesse casamento, a união de Deus com a humanidade: a nova aliança, na qual Deus quer demonstrar sua generosidade, retratada na alegria e na fartura. Ter vinho em uma casa, em uma mesa, era sinal de felicidade. Onde não tivesse vinho, as pessoas não seriam felizes... A partir do sinal de Caná, essa abundância começa a se delinear de forma clara, vigorosa e definitiva. E sobretudo teológica.

Para que a nova lei, de cuja essência o vinho novo de Caná faz a tipologia e o paradigma, passasse a vigir, seria preciso que houvesse uma mudança de mentalidade, transformação de corações, enfim, uma conversão. Essa metánoia, (a mudança de atitudes preconizada em Mc 1,15) foi exigida dos homens daquele tempo e igualmente dos cristãos de hoje. Sem a mudança do receptáculo (o coração) o vinho (a graça de Deus) se perde. O novo de Deus, que ultrapassa todo o entendimento humano, não cabe em espíritos bitolados, capazes de resistir à luz do Espírito Santo:

Não se coloca vinho novo em odres velhos (Mt 9, 17).

A falta do vinho, os cântaros cheios de água e o milagre da transformação, trazem consigo toda a temática da mudança que começa com o tempo do Messias. Essa mudança é o cerne da boa notícia de Jesus. E João já deixa isso claro em seu prólogo que, qual a introdução do livro do Gênese, relata uma nova Criação. O resgatar os que estavam submetidos à Lei, dito por São Paulo significa a novidade do cristianismo. A luz de Deus criada no primeiro dia agora veio ao mundo de forma eficaz e definitiva. Em Jesus, Deus vai além, humaniza-se, oferece sua amizade, acenando com uma nova e atual aliança. Para tanto, Jesus, o logos, a Palavra de Deus, se fez homem e veio aos seus.

A substituição, que Caná preconiza, como que revoga a Lei antiga, velha, cheia de lacunas, meio caduca, trocando-a pela novidade do Evangelho, a nova Lei do Amor. Tanto assim que a festa, depois da instauração da Boa Notícia na sociedade humana, vista comparativamente pelo vinho novo, não tem paralelos:

Você, porém, guardou o vinho bom até agora (v. 10).

Sem Jesus, a humanidade vive a triste realidade de uma festa de casamento sem vinho. Já imaginaram como é sem graça uma festa sem alegria? Fica um clima quase de velório. Assim é a humanidade presa aos quesitos da Lei, como um jugo, sem a liberdade dos filhos. Sua relação com Deus é insatisfatória, sem gosto, despida de alegria. A água, usada na purificação dos judeus não era uma água qualquer, mas ritual (talvez como a “água benta” de hoje ou a acquasantiera dos italianos), destinada às abluções das pessoas da casa, própria para lavar as mãos e o rosto. Equivalia a lavar o espírito, livrar-se das impurezas, segundo a lei de Moisés.

Depois da substituição, da água pelo vinho, ocorrida em Caná, a purificação não vem mais da lei mosaica (água), mas da observância do Evangelho (o vinho novo). O cristão torna-se purificado e justificado em virtude do batismo e da crença nas verdades reveladas, a Palavra que Cristo anunciou. Entre os símbolos apresentados pelo Evangelho, este (o vinho) é o mais usado na literatura exegética e na liturgia. Ele permite dar maior relevo à preparação histórica da vinda de Cristo, como num sentido mais franco, à preparação de cada alma para recebê-lo, sem correr o risco de forçá-las.

Na substituição do vinho inferior, que veio a faltar, pelo vinho melhor, vê-se, sobretudo o progresso assinalado pela Nova Aliança, com relação à Antiga que fora completa. Jesus vem à nossa vida e, inspirado por sua mãe, muda as coisas e as circunstâncias. E muda para melhor:

A Boa-Notícia

Ao contrário dos outros Evangelhos, que são sinóticos, no Quarto Evangelho Jesus não fala em parábolas nem usa discursos com frases lapidares, mas expõe sua doutrina em longos, vigorosos e misteriosos discursos. O Cristo do kérygma, cujas atividades messiânicas são descritas pelo evangelista João com invulgar iluminação, realiza o seu ministério quase todo em Jerusalém, exceto os dois primeiros sinais, que foram realizados na Galiléia, no vestíbulo de sua vida pública.

Na verdade, o que distingue o Evangelho de João dos demais é a profundidade com que penetra na vida de Jesus. João é o apóstolo que, guiado pelo Espírito, percorreu todo o caminho para a verdade total. Ocorre, efetivamente, em Caná, por se tratar da primeira aparição pública de Jesus (segundo João), como que um índice temático capaz de evidenciar toda a sua atividade.

No Evangelho de Mateus, Jesus profere as chamadas “bem-aventuranças”. Em Lucas, a ênfase é para a descrição da infância, humana e humilde de Jesus. Em Marcos, o ponto de interesse é o chamado do grupo apostólico. Pois, em João, a primeira atividade de Jesus ocorre em uma festa de casamento, quando veio a faltar vinho. Talvez por isso ele, em mais de uma oportunidade, comparou o Reino dos céus a um banquete nupcial.

Um casamento, via-de-regra, é uma notícia agradável e um ponderável motivo para a realização de uma festa. O fato de acontecer um casamento impõe uma celebração. Hoje em dia, a gente recebe o convite, dos noivos ou de seus pais, com uma boa antecedência, primeiro para ver se tem uma roupa adequada, depois para comprar o presente, e nesse meio tempo já ir antegozando a alegria da solenidade. As festas bíblicas de casamento trazem consigo um significado de comunhão, uma relação inefável de amor de Deus com a humanidade.

O sinal de Caná, a idéia de substituição que dele dimana, funciona como que uma “dobradiça” entre o velho e o novo. O milagre de Caná é, portanto, voltando ao raciocínio anterior, tipo da substituição das alianças, da antiga pela nova (e definitiva) em Cristo. Deste modo, perdem sua atualidade, o templo, a lei, os mediadores da antiga aliança e o culto ritual. Na narrativa do diálogo de Jesus com a samaritana, observa-se que num determinado momento, a mulher deixa o balde com água, no chão (o judaísmo) e, inebriada pela “água viva” (o cristianismo) que lhe é oferecida, vai anunciar a boa-notícia ao povo de sua aldeia. Quando falta o vinho, quer dizer, na prática, que os costumes se azedaram, as relações deterioram e a religião é insossa e insuficiente para fazer as pessoas felizes.

A riqueza da simbologia do vinho de Caná nos mostra que ele não se refere só à Palavra reveladora de Jesus Cristo, mas traz consigo também uma ponderável dimensão escatológica, como Palavra última, definitiva e, por isso mesmo, salvadora. O ato de encher até a boca as vasilhas se refere prioritariamente à existência de uma revelação nova, atual, plena e total. É possível ver aqui a existência de dois vinhos. O primeiro é material, produzido (ou comprado) pela família da noiva. Já o segundo é melhor porque é espiritual, e por isso ganha, do evangelista, o qualificativo kalón (bom, mais bom, melhor), aquele que é trazido pelo esposo Jesus, em face de suas núpcias espirituais e escatológicas. O templo de pedra passa a dar lugar ao Cristo-templo.

O mestre-sala chamou o noivo imaginando que ele havia de alguma maneira, suprido aquele vinho de qualidade superior. Ele não viu o sinal de Jesus. Só os serventes o contemplaram. Sobre a substituição miraculosa da água pelo vinho há outra reflexão digna de nota. O evangelista utiliza, para o ato de tirar, um verbo bastante revelador, que no grego dá o sentido de tirar água de uma fonte e não de um recipiente qualquer.

No diálogo com a samaritana Jesus fala em tirar a “água viva”. Aqui Jesus, autor do Evangelho e da lei nova, é a fonte. Os servos tiraram o “vinho novo” não mais das talhas de barro, mas do próprio Jesus. O vinho de melhor qualidade é a essência da mudança que o cristianismo vem implementar. Caná é passagem da água de João Batista para o vinho do Espírito Santo e do fogo.

A ressurreição, o sinal por excelência, traz á tona o vinho novo de Caná. A água (a morte sem remédio) é substituída pelo vinho (a ressurreição). O homem velho do judaísmo, para usar a figura paulina, perdeu seu sentido de vida. Em Jesus surge uma nova criação, animada pela alegria, vigor e ternura de Deus, que preparou para seus eleitos, um novo céu e uma nova terra. O homem novo, renovado pelo poder de Deus, tem destinação divina. Mesmo no meio das angústias e dos sobressaltos deste mundo, ele vive a comunhão com Deus e, embora morra (como Lázaro), ele vai continuar (como Jesus) vivendo no coração de Deus.

Os seis potes de pedra, utilizados para a purificação dos judeus (e que não os purificava muito), eram mais um símbolo ritual do que uma expressão de espiritualidade. Igualmente, quando o menino Jesus é apresentado no templo, o velho Simeão pode despedir-se, pois sua intuição profética o fez ver a mudança, a substituição do velho pelo novo. Seis é um número imperfeito. Jesus é que dá perfeição à água. Como os judeus afirmavam que a água dos potes servia, mais do que pelo aspecto físico e sanitário, para uma limpeza espiritual, Jesus e seus discípulos, mais de uma vez, fizeram as refeições sem lavar as mãos.

A narrativa do milagre de Caná traz consigo um forte apelo cristológico, onde se ressalta a idéia de um casamento de Cristo com o ser humano. O esposo ama a humanidade, ensina-a, nutre-a e se entrega por ela. A mensagem profética de Oséias está toda ela impregnada de um vigoroso simbolismo nupcial. O profeta amava sua mulher, que se desviava, entregando-se a amantes. Ele usa a alegoria do adultério para caracterizar a ruptura da aliança do homem com o Deus libertador. Essa quebra de aliança com Deus, não consiste apenas em adorar ídolos, como fazia o povo judeu, mas no exercício da vida comum, civil, política, social, econômica, religiosa, longe daquela fidelidade preconizada pela ética do bem comum.

O vinho novo é o evangelho, nova lei do amor e do perdão. Não se pode colocá-lo num coração velho, arranhado pelo pecado e deturpado pelos maus costumes. A combinação não é salutar. O vinho novo deve ser guardado num coração novo, aberto à boa notícia, convertido. Ele não cabe em barris velhos (corações fechados, indiferentes). A alocução de Maria aos serventes, de denso conteúdo cristológico e soteriológico, vai além dos limites daquela casa modesta e daquela vila obscura na pobre Nazaré:

A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo: “Façam o

(TUDO) O que ele mandar” (v. 5)

Com estas palavras, Maria dá a entender que Jesus seria muito mais que um “quebra-galho” eventual, mas alguém cuja intervenção, a partir dali, serviria para arrancar o homem do império da servidão do pecado e da lei pela lei, para conduzi-lo à casa do Pai. Esta recomendação, como um conselho, é talvez, junto com o sinal de transformação da água em vinho, o ponto mais marcante da narrativa. Atenta, Maria sente que o vinho faltou. A antiga Lei já era insuficiente para os anseios humanos, e a mãe tem a sensibilidade de detectar tal caducidade.

No passado, na iminência de uma grande fome, o tempo das “vacas magras”, o Faraó do Egito também disse ao povo que fizesse tudo o que o provedor José mandasse. Em Caná, o aperto se refere à falta de vinho. No nosso dia-a-dia, pleno de egoísmo e individualidade, Maria recomenda a nós, pobres pecadores, carentes da graça divina, seguir o mandamento do amor. O que no Egito representou fartura de trigo e pão, e em Caná, de vinho, hoje tem o significado da generosidade de Deus, da abundância dos dons do seu amor, da graça de Jesus e das luzes do Espírito. Para expressar essa fartura – nunca é demais repetir – os serventes encheram os potes até a boca...

A grande lição cristológica que o texto nos permite tirar é que o que Jesus Cristo introduz no mundo (vinho novo, abundante) é superior ao que existia (vinho velho, inferior, que faltou). A antiga lei não contemplava mais as aspirações e as expectativas da humanidade. Jesus chega na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4), se faz homem e promulga a nova lei. Não mais do temor, mas do amor. No êxodo nascia, pela páscoa do Egito, o povo de Israel.

Em Caná, pela substituição da água pelo vinho, nasce o novo Israel, o povo escolhido, seguidor do Cordeiro. Entre o Sinai e Caná há muitas semelhanças. Por causa disso, Maria é figura da Igreja, a mãe espiritual dos que crêem, bem-aventurada porque acreditou e estrela de invulgar magnitude da evangelização.

Foi assim, em Caná da Galiléia, que Jesus começou seus

sinais. Ele manifestou a sua glória, e seus discípulos creram

nele. (v. 11)

A expressão começo dos sinais está a nos dizer que os sinais de Jesus não param em Caná. Os sinais de Deus, efetuados por Jesus se propagam por tempo e espaço, e se fazem sentir onde seja necessária sua presença. Vê-se os sinais através dos olhos da nossa fé. Os sinais, segundo João, servem para revelar o poder de Deus e levar-nos a crer no seu Cristo.

O acontecimento de Caná, em termos de boa notícia e de libertação da antiga lei, é a síntese do que Jesus vai realizar: ele vai transformar, por sua Palavra e Ação, as relações dos homens. Com Deus e com eles mesmos. A expressão manifestar a glória dele (de Deus), que aparece no v. 11, é um tema usado por João várias vezes.

O cristão assume em si o fulgor da glória de Cristo. Essa glória não é passageira como a de Moisés, mas crescente e perene. A vida sobrenatural é a participação na glória de Jesus Cristo. No princípio dos sinais, Jesus manifestou sua glória e poder, e – diz o evangelista – os discípulos creram nele. A ação de Jesus, ao resolver a pendência dos noivos foi sinalizar que sua presença é uma atitude de doação e disponibilidade perenes. Como não crer, quando Deus se manifesta de forma tão vigorosa? Quem tem a abundância do vinho novo da graça de Deus não sente saudade da salobre água da cisterna do pecado.

A mediação materna de Maria

Na nova aliança que se instaura a partir de Caná, Maria, a mãe de Jesus, torna-se símbolo e tipo da comunidade que nasce da fé e age a partir da crença no Filho de Deus. Ela faz a mediação entre a carência humana e o poder do seu Filho, trazendo o alívio para a falta de amor, interesse e alegria, tão comuns à humanidade destroçada pelo pecado e pelo materialismo. A sensibilidade da Virgem Maria é o sinal da mediação materna que se instaura a partir dali.

Quando se fala no mistério da mediação materna de Maria, temos no episódio de Caná o grande demonstrativo. A festa se desenvolvia com normalidade; todos conversavam, bebiam, estavam alegres. Ninguém viu que o vinho havia terminado. Talvez nem mesmo o descuidado mestre-sala; o noivo, muito menos. Nessa hora, a sensibilidade materna de Maria vê o fato, visualiza o problema, avalia o constrangimento e vai falar com Jesus, na busca de uma solução em favor do apuro dos noivos, que se afigurava como grave.

Induzido pela mãe, mesmo dentro da controvérsia da hora inadequada, Jesus decide fazer ali seu primeiro sinal, que seria tipo dos demais. Maria, ao instar com o filho uma solução para o problema dos noivos, representa o início da comunidade cristã, a bradar um maranata, um grito de fé que pede a presença de Jesus com seu poder transformador. Talvez por isso, mesmo reconhecendo a condição humana de Maria, São Bernardo chama a mãe de Jesus de “onipotência suplicante”.

A mãe de Jesus é, para João, testemunha e protagonista na própria vida de seu filho. Sua presença, no começo (Caná) e no fim (Calvário), no exórdio e no desfecho, é como a irrupção súbita, fugaz, mas consistentemente iluminadora, como um relâmpago, comparável à voz do Pai, no Batismo e na Transfiguração. Por ser mãe carnal de Jesus e espiritual do grupo apostólico, a Igreja, desde cedo, viu em Maria a maternidade universal de todos aqueles que seguem, amam e proclamam o Reino do Ressuscitado.

Um convidado de peso

O ato de convidar Jesus para a festa, como fizeram os noivos em Caná, significa reconhecer nele um convidado de peso, alguém da família, uma visita importante. Enfim, um amigo do peito. Ora, como a expressão festa de casamento, pelo sentido de aliança que nela vem implícito, significa a comunhão do Divino com o humano, convidar Jesus para a festa tem um sentido de adesão. O fato de se fazer presente, como convidado, em nossa “festa” equivale a dizê-lo integrante de nossa vida espiritual.

Na mudança da água em vinho, ocorre a substituição do temor pelo amor. A religião verdadeira não se baseia no medo, mas no amor. Os potes de pedra, de mais ou menos cem litros cada um, inserem-se como uma primeira pia batismal ou cálice da consagração do cristianismo que se iniciava.

Assim como, no Antigo Testamento, Moisés tirou, miraculosamente, água da pedra para matar temporariamente a sede do povo, Jesus, no novo, tirou vinho da talha de pedra, para matar definitivamente a sede de Infinito do seu povo. A descrição das talhas, com água, usadas para a purificação dos judeus, denota que o evangelista buscou uma explicação detalhada do evento, por certo endereçada a leitores não-judeus. Igualmente, ao referir-se a seis potes de barro, o evangelista, através do número seis, parece querer expressar uma idéia de coisa incompleta. O completo, o perfeito, era expresso pelos judeus através do número sete. Ora, nesse ângulo de visada, o número 6 revela algo imperfeito (o judaísmo), como que à espera de uma perfeição (Cristo). Jesus chega e implanta a nova lei (o evangelho, a boa notícia da salvação).

Se o vinho antigo (que faltou) e a água (sem sabor) representam os rigores (nem sempre coerentes) da antiga lei dos judeus, o novo reflete a lei nova, do amor, da entrega e do perdão. O vinho novo de Caná, além de ser o primeiro sinal, é também o protótipo, a fôrma dos demais. O sinal de Caná no começo do Evangelho traz consigo um significado de princípio.

É importante para todos, e em especial para quem tem fé, depositar confiança em Jesus. Quando Pedro resolve, a mando de Jesus, caminhar sobre as águas, num determinado instante o apóstolo vacila, e porque vacila (a perda da fé e da confiança) começa a afundar, é a Jesus que ele clama (cf. Mt 14, 30), embora, sendo pescador, certamente sabia nadar. A esperança de quem crê em Jesus nunca é defraudada... Disso podemos ter absoluta certeza.

Se proclamas com teus lábios que Jesus é o Senhor, e com

teu coração crês que Deus o ressuscitou dos mortos, serás

salvo (Rm 10,9).

Socorro na adversidade

A ocorrência do primeiro milagre de Jesus em uma festa de casamento, deixa claro que ele estava abrindo sua vida pública com bênção e presença à festa de união de um casal. Com Jesus presente no lar cristão, fica sempre mais fácil, transformar água (indiferença) em vinho (amor sempre novo e capitoso). Jesus nunca deixa a oração e a expectativa daquele que crê se perder no vazio. Ele sempre faz o que promete; sua palavra é veraz. Aos que crêem no nome de Jesus, ele manifesta sua glória, cheia de amor e felicidade (cf. 1, 14). Essa glória divina se manifesta desde o princípio da história do povo de Deus (cf. Ex 4, 30s).

Não é raro se ver noivos em busca de um “convidado de peso”, alguém que possa bancar a festa, que empreste a casa para o coquetel, pague alguma despesa, ou leve a noiva à igreja, no carro de último tipo. Por que tantos se lembram de pessoas, coisas, sistemas e esquecem aquele que, por ser paz, pode trazer a paz?

“Eles não têm mais vinho!” – esta frase da Mãe de Jesus pode ressoar em nós em múltiplos níveis. O vinho do casamento acabou! Isso pode ser uma forma de dizer que, após a embriaguez dos primeiros tempos, deixa de haver amor, deixa de haver a alegria de viver juntos. O milagre de Caná pode ser usado, especialmente na pastoral do matrimônio, como uma alegoria capaz de refletir a necessidade da presença de Jesus na vida dos casais.

Por conta disto, muitos usam o texto das “bodas de Caná” (Jo 2, 1-11) para iluminar a liturgia em cerimônias de casamento, bodas de prata, etc. É fácil entender porque os cristãos de todos os tempos vão a Maria, quando alguma coisa aperta. Sabem que ela é sensível a qualquer necessidade, e que Jesus sempre a atende, generosamente. O pedido dela ao filho é como se fosse uma ordem. Por isto ela é chamada de onipotência suplicante. O “eles não têm mais vinho” refere-se a uma constatação histórica de um fato corrido há cerca de 2000 anos, como também pode significar, hoje, um clamor, uma súplica.

Não há nada mais “solúvel” ao tempo do que o amor humano, sujeito a fases, crises, humores. O “indissolúvel” não acontece sozinho, mas com a participação daquele que não é mortal, e que é capaz de mudar água em vinho, desinteresse em amor renovado. Só aquele “convidado de peso” pode colocar as coisas no devido lugar.

“Tu guardaste o melhor vinho para o fim...”

O vinho antigamente durava mais, e era sinônimo não só de alegria, mas também de prosperidade e de continuidade. A comparação com o vinho velho indicava sabedoria, relações enraizadas, segurança. O verbete vinho aparece, só no Antigo Testamento, por volta de trinta vezes. O fato de os serventes encherem as vasilhas até a boca, evidencia que a expectativa de abundância do vinho novo (a nova lei) era como a irrupção de uma generosidade nunca vista. Igualmente, o comentário do mestre-sala ao noivo,

Você, porém, guardou o vinho bom até agora (v. 10)

revela, no que tange à qualidade, que o vinho trazido por Jesus suplantou o anterior. A figura do vinho caracterizando a Palavra de Cristo, o Evangelho, a nova lei, é antiga. Desde o período da Patrística já se compara a água à antiga lei e aos textos dos profetas, enquanto o vinho faz lembrar a graça da boa notícia. Cristo conservou o melhor vinho até agora, isto é, o seu Evangelho.

É inegável a visão do vinho, superior e abundante, como um símbolo da fartura dos bens espirituais na era messiânica. No Antigo Testamento já se falava que o amor a Deus, às suas palavras, era semelhante a uma embriaguez. Igualmente era forte a comparação, na antiguidade, entre a Torá e a sabedoria de Deus à videira e ao vinho. O primeiro vinho foi bom para um determinado período histórico. Depois faltou... se tornou insuficiente. O segundo vinho, revelou-se melhor, definitivo, como sempre.

Que não se entenda que a antiga lei não prestava. Afinal, ela fora promulgada por Javé, no Sinai, e entregue a Moisés. A lei de Deus é perfeita. Com o passar do tempo, porém, o povo (e especialmente as autoridades) foi desvirtuando-a, dando-lhe novas interpretações de aspecto formal, sem penetrar na instância mais íntima, onde Deus coloca seus preceitos morais no coração do homem.

Jesus veio modificar essa forma de ver e seguir a lei. Tanto assim que no “sermão da montanha”, ele afirma que não veio abolir a lei (afinal, ela tem origens divinas), mas humanizá-la. Para o milagre de Caná, o simbolismo é rico e simples. Jesus muda a água da letra no vinho do Espírito. Herdando a antiga lei, transforma-a na graça do Evangelho. Com a ação de sua graça, muda ao mesmo tempo os corações dos que são por ele chamados à novidade de vida na novidade da inteligência, e já transforma a sua condição mortal, depositando nela o germe da Ressurreição final.

Em Caná, pelo mistério da água que se fez vinho novo, adquire-se a certeza, alicerçada na fé, de que Jesus é a nova parreira, que dá uvas, que dão um vinho generoso. Ao substituir a água pelo vinho ele nos dá o sinal da doação, mais adiante, doação perene do seu sangue, capaz de purificar a humanidade. O milagre de Caná pode ser repetido, no dia-a-dia das famílias, onde houver amor, perdão, e entrega a um ideal. Com Deus vivendo em seu meio, as famílias têm todas as chances de firmar sua casa sobre uma rocha. Como na festa longínqua, na obscura vila de Caná, Jesus pode, se nós quisermos transformar outra vez, água em vinho. Maria, sua mãe, sensível e atenta, também presente à festa de nosso dia-a-dia, não se cansa de nos exortar:

Façam tudo o que ele mandar!

A falta do vinho é vista, há séculos, sob a visão da pastoral familiar, como o esfriamento do amor conjugal. Faltar o vinho significa faltar o amor, a cumplicidade, a fidelidade, o perdão. Algumas pessoas não têm em si a experiência do amor de Deus, e por isso não sabem amar, tornando-se incapazes de ler os sinais que ocorrem em suas vidas.

Jesus fez seu primeiro milagre numa festa típica do seu povo, onde havia vinho, mesa farta e muita música. Mostrou assim que era um Deus humano, e o resultado disso foi que o povo acreditou nele. Se o conselho de Maria, no sentido de fazermos o que Jesus manda, não for atendido, nossa festa, cristianismo, matrimônio, vida ou profissão, tudo estará condenado ao insucesso, como tantos que conhecemos por aí. Sem a presença dele em nossa festa, o insucesso é certo. Se alguém, por falta de conhecimento, ou esquecimento, não souber tudo o que Jesus mandou que seus amigos fizessem para serem felizes, vale transcrever apenas um tópico, que é o bastante:

Dou a vocês um mandamento novo: que vocês se amem como

eu os amei; nisso os outros saberão que vocês são meus

amigos de verdade...(Jo 13, 34s).

Ouvindo o testemunho do amor renovado de casais, casados há muitos anos, cuja vida a dois, depois da passagem de Jesus mudou da água para o vinho, nunca nos cansamos de afirmar: “vocês guardaram o melhor vinho para o fim...”.

Conclusão

Não é demais recordar, que através do sinal do vinho de Caná, Jesus começa a se revelar como Messias e Filho de Deus. Com isso queremos dizer que Caná tem também um sentido pastoral, pois a partir dali nasce a fé dos discípulos. Poderíamos ir até mais longe, dizendo que a partir de Caná, do evento da transformação da água em vinho nasce a fé da Igreja.

Para quem está atento à Palavra de Deus, aos ensinamentos sagrados, aos textos do Evangelho, é imprescindível a atualização do fato. O que Jesus quis dizer com o primeiro sinal, ao transformar a água em vinho? Em que seu gesto, ocorrido há dois mil anos atrás, tem hoje algum significado prático, catequético e evangelizador para nossa vida? O aspecto vida, não se restringe somente a anos vividos, a qualidade de vida, ou opulência, mas à vida na graça, na amizade com Deus.

Em nossa vida, seja ela pessoal, familiar ou comunitária, há momentos em que o vinho falta. São as seqüelas oriundas do barro de Adão, como as rotinas, o costume do “sempre se fez assim”, o esquecimento de certos valores, a soberba, as concessões... E com isso nossa vida vai perdendo o sabor, nossa festa despindo-se de alegria, os convidados – que somos nós mesmos – se manifestam entediados, e tudo perde o sentido. Os noivos convidaram Jesus (e sua mãe) para a festa, e a transformação aconteceu. Será que, às vezes, nossa vida não apresenta aquela transformação desejada (ou esperada) por que a gente deixou Jesus de fora de nossa festa?

Ao ler a narrativa da festa de casamento em Caná da Galiléia, onde Jesus fez o milagre, transformando a água (o passado) em vinho (o futuro), quais os projetos que podemos assumir, para abrir nossas portas a ele, convertendo nossa vida, quem sabe de pecado, ou de indiferença, em novas atitudes de amor, fé, solidariedade e perdão? Caná sintetiza o projeto de “vida nova” colimado na encarnação e instaurado após a ressurreição. A mudança da água em vinho é o que os biblistas chamam de “teologia da substituição”. A partir dali o novo substitui o velho, a graça vence as trevas do pecado, a Igreja assume o lugar do templo, o bem suplanta o mal...

Talvez esta seja a nossa hora, a de substituirmos os valores velhos por outros mais novos, experimentando a novidade sempre atual do Evangelho de Jesus. Os sinais de Jesus são para nós não uma mera letra morta, literatura, ou história antiga, mas lições, objetivas, atuais e interpeladoras. Se escutamos as palavras de Maria, se pedimos a ajuda de Jesus, poderemos ver, como os convidados daquela festa, o milagre acontecer. O milagre da renovação de nossa vida. A Nova Lei, promulgada na Cruz e na Ressurreição, não é apenas uma “outra lei”, mas a lei que dimana da nova e eterna aliança.

O vinho novo de Caná é a antecipação da generosidade do sangue da cruz; ele prefigura a mudança, do velho para o novo. Nossa vida é sinal dessa nova ordem que Jesus veio instaurar? Ou ainda estamos presos ao legalismo opressor das coisas passadas? Cristianismo é novidade. Nos primórdios da Igreja, Deus diz ao vidente de Patmos:

Eis que faço novas todas as coisas (Ap 21, 5).

Essa renovação, que deve banhar todo o nosso ser, a partir do coração, tem no episódio de Caná, na mudança do vinho velho no novo, da água sem gosto, no vinho saboroso, seu ponto de partida e seu sinal referencial. O batismo, ao nos infundir vida nova, aponta para essa mudança.

Tu, porém guardaste o melhor vinho para o fim...

Em Caná a sensibilidade de Maria viu a carência dos noivos, Jesus supriu suas necessidades, os serventes obedeceram e

A ÁGUA SE FEZ VINHO...

Meditação realizada em um retiro de casais, em Santa Catarina, março de 2009.

O autor é biblista e Doutor em Teologia Moral. Publicou mais de 100 livros, no Brasil e Exterior, entre eles “A casa sobre a rocha”. Ed. Vozes, 2ª. edição, 1998.