Sobre jornalismo, notícias, verdade e ética.


Ontem recebi um e-mail de um casal de amigos de São Paulo me pedindo
uma opinião sobre uma discussão iniciada num filme.

No filme, dois jornalistas discutiam a ética na profissão. Até que um deles
disse que, hoje, não existe mais jornalismo, mas só notícias, elas são o
produto. E outra, que ninguém quer ouvir a verdade, apenas os arredores
dela e olhe lá. Ética, portanto, não mais importava. Segundo ele, era só
o produto que valia, sem qualquer ranço de verdades que viessem a
provocar eleitos colaterais.

Polêmica estabelecida, o filme seguiu e rendeu um bom papo ao meu
casal de amigos – o que já me faz considerar que seja um bom filme.
Cinema de boa qualidade gera discussão.

Por vários motivos, resolveram perguntar a minha opinião, que transcrevo
abaixo para vocês.

Concordando ou não, espero que a leitura seja saborosa!
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Olá, queridos,

Vi o e-mail de vocês ontem, antes de dormir. Deitei e fiquei pensando nisso.
Ética. O que é ética? Como se aplica no campo profissional? Alguém ainda
pensa nisso? ... e por aí vai.

Vamos lá!

Para evitar discorrer sobre os 500 aspectos que esta questão envolve, vou
usar as premissas que foram levantadas no filme para abordar o tema,
está bem? Assim, evito me perder em divagações, pois o assunto é
bastante amplo!

Dizia o primeiro jornalista: “Hoje, não existe mais jornalismo, mas só
notícias, elas são o produto”

Sim, notícias são o produto. E eu não acho que isso seja hoje. Jornalista é
uma profissão. Jornalistas fazem jornais. E jornal é um produto. Precisa ser
vendido. Isso não mudou desde que a profissão foi criada. O que mudou foi
o leitor. E a quantidade de leitores.

Há 100 anos, quem lia jornal era uma pequena parcela erudita da população.
Hoje já não é mais assim.

Agora me diga. Se você tivesse um jornal e pudesse escolher se 10.000
pessoas comprariam o seu jornal ou se 1.000.000 o comprariam, o que
você escolheria?

Então, se para isso for preciso falar menos de política, economia e
descobertas científicas porque isso não vende jornal, e falar mais de
ocorrências policiais, vida de artistas, futebol, entretenimento e
variedades... que seja.

Pessoalmente, eu não acho isso ruim.

A priori, uma coisa que faça milhares de pessoas passarem a cultivar um
hábito de leitura me agrada.

O adolescente começa a ler jornal porque quer saber sobre a vida dos
artistas da novela ou sobre a escalação da seleção para a Copa. No
caminho, ele vê uma reportagem sobre dólares escondidos na cueca,
a manchete desperta a curiosidade dele e ele lê. Também vê uma crônica
com um titulo interessante e se diverte com a leitura. Na semana seguinte,
abre o jornal para ler a crônica. No ano seguinte, ganha um livro de crônicas
e lê. No ano seguinte... caramba, hábito de leitura como qualquer hábito
só se adquire exercitando.

Então, se os jornais agora interessam a milhares de pessoas e é preciso
que as notícias sejam mais superficiais para que isso aconteça,
sinceramente, eu acho isso uma coisa boa, então!

Vamos à outra premissa que é abordada no filme: “Ninguém quer ouvir a
verdade, apenas os arredores dela e olhe lá”.

Bem, aí eu vou ter que discordar também.

Todo mundo quer ouvir a verdade. Ninguém escolhe por não ouvir a verdade.
A escolha é outra. A pessoa pode escolher não ser agredida pela forma como
a verdade é colocada. Pode escolher também não perder um tempo enorme
e precioso do dia para saber a verdade.

E por falar em verdade. Qual é a verdade? A sua verdade ou a minha
verdade? A verdade é o fato. A opinião sobre o fato é sua ou minha.

E, se a opinião do outro é colocada de forma agressiva, deselegante e
tendenciosa, a pessoa pode escolher não ouvir a opinião dele. E,
pessoalmente, eu acho isso justo.

Quanto a querer “saber apenas os arredores da verdade”, bem, há
também outras questões aqui.

Primeiro, há incompetência de quem escreve.

Explico. O leitor sempre quer saber a verdade toda. O que acontece é que
ele se cansa antes de conseguir fazer isso. É tarefa de quem escreve
tornar qualquer assunto interessante. Eu posso falar do Holocausto de
forma interessante e tornando a leitura fácil. Se não o faço, é por
incompetência. E colocar a culpa no  leitor é muito mais fácil que admitir
minha própria incapacidade.

Segundo, há falta de interesse comercial de quem publica.

Explico também. Espaço no jornal ou no noticiário custa dinheiro. Então,
se já chegamos à conclusão de que é preciso incluir na pauta ocorrências
policiais, vida de artistas, futebol, entretenimento e variedade... bem,
simplesmente não vai caber uma discussão extensa sobre qualquer
assunto. Portanto, que seja publicado apenas os arredores do assunto.

Isso é errado? Não sei.

Vamos, então para a próxima premissa levantada: “Ética, portanto, não
mais importa”.

Lá vou eu tendo que discordar mais uma vez.

É claro que ética importa. Importa tanto quanto sempre importou. O certo
não é menos certo hoje do que há 100 anos. O errado não se tornou
menos errado também.

O fato dos jornais há 100 anos falarem mais de política e economia fazia
com que tais assuntos fossem abordados, na ocasião, sem qualquer
manipulação do fato? Duvido muito.

E as atrocidades que vemos nos jornais? Elas são produto da
modernidade? Nunca houve corrupção e roubo no mundo? A pedofilia
surgiu neste século? Crianças nunca foram antes exploradas ou torturadas?

Ora, faça-me o favor, é claro que essas coisas sempre existiram!

Apenas nunca estiveram antes tão expostas. Isso é ruim? Também não sei.

A exposição do horror muitas vezes é necessária. Quantas mães tomam
hoje muito mais cuidado antes de deixar seus filhos irem brincar na casa
do vizinho? Isso é ruim? Também não sei.

E, afinal de contas, o que eu acho, então, disso tudo?

Eu acho bom que jornais sejam mais acessíveis. Seja em conteúdo, forma
ou preço.

Eu acho necessário que haja entretenimento, variedades, escândalos e
noticias policiais nos jornais.

Acho de extremo mau gosto mostrar em rede nacional de televisão gente
sofrendo.

Falar de sofrimento é preciso. Mostrar uma pessoa sofrendo é covarde.
E errado.

Acho que eu não preciso dizer o que é certo e o que é errado. Qualquer ser
humano que olha o errado sabe que ele é errado. Justificar o errado não
vai fazer com que ele seja menos errado. Pode explicar, mas não justificar.

Acho que há manipulação política da notícia. E acho que isso não é
uma coisa nova. Também acho que isso não vai mudar.

Acho que quem quiser tentar não ser manipulado pode ir, então, em busca
de mais e mais informação. Recomendo também que assista entrevistas
e debates. E que converse com pessoas. Mas não vai adiantar fazer isso
com a sua própria verdade embaçando a vista demasiadamente às
realidades e opiniões diversas à sua. Alerto também que isso tudo vai
ser apenas uma tentativa. Você nunca vai saber se está recebendo
informação completa ou não.

Acho extremamente produtivo estarmos aqui agora falando disso.

Acho que o assunto é interminável e que falar mais que isso vai cansar a
todos e comprometer a qualidade do texto.

Acho que está um dia lindo. Portanto, vou me levar para ver dia um pouco.

Desejo a vocês um domingo luminoso.

Beijos,
Flávia