Maria: A Mestra da Espiritualidade Cristã SERMO LXXVII
MARIA: A MESTRA DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
A Santíssima Virgem Maria, por haver ensinado tantas coisas a Jesus, igualmente é nossa mestra na medida em que converte em nosso modelo de espiritualidade, cujo ponto alto está na irrestrita fé no Senhor, seu Deus. Maria ensinou ao Filho uma porção de coisas. Com ela o Mestre aprendeu a falara, a dar os primeiros passos e a conhecer o nome das coisas e dos objetos, assim como a diferenciar o dia da noite, o frio do calor. Como criança, Jesus aprendeu com sua mãe o valor dos pequenos gestos da vida humana. Não sendo rica nem culta, Maria transmitiu-lhe a riqueza do amor e o entendimento dos espíritos povoados de Deus, no mistério das realidades da vida simples, calcada na segurança do amor sem fim.
Querendo Deus, sumamente benigno e sábio, realizar a redenção do mundo, “quando chegou a plenitude dos tempos, mandou seu Filho, nascido de uma mulher... para que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl n4,4s), o qual, por amor de nós homens e para a nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria. Este mistério divino da salvação se nos revela e comunica na Igreja, que o Senhor constituiu como seu corpo, e no qual os fiéis – unidos a Cristo, sua cabeça, e em comunhão com todos os seus santos – devem também, e em primeiro lugar, venerar a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo .
Maria é a mãe do Jesus histórico e do Cristo da fé. Pela graça e amor do Pai ela se tornou a mãe do Messias, nosso Salvador. Nela não se encontra apenas o advento de Deus no mundo, mas também uma irradiação de sua presença amorosa e transformadora. Quando o cristão deseja compreender bem o mistério de sua espiritualidade e de sua fé, ele experimenta o dever, a urgência de considerar e refletir sobre a pessoa e o lugar de Maria no projeto de Deus e na vida da Igreja. A pessoa de Maria, como a nova Eva, é mencionada nas Sagradas Escrituras, do Gênese ao Apocalipse.
Por isso o próprio Senhor dará um sinal: uma virgem conceberá e
dará à luz um filho e o chamará pelo nome de Emmanuel (Is 7,14).
Com Maria Jesus conheceu o nome das pessoas, dos parentes e dos pequenos animais domésticos. Nesse particular, ressalte-se que Maria foi mãe, mestra e guia de Jesus-menino. Hoje se nota que o nosso mundo está repleto de egoísmo, excesso de personalismo, onde muitas mulheres renunciam ou postergam a maternidade a planos irrelevantes ou subalternos, em nome do prazer, da estética, da profissão, de uma pretensa liberdade, de ideais duvidosos de um falso espaço ou de uma enganosa realização. Ah, que lição Maria nos dá! Ela é a mulher simples que se despe de seus ideais humanos, mergulha no escuro da fé, doando-se ao seu Deus, esvaziando-se de si mesma para ser preenchida pela riqueza do Espírito Santo.
Tal doação credencia-a ao titulo de medianeira de todas as graças. São abundantes as referências dos clássicos. De um lado, vemos São Boaventura ensinando que a vontade de Deus é que recebamos todas as graças por intermédio de Maria. De outro, São Luis Maria Grignion de Monfort nos fala, abaixo, dos méritos e das virtudes de Jesus que adornam a espiritualidade de Maria, e pela mãe são transmitidos a nós:
Deus Filho comunicou à sua Mãe tudo o que adquiriu por sua vida e morte: seus méritos infinitos e suas virtudes admiráveis. Jesus a fez tesoureira de tudo que seu Pai lhe deu em herança; é por ela que ele aplica seus méritos aos membros do corpo místico, que comunica suas virtudes, e distribui suas graças; ela é o canal misterioso, o aqueduto pelo qual passam abundantes e docemente suas misericórdias .
Existem muitas mulheres como Maria! Há pessoas que a tudo renunciam, sacrificando-se pelo amor de seus filhos (e às vezes até de filhos alheios) e de sua família, elegendo-os como prioridade de suas vidas, deixando de lado as ilusórias promessas do mundo, as irreais sensações de estabilidade e tranquilidade, para se dedicarem ao amor, para escutarem o filho balbuciar seu nome, afagarem seu rosto com suas mãozinhas, chamando-as de mamãe, e iniciando com elas o processo de aprendizado pela vida.
Com seu amor de mãe, Maria cuida dos irmãos de seu Filho, que ainda peregrinam e se debatem entre os perigos e as angústias, até que sejam conduzidos à Pátria feliz. Por isso, a Santíssima Virgem é invocada na Igreja com os títulos de Advogada, Auxiliadora, Amparo e Medianeira .
A grande lição de vida que Maria nos dá é sua fé em seu Senhor; é sua disponibilidade em estar a serviço, a capacidade de se colocar à disposição de um projeto que ela mesma não sabia como era, mas suficientemente claro para ser abraçado pela fé, afinal, vindo do seu Senhor, só podia ser coisa boa. É incrível a humildade de Maria, reconhecendo-se pequena antes os intrincados caminhos de Deus.
O silêncio de Maria é revelador, povoado de mensagens, não de acomodação nem de resignação, é pleno de confiança e entrega, certa que Deus sempre faz o melhor por seus filhos, mesmo que estes não possam perceber, de imediato, esses benefícios. A grande fé que se derrama do coração de Maria é a tônica que ajudou a edificar aquele lar em Nazaré, onde o amor e a esperança brotavam em torrentes, cujo exemplo vara os séculos e nos conduz, hoje, à sua imitação.
Penso que se refletia no semblante de Maria o fato de ser imaculada, cheia de graça, principalmente em suas reações e em seu comportamento geral. Maria devia ser, desde pequena, um não sei quê todo especial. Aquela jovem evocaria alguma coisa divina, envolvendo sua figura e sua personalidade numa aura misteriosa, ao menos para um observador sensível .
Talvez o leitor se surpreenda, ao se deparar, no decorrer deste texto, com a citação de vários textos de minha autoria, respigados de livros e artigos que publiquei nos últimos anos. Várias são as razões que me levam a essa atitude. A primeira aponta para minha devoção filial à Mãe de Jesus, que me impele a falar nela – quase que compulsivamente – e citá-la na maioria dos meus trabalhos espirituais e de evangelização.
Tal fidelidade faz eco às palavras de São Bernardo que disse “nunca se falará o suficiente a respeito de Maria”. O segundo motivo está ligado ao fato de, por conta da devoção e do amor filial, eu possuir quatro livros editados , falando sobre as virtudes da Virgem Maria. E o último motivo, igualmente significativo, é a confiança naquilo que disse o mesmo Doutor de Claraval, que “um devoto de Maria jamais se perde”. Pois é nessa Maria, mãe de misericórdia e defensora nossa que devemos depositar nossa confiança e a ela requerer a impetração da mediação materna.
E quem jamais ousará tirar estes filhos do seio de Maria, depois que a ele se tiverem acolhido em busca de salvação contra os inimigos? Que fúria do inferno ou das paixões poderá vencê-los se puserem esta confiança no patrocínio desta tão grande Mãe?.
No clima de paz e amor do lar de Nazaré, Jesus cresceu e se fez homem. A boa notícia que ele anunciou aos homens e ao mundo, ele a trazia em seu coração, pela estreita relação trinitária com o Pai e o Espírito, mas pode ouvi-la e senti-la por completo, vinda de Maria, como modelo de dedicação e obediência à vontade de Deus.
A pregação do evangelho foi embasada no testemunho de Maria, sua mãe. Modelo para os que não aceitam passivamente as circunstâncias adversas da vida pessoal, nem são vítimas de alienação, Maria caminha com o povo, iluminando com sua doçura, temores e desvelos as expectativas dos amigos de seu filho. Os critérios de justiça, partilha, perdão, renúncia, oração, sacrifício, amor a Deus e ao próximo (especialmente aos excluídos), base da doutrina do evangelho, Jesus intuiu em seu coração e, em paralelo, sentiu sua força, ouviu sua voz, desfrutou sua paz, no terno vigor do permanente testemunho de amor de Maria, sua mãe.
A Virgem de Nazaré se tornou a primeira testemunha do amor salvador de Deus-Pai pela humanidade, ao encarnar Jesus, o libertador que, a partir do seio de Maria começava nossa redenção .
Maria ensinou a Jesus uma porção de coisas. Já dissemos isto, linhas atrás. Ora, se ela pôde ensinar tantas coisas ao Verbo de Deus que se fez homem, quanto mais ela terá ensinamentos espirituais a ministrar a nós, no dia-a-dia. Deste modo, tentando algo como que uma ficção teológica, se poderia afirmar, sem medo de blasfêmia, que Maria, a estrela de primeira grandeza da evangelização, sempre renovada , mãe de Jesus e nossa, é a proto-autora da boa notícia da salvação.
Maria, mestra de tantas virtudes, tem a plena capacidade de ensinar a todos nós essas atitudes singelas, mas profundas em amor para com o Pai, que se transformam no exercício de uma rica espiritualidade. É incrível como uma pessoa tenha toda essa capacidade de ensinar. É por este motivo que o anjo a chamou de “cheia de graças”.
Ela ensinou Jesus a falar, a distinguir o valor das coisas, a se comunicar com as pessoas. Nessa atividade docente de Maria contemplamos o milagre do amor que transborda e transcende, que faz tudo por amar seu Deus, tornando-se, por ele, a “cheia de graças”.
Maria forneceu a Deus toda aquela humanidade, que foi hipostaticamente assumida; algo de Maria, gerado por Maria, pertencente à vida de Maria começa a ser de Deus. Por isso, algo de feminino é eternizado e divinizado .
As comunidades hoje celebram Maria como a Mãe de Deus e mestra da espiritualidade. Modelo perfeito desta vida espiritual e missionária é a bem-aventurada Virgem Maria, rainha dos apóstolos, a qual, vivendo na terra uma existência igual a de todos, cheia de trabalhos, incerteza e preocupações familiares, estava sempre intimamente unida a seu Filho. Assim ela cooperou intima e diligentemente na obra de salvação que Jesus veio instaurar.
Hoje assunta aos céus, ela cuida com materna caridade dos irmãos do seu Filho, ainda peregrinos e sujeitos aos perigos e às dificuldades, até que sejam conduzidos à pátria feliz e definitiva. Todos, devotamente, lhe prestam culto e encomendam a sua vida, missão e apostolado à sua solicitude maternal. Por este motivo Maria é festejada como mãe de Deus e da Igreja. Por nós, que somos Igreja, ela também incorpora essa maternidade, assumida na cruz por todos os tempos a partir da sua presença junto à Igreja primitiva. Se é mãe de Igreja também é nossa mãe.
Após a concepção ocorrida pelo poder do Espírito Santo, Maria, preocupando-se mais com o próximo do que consigo mesma, sobe a Ain Karen, na região montanhosa da Judéia, para dar assistência à sua parenta Isabel que havia concebido na velhice (cf. Lc 1,39-56). Ao contrário de muitas pessoas, Maria vai servir. Mesmo trazendo em seu seio o Filho de Deus, quando sob a ótica humana era hora de exigir cuidados e mordomias, ela se volta para a parenta idosa, e lá permanece três meses, trabalhando como empregada doméstica.
Chegando à casa de Isabel, após a efusão do encontro, num gesto de gratidão e louvor, Maria recita o Magnificat, contando a todos as maravilhas que Deus nela realizara, por meio da fé. Quando se adere pela fé, não é importante saber o que e o quando vai acontecer; basta saber que aquilo que foi prometido, agora ou depois, vai acontecer, pois é certo que o Pai-Deus tem um projeto para nós, e nele devemos depositar nossa confiança. Um servo nunca faz perguntas; tem confiança no seu Senhor: “Acaso pergunta o barro ao oleiro, o que fazes?” (cf. Is 45,9) .
A Igreja costuma, através de suas litanias, chamar Maria de “arca da nova aliança”, pelo fato de ela unir, com seu gesto de fé e entrega, o Antigo e o Novo Testamento. Aqui consegui respigar quatro textos, dois de cada Testamento, que atestam a propriedade dessa afirmação:
2Sm 6,9 Lc 1,43
Como disse Davi: Disse Isabel:
Como pode vir a mim a Arca Como pode vir a mim
do Senhor? A mãe do meu Senhor?
2Sm 6,11 Lc 1,56
A arca permaneceu três meses Maria ficou três meses em
Edon-Gat casa de Isabel
e depois voltou para casa.
Por suas características de pessoa fiel, amiga, prestativa e atenta às necessidades do outro, Maria tornou-se modelo para a nossa caminhada nesta vida. Ao exclamar “Minha alma proclama a grandeza do Senhor”, ela revela a pureza de seu coração, sua capacidade de amar a Deus e de elevar um significativo e público louvor ao Pai das Luzes, pelos benefícios que ele creditou ao espírito e à vida da mãe de seu Filho. O louvor, como preito de adoração Deus é significativamente sentido nas páginas das Sagradas Escrituras:
É bom agradecer a Javé e cantar salmos em seu nome (Sl 92,2):
Eu te louvarei, Senhor, de todo o meu coração, proclamando as tuas maravilhas (Sl 9,2).
Diante da maravilha de se tornar mãe do Salvador, Maria revelando sua sensibilidade às coisas do espírito, entoa louvores glorificando ao Criador. Nessa expansão de alegria, ela se manifesta, não só fiel aos antigos ensinamentos, mas sobretudo adulta na fé que a faz intuir o mistério da encarnação. Ela que, como pobre, era excluída dos sistemas sociais de seu tempo, logo ela, uma moça simples e humilde, é chamada a ser aquela que vai dar à luz o Libertador de Israel. Por sua fé, a esperança do povo começa a adquirir contornos de realidade.
Infelizmente, fé e esperança são hoje em dia palavras deturpadas de seus reais significados. Muitos dizem que têm fé; outros afirmam possuir esperança; pena que a sustentação dessa fé seja a capacidade humana, a intelectualidade, a tecnologia. A esperança também aparece corrompida por um fatalismo de que nossos projetos materiais (fama, bens, dinheiro, riqueza) vão bater à nossa porta, como num passe de mágica, e que os sortilégios e os horóscopos têm a chave da nossa felicidade. Assim pensam muitas pessoas de nosso tempo.
A alegria cristã, porque vem fundamentada em outros valores, é diferente das alegrias mundanas. Enquanto muitos materialistas afirmam que é impossível ser alegre e feliz sem riquezas, bens, amigos influentes, ou frequentar rodas elegantes, Cristo mostra, através do testemunho de sua mãe, que a verdadeira ventura está em perfilar-se ao plano de Deus, pois a alegria é a esperança dos justos (Pv 10,28).
A alegria que vem de Cristo é um sentimento de unidade e participação, partilhado e oferecido no rol dos benefícios e sacrifícios diários. O evangelho de Jesus é repleto daquela esperança calcada na fé, que leva à justiça, que promove a paz, que consolida o amor, que dá alegria .
A chegada da libertação que Cristo anuncia (cf. Lc 4,18s) aos excluídos (presos, doentes, oprimidos, endividados, sem-terra) é motivo de imensa alegria. Os grilhões que aprisionam não são, muitas vezes, correntes ou algemas visíveis, mas laços criados pelo egoísmo, pela ambição, desejo de dominar, pela luxúria, pelo desrespeito à dignidade do outro.
Viver a verdadeira espiritualidade do jeito que Maria nos ensina, nos torna alegres e esperançosos da bondade do Pai. Alegres somos sempre que procuramos viver o espírito das bem-aventuranças como Maria viveu, prontos a perdoar, confiando em Deus, valorizando os humildes e as circunstâncias simples da vida, promovendo a elevação do próximo e compadecendo-nos dos que sofrem .
Ah, isto é sonhar, dirão os descrentes. Sonhar sim, mas sonhar como Maria sonhou: pés no chão e olhos no céu. Um sonho assim tem todas as chances de se tornar realidade. Sonhar o bem que podemos fazer, sonhar uma vida de puro encontro comunitário; sonhar o que Deus vai fazer por nós já é receber as graças mesmo antes de pedi-las. Dom Helder costumava dizer que “quando a gente sonha sozinho é um sonho; quando sonhamos juntos é o começo da realidade”.
Maria não sonhou sozinha. Por conta de sua fantástica espiritualidade, ela repartiu seus sonhos e sua alegria com seus parentes, com Isabel, com José, com toda a humanidade. Ela que, a exemplo de tantos, poderia ter se fechado na esterilidade de um comodismo egoísta, preferiu se doar no fecundo parto do amor que transborda. Por isso, dizem os místicos, Maria traz em si o sonho da salvação. Um sonho que virou realidade.
Por causa de suas virtudes, Maria se assemelha à menorá, o candelabro sagrado dos judeus, com sete luzes. De acordo com os biblistas, a Igreja precisa reverenciar, cada vez mais as sete virtudes da Virgem Maria:
• a atenção
• a inteligência do amor
• o agir concreto
• a alegria
• a ternura
• o vaso honorífico onde Deus depositou a sua graça
• o silêncio
O ícone mais frequente da criatura disponível a Deus e aos outros é Maria, a mãe de Jesus, a virgem do silêncio. O “eis aqui a serva do Senhor” é modelo para todos os cristãos, enquanto manifesta a experiência profunda que ela fez da obediência a Deus, vivida como um contínuo desejo de estar em sua presença, fazendo sua vontade, com todo o peso das surpresas e sobressaltos que tais decisões implicam.
Ativa na economia da salvação, como primeira mestra da espiritualidade cristã, Maria é a mãe admirável que não permite que seus filhos trilhem pelos caminhos das sombras, mas peregrinem com ela pelas sendas da justiça, da verdade e da pureza de coração.
A alegria de Maria (“meu espírito se alegra em Deus...”) é decorrente de sua fé e esperança, pois embora não conhecesse a missão, tinha certeza que geraria um filho em seu seio, que se chamaria Emanuel (o “Deus-conosco”), e que iria salvar e libertar o povo, anunciando a boa notícia da “vida abundante”, sem exclusões. Se o projeto era oriundo de Deus, só podia ser coisa boa: não havia o que temer.
A missão de Maria não se esgota com a concepção nem com a maternidade. Não podemos vê-la como uma simples relação causal da vontade de Deus e pronto; cessada a causa cessava o efeito, e Maria sairia de cena, voltando ao anonimato de Nazaré. Não! A missão da Virgem transcende as dimensões temporais e históricas. Por isto é preciso aprender todas as lições de espiritualidade que dela dimanam.
Assim como zelou pelo menino Jesus, como se dedicou à sua casa e sua família em Nazaré, depois da ressurreição do Filho Maria foi presença humilde e silenciosa, porém vigorosa naquela Igreja que se iniciava, incipiente e perseguida. Maria hoje caminha com a Igreja, no apostolado e nas lides missionárias. Nos discursos de Jesus se descobre a alegria de quem tem uma missão sublime a cumprir e sabe que vai realizá-la no tempo certo: reconciliar Criador e criaturas:
A vontade do Pai é que, todo aquele que vê o Filho e nele crê, tenha a vida eterna e que eu o ressuscite no último dia (Jo 6,40).
Apesar da trágica profecia de Simeão, às portas do templo, que o menino seria um sinal de contradição entre os homens, e que uma espada de dor transpassaria seu coração de mãe (cf. Lc 2,25-40), Maria exultava por aquele filho, embora não soubesse como tudo aquilo iria acontecer. Na pessoa de Maria nos é dado compreender e contemplar a intervenção divina que a coloca no centro da vontade auto-comunicadora do Pai. Imune à tendência natural ao desajuste (pecado original), ela desponta privilegiadamente sobre a ordem decadente da criação. Desde a eternidade ela foi pensada por Deus para ser a morada de seu Espírito Santo e a geradora de seu Filho.
Mais tarde, a partir do início de sua vida pública, Jesus teve a oportunidade de anunciar a libertação e a salvação ao povo, a evangelização aos pobres, a cura de tantas doenças, o perdão das dívidas aos empobrecidos, todos, de uma forma ou de outra, excluídos pelo sistema cruel e injusto de todos os tempos. Era o novo povo de Sião, agora não só judeus, mas todos os convertidos e batizados sob o nome da Trindade Santa que estavam juntos, a caminho, seguindo as trilhas da salvação, reconciliados com seu Criador. Chamada de co-redentora, a Virgem Maria faz parte dessa caminhada do povo de Deus na direção do céu.
Os versos proféticos de Ana (cf. 1Sm 2,1-10), o canto de Maria (cf. Lc 1,46-55), a oração de Zacarias (f. Lc 1,68-79) e o anúncio de João Batista (cf. Lc 3,16ss) dão conta da inversão da ordem social, política, religiosa e econômica que o Messias vai instaurar: últimos por primeiros; grande é quem se coloca a serviço; pecadores entrando no Reino na frente de pessoas pertencentes a grupos pretensamente justos e imaculados; felizes os simples e os que choram; perder a vida para ganhá-la de fato; perdoar os algozes e orar por eles. Diante dessa novidade, anunciada no Magnificat de Maria e colocada em execução por Jesus, toda a criação exulta de justa alegria.
A libertação que parecia um sonho está às portas e bate; a salvação que se afigurava como uma utopia se torna realidade ao alcance das mãos. Os excluídos são reintegrados à dignidade que sempre tiveram: de filhos de Deus e herdeiros do Reino dos céus.
Maria, mãe de Deus e nossa mãe, nos ensina com alegria a ver as maravilhas que Deus faz por todos os seres humanos. Ao enxergarmos aquilo que Maria viu e nos mostra de forma clara, damos um importante passo na consolidação de nossa vida espiritual, cuja consequência final será a salvação, a instalação na casa do Pai, a assunção ao título de “cidadãos do Reino”.
A mãe do Salvador, além de humilde por natureza, foi humilhada pelas condições impostas ao povo de Israel, em geral, como situação de opressão, tributação excessiva, falta de voz social, ausência de representação sociopolítica, pobreza e subserviência aos sistemas religiosos e dinastias judaicas (genuflexas ao poder romano). Embora José fosse um tékne, operário, a situação do casal não deveria ser das melhores, tanto assim que na oferta-resgate que as famílias faziam no templo, relativo ao filho do sexo masculino, eles fizeram a oferta característica das famílias pobres: dois pombinhos (cf. Lc 2,24; Lc 5,1-8). Apesar desses limitadores sociais e culturais ela foi chamada a participar do projeto divino, por suas virtudes, conforme já foi dito aqui.
Maria foi escolhida por sua virgindade física e de coração; por sua humildade e total disponibilidade em estar a serviço, de Deus, da família e das pessoas. Sua pureza a tornou o Sacrário do Deus vivo; sua fé, sem maiores questionamentos e negociações, possibilitou-lhe ser a mãe do Verbo de Deus. Isto vem confirmar que o Pai (ao contrário das práticas humanas) olha as pessoas pela fé e pelo coração. Nós não! Em geral costumamos “fazer cadastro”, avaliar “lucros e perdas”, levantando situação social, escolaridade, renda, patrimônio, árvore genealógica, capacidade de nos ser útil, etc. Enquanto nós nos detemos na análise exterior, Deus vê o interior das pessoas, a simplicidade, os ideais de vida, a disponibilidade...
Por apresentar-se sempre sob uma capa de cristianismo, a falsa humildade é um obstáculo especialmente problemático. Ela se manifesta mais ou menos assim: “Sei que amar a Deus é o mais alto objetivo da vida, mas quem sou eu para aspirar amar a Deus?”. Ironicamente, certas pessoas tomam essa atitude, que não passa de uma opinião depreciativa a respeito de si mesmo, pela humildade. Mas ter uma opinião depreciativa sobre você mesmo não é uma virtude; é uma falsa compreensão. Ela pode impedi-lo de abraçar um ideal e descobrir o sentido de sua vida, para o qual você foi criado. A falsa humildade diz: “Quem sou eu para amar a Deus?”. Isto é um obstáculo ao amor de Deus. A verdadeira humildade diria: “Eu sou servo de Deus e servo do meu próximo”. Este é o caminho de amar a Deus na humildade .
Maria, a Nossa Senhora, a theotókos (mãe de Deus) aprendeu a humildade em seu lar e através das Sagradas Escrituras: “Ele dá esmola aos indigentes, sua justiça permanecerá para sempre, e ele ergue a fronte com dignidade” (Sl 112,9). Do Antigo Testamento Maria tirou as lições silenciosas de aceitação à soberana vontade de Javé: “Por acaso a argila pergunta ao oleiro: ‘O que está fazendo?’” (Is 45,9b). Sentindo-se barro nas mãos do artista, Maria acolhe com fé e simplicidade sua missão de mãe de Deus. Em suas pregações, Jesus haveria de, posteriormente, exaltar essa humildade: “Quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11)
Os discursos de Jesus funcionam como um vigoroso convite à conversão, um tipo de vocação que passa pelo espírito de serviço, pela entrega, pela humildade e pela caridade com todos e em especial com o que estão à margem da história. Vocação é um processo que consta de dois movimentos. No primeiro, Deus nos chama à santidade, ao amor, ao serviço e à vida abundante, pela adesão às coisas do Espírito. No segundo, como Abraão, Moisés e Maria, nós permitimos de imediato que ele penetre em nossa vida e faça história conosco, conforme seu plano.
Com vistas à simplicidade dos seguidores de Jesus, o Pai Fe de Maria uma anaw (o plural é anawim), ou seja, uma pobre de Deus. No evangelho (aramaico) de Mateus, os primeiros bem-aventurados, são os anawin, os pobres, os simples, os despojados.
A palavra típica e mágica que sintetizaria a espiritualidade e a atitude vital dos pobres de Deus era, e é, faça-se. Com esta palavra a Mãe daria total cumprimento ao seu destino de maternidade divina. Com esta mesma palavra o Filho cumpriria seu destino como redentor do mundo durante a crise do Getsêmani .
Maria dará Cristo à luz em nós, na medida em que vivermos como Aquele que se compadecia e se identificava com o sofrimento alheio, que não podia contemplar uma aflição sem se comover, que deixava de comer ou descansar para poder atender a um doente, a um possesso, que não só se emocionava, mas cheio de compaixão resolvia o problema deles. Por conta disto, Jesus, quem sabe sugestionado pela espiritualidade de Maria, abre sua atividade messiânica apresentando como que uma plataforma, onde os excluídos e os mais fracos têm vez:
Felizes, os pobres, os aflitos, os mansos, os injustiçados, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os odiados, os expulsos... (cf. Mt 5,3-10; Lc 6,20ss).
Nas chamadas “bem-aventuranças” aparece o caminho da verdadeira felicidade: todo o excluído, independente de que sistema, seja ele social, político, religioso ou econômico, será amparado, elevado e possuirá o supremo dom de Deus: o Reino. Sim, pois por todos os tempos ocorrem opressões em todos esses sistemas acima mencionados. Na verdade, a simplicidade, capaz de tornar uma pessoa feliz ou bem-aventurada, independe de títulos, bens ou intelectualidade.
Ao feliz ou bem-aventurado é pedido apenas que ele seja uma bênção em favor de alguém, e não que possua muitas coisas materiais ou culturais: “Aprendam comigo que sou simples e humilde de coração” (Mt 11,29). A simplicidade não é interesseira nem pressupõe trocas ou reciprocidade:
Jesus disse também ao fariseu que o tinha convidado: “Quando você der um almoço ou jantar, não convide amigos, nem irmãos, nem parentes, nem vizinhos ricos. Porque esses irão, em troca, convidar você. E isso será para você recompensa. Pelo contrário, quando você der uma festa, convide pobres, aleijados, mancos e cegos. Então você será feliz! Porque eles não lhe podem retribuir. E você receberá a recompensa na ressurreição dos justos” (Lc 14,12ss).
A relação de Deus com o ser humano tem nessa fusão de vontade e aceitação, seu ponto culminante. É neste ponto que Maria é eternamente agraciada (cheia de graças) porque acreditou e se colocou à disposição, dando um legítimo salto no escuro nesse processo de amor e fé.
A Virgem de Nazaré se entregou ao desígnio de Deus conforme aquela figura, já vista aqui, do barro que se entrega docilmente nas mãos do oleiro, para ser transformado em uma peça decorativa ou de utilidade (cf. Jr 18,6) e por isto é festejada em todos os lugares, com carinhosa e reverente devoção popular, com inúmeros títulos honoríficos, pelas ladainhas do mundo afora.
Sua humanidade, seu importante papel no mistério da encarnação levaram, quem sabe, seu Filho a concluir, numa de suas pregações, que servir é mais importante e agradável aos olhos de Deus, que ser servido. Maria de Nazaré foi serva, foi toda entrega e doação e, no entanto, foi maior que todos os reis, justamente porque serviu, porque se humilhou. Sua humildade é paradigma para a espiritualidade de todos os discípulos do Filho. Sobre esse humilhar-se Jesus disse: “Grande é quem serve; quem quiser ser o maior que seja o menor e servidor de todos” (Lc 22,26).
A devoção mariana tem, além de em outras orações, na Ave-Maria e na Salve-Rainha seus pontos convergentes com a legitima espiritualidade cristã, pois exalta o serviço, a fé, o sofrimento e a presença junto de Jesus, da gruta de Belém ao Calvário. Do monte das bem-aventuranças a Pentecostes. Assim como cremos que Cristo é o único mediador entre Deus e os homens, é igualmente correto afirmar que Maria faz a mediação entre o drama da humanidade e Cristo, sendo por esse motivo venerada em todo o mundo como medianeira de todas as graças.
O episódio das conhecidas “bodas de Caná”, em que a sensibilidade de Maria pressentiu o apuro dos noivos imprevidentes e fez com que Jesus transformasse água em vinho e assim restabelecesse a alegria da festa, retrata a mediação entre seu Filho e os homens. Nada acontece, nas Escrituras, por acaso. Aquela narrativa está ali para evidenciar essa capacidade de mediação. No rosto da mãe contemplamos o semblante do Filho. A virgem é bem-aventurada, igual a tantos pobres, perseguidos e excluídos das rodas sociais e das igrejas, pois que nos trouxe aquele que seria o libertador (cf. Lc 4,18), consolador e salvador da humanidade, aquele que venceu o pecado e a morte, curando-nos de nossos males: “Levantem e ergam a cabeça porque a libertação de vocês está próxima!” (Lc 21,28) .
Nossos irmãos de outras denominações afirmam que só há um mediador, Jesus, entre Deus e a humanidade. E estão certos. No entanto, e a ocorrência de Caná nos mostra a mediação de Maria entre a humanidade e Jesus. Ora, se nós podemos orar uns pelos outros, por que não pedir a Maria que interceda por nossas necessidades junto ao Filho?
Na singeleza de Maria com o trato com Jesus vamos colher a inspiração para a espiritualidade que vai construir nossa vida cristã. Ela é a mulher perfeita, concebida sem pecado, modelo humano de santidade e amor, a Deus e ao próximo. Assim como do testemunho da mãe Jesus colheu inspiração para suas pregações, também nós, espelhando-nos nesse exemplo, podemos no amor a Jesus aprender a acolher os simples, os fracos, os marginalizados.
Essas virtudes Maria ensina a todos nós. A missão do cristão de hoje, homem ou mulher, pai de família, professor, profissional liberal, operário, religioso, estudante, é ser um pouco Maria, na medida em que, exultando de alegria, vá colocando-se a serviço de Cristo, testemunhando sua ressurreição a partir da calma dos sacrários para o inquieto ardor dos corações humanos.
Meus primeiros contatos com a “mariologia”, na catequese, nos cursos e na teologia, não foram de entusiasmar. Sempre me mostraram uma Maria irreal, assexuada, dócil demais, sem voz, sem entusiasmo. Só mais, tarde, quando morei na Paraíba é que fui conhecer uma Virgem Maria peregrina, militante, determinada e comprometida com a caminhada do povo. Ao tomar conhecimento dessa realidade da mãe de Jesus, me entusiasmei e me apaixonei. Foi quando escrevi
“Magnificat, o evangelho segundo Maria”.
Ao recomendar à Igreja que tome Maria como modelo, o saudoso papa Paulo VI († 1978) retrata-a como paradigma daquilo que é o grande anseio do homem moderno: a paz, a realização efetiva, a eleição de valores reais, a alegria de servir e a justiça para todos .
Confiante na mediação de Maria, São Bernardo, o “doutor mariano” compôs uma das orações mais apreciadas pelos cristãos, que serve de fio-condutor para o enriquecimento de nossa espiritualidade. Foi uma das primeiras orações que Dona Mercedes, minha mãe me ensinou. A partir da confiança na Virgem Maria, em todos os lugares onde falo, assessoro cursos e faço pregações eu divulgo o memorare (lembrai-vos) de São Bernardo:
Lembrai-vos á piedosíssima Virgem Maria
que jamais se ouviu dizer
que algum daqueles
que tivesse recorrido à vossa proteção,
implorado o vosso auxílio,
reclamado o vosso socorro,
fosse por vós desamparado.
Animado, pois, de igual confiança,
a vós Virgem das virgens.
como a minha mãe recorro,
em vós confio, de vós me valho,
e gemendo sob o peso de meus pecados,
me prostro aos vossos pés.
Não desprezeis minhas súplicas,
ó Mãe do Filho de Deus humanado,
mas escutai minhas preces
e atendei-me.
Trecho da pregação de um retiro para religiosas realizado no Espírito Santo, em agosto de 2009. O autor é Biblista com especialização em exegese. Escritor e Doutor em Teologia Moral.