Esmola e Caridade (SERMO LXXV)

ESMOLA E CARIDADE

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

eu tive sede e vocês me deram de beber...

eu estava nu e vocês me vestiram...

O fato marcante de nossa época é que o pragmatismo da sociedade pós-moderna acabou de vez com a solidariedade entre as pessoas. O desprendimento das coisas materiais, a visão mais sensível da alteridade bem como a atenção aos problemas sociais são coisas que não se enxerga mais. Hoje tudo mudou. Ninguém mais ajuda ninguém, mas todos só pensam no seu bem-estar, conforto e segurança. As pessoas se isolam entre cercas, grades e cães ferozes, se entopem de “abobrinhas” da tevê e com isso se convertem em estátuas de budas: saciados, risonhos e com visão apenas em seu umbigo. Todos querem “levar vantagem em tudo”.

Há dias li em jornal que em Porto Alegre a polícia vem dando “batidas” para tirar das esquinas jovens que ganham a vida (se é que isto é vida) fazendo malabarismos a custas de poucas moedas e muitos xingões e caras-feias dos mais radicais. É gozado que as mesmas “autoridades” que mandam retirar (e até prender) esses meninos, não fazem nada no sentido de encaminhá-los, dar-lhes emprego, ou estudo, ou pelo menos um teto e um prato de comida.

De repente aparecem certos fariseus públicos, históricos ou modernos, políticos hipócritas ou intelectuais teóricos, que preconizam o “não dê esmolas!”, como se isto fosse a solução. Apelam, este ditos-cujos, para que se repasse o dinheiro para entidades, instituições ou coisa do gênero. Ora, qualquer entidade logo vai alugar uma casa, comprar móveis, adquirir um veículo, contratar empregados e instalar um telefone. Mesmo que tal órgão seja um exemplo raro de honestidade e probidade, com todos esses gastos burocráticos, lá se foi o valor das doações. O problema do Brasil, entre outros, é a burocracia.

As pessoas são avessas à caridade, a abrir a mão. O que mais que fazem é dar esmolas, desfazendo-se de algumas míseras moedas, que às vezes estão incomodando na carteira ou na bolsa. A maioria não titubeia em gastar verdadeiras fortunas com coisas supérfluas, como roupas que às vezes nem usam, comidas cuja metade vai para o lixo, e outros bens, consumidos e comprados apenas para a ostentação e satisfação de egos mal-resolvidos.

Contrariando esses lugares-comuns, eu dou esmolas, tenho prazer em fazê-lo. A esmola é circunstancial; a caridade deve ser programática. A esmola é o gesto bíblico por excelência. Os textos gregos do Novo Testamento assinalam a esmola com o verbete eleémosüne derivado de eléos, compaixão. Logo, quem dá esmola pratica um ponderável ato de com-paixão em favor de alguém que está em necessidade. Ao dizer “eu tive fome e vocês me deram de comer... eu tive sede e vocês me deram de beber... eu estava nu e vocês me vestiram...” Jesus está exaltando a esmola dada, a caridade oferecida, a solidariedade compartilhada.

A caridade, tem raiz no grego, cháris (graça), ocorre a partir da graça de Deus que ilumina determinados corações e mentes para que se disponham a se abrir em favor das necessidades dos irmãos.

Perdoem a minha fraqueza, mas se eu der dinheiro ou trabalho voluntário para alguma entidade, eu não sei como serão distribuídos os recursos, nem como meu trabalho será apropriado devidamente. Ao contrário, quando dou uma esmola, uma ajuda material a uma criança, a um idoso, a uma família, eu sinto em seus olhos o efeito da eléos que pratiquei. A caridade é um dom. Ele nos vem por inspiração de Deus. Tanto assim que sua raiz é cháris, graça; graça divina. Aos cristãos da Igreja nascente, São Paulo advertia que “mesmo que fale a língua dos anjos e dos homens, se eu não tiver caridade (amor) isto de nada me serve”.

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

A misericórdia, como o próprio nome sugere, nos retira da miséria da solidão e do pecado. Deus sente como suas, as dores do miserável. O amor confere salvação. O carinho de Deus é visto e sentido na pessoa de Cristo (cf. Ef 3, 19). Se a misericórdia é a atitude paterna de Deus para com os pecadores, o amor é o seu motivo, em tudo quanto ele faz por eles. Assim como a misericórdia de Deus é rica, assim o seu nome é grande. Pois foi com esse grandioso amor que Deus nos amou e nos escolheu, e fez isto por causa do seu amor, agindo em favor da humanidade, como sempre o faz.

O amor de Cristo, que excede todo o entendimento, precisa ser conhecido, para que o cristão seja repleto de toda a plenitude de Deus (cf. Ef 3, 19). Nessa linha de raciocínio, conhecer o amor é amar de forma integral, a Deus Uno e Trino, ao próximo e à natureza. A graça, a misericórdia e o amor de Deus ultrapassam toda a capacidade intelectual do ser humano. Só acessamos ao mistério pela inspiração do Espírito. O conhecimento faz-se de forma mística, intuitiva e experimental, pela fé.

A caridade cristã vem daquele preceito de Jesus Cristo: Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Jesus disse isto: O meu mandamento é que vos ameis uns aos outros. Num outro momento, Ele diz: Vocês são todos irmãos. Vocês são todos irmãos...

Essas coisas são revolucionárias, elas mudam tudo. Se você, de fato, faz disso um programa de vida, tudo muda. Sobretudo hoje numa sociedade muito excludente, que aprofunda as desigualdades, que acaba excluindo no sentido de que nós não somos mais importantes, os que não estamos incluídos. Isso não pode acontecer!! Para nós, cristãos, isso é inaceitável.

O próprio desemprego, cada vez maior, que vem com toda a globalização e o neoliberalismo e toda a tecnologia nova, que são coisas boas: a tecnologia nova é coisa ótima e eu acho que a ciência tem que continuar, a tecnologia tem que se aperfeiçoar, mas temos que encontrar formas que incluam a todos e façam que os benefícios disso sejam distribuídos a todos.

Aí é que está a caridade no seu sentido maior, de que realmente todos – todos, sem exceção – devem ser incluídos. E nós temos que fazer tudo para que isso aconteça, para que todos tenham igualmente seus direitos reconhecidos e a sua oportunidade de vida. Todos, sem distinção, todos os seres humanos. A caridade vai nessa direção. E isso é ética.

Ética é reconhecer a dignidade do ser humano e agir segundo a dignidade inviolável de cada ser humano. Esse respeito, essa promoção... Reconhecer os direitos, promover os direitos. Porque não é só reconhecer os direitos; é promover os direitos também. E a caridade ainda inclui justiça social, solidariedade e tudo aquilo que ajuda a promover as pessoas, a libertar as pessoas de todas as suas opressões.

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

Tudo isso está incluído na caridade. Só que a caridade tem alguns elementos novos. A justiça, que deve sempre ser promovida, pela qual devemos sempre lutar, é um dos ingredientes da caridade. O direito à justiça é um dos ingredientes da caridade. No entanto, a justiça sozinha não consegue cuidar das pessoas. Porque a justiça cobra, mas, por essência, não perdoa. A caridade perdoa...

Então, a caridade tem elementos cristãos muito fortes. Hoje nós entendemos como caridade todo esse conjunto. Por exemplo, Jesus Cristo tem algumas palavras muito fortes. Vou lembrar a vocês. Ele, por exemplo, disse aquela frase muito estranha: “Se te baterem na face direita, oferece a esquerda”.

Mas que coisa estranha! Isso porque os judeus tinham o “dente por dente, olho por olho”. Diziam: “Se ele lhe arrancar um dente, você tem o direito de arrancar um dente dele também”. Jesus disse: “Não”, porque você não pode sempre responder com violência a uma violência. Aliás, você nunca deveria responder com violência. Era a questão da violência. Na medida em que você responder com violência, o ciclo não termina mais.

Outra sentença que Jesus proferiu: “Amem os seus inimigos”. E todo o mundo ficou perplexo... Amar os vossos inimigos? e perdoar?. O Mestre chegou a perdoar aqueles que o crucificaram. Esses são elementos e argumentos muito fortes, que, de fato, nós sabemos que são necessários para uma convivência humana possível, digna. A caridade, em todos esses elementos, é fundamental para uma convivência humana digna

Mesmo a esmola ou a caridade precisam ser conscientes e discernidas. Algumas senhoras, em uma cidade que morei, fizeram uma festa beneficente e depois de deduzirem as “despesas” mandaram um cheque para a periferia. Isto é caridade? O rico empresário mandou entregar, pelo motorista, uma “cesta básica” a uma família em dificuldade. Isto é caridade?

Caridade é ter misericórdia. É sentar junto, é escutar e participar ao lado do outro. A decomposição de miser (miserável) + corde (coração) nos aponta para uma atitude de quem sente no coração a necessidade do faminto, do desempregado, do doente ou do excluído, das rodas sociais e das Igrejas, como diz a música libertária.

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

A caridade cristã deve ir além da ajuda material. Às vezes damos coisas fora do espírito da caridade, apenas para nos livrarmos de algumas obras. A caridade faz visível e, eu diria, quase tangível, por um lado, a misericórdia infinita de Deus para cada ser humano, e, por outro, nossa fé no Ressuscitado. Esta caridade consiste em harmonizar nosso olhar com o olhar de Cristo, nosso coração com seu coração. Desta maneira, o apoio amoroso, oferecido aos demais, traduz-se em participação e num compartilhar consciente de suas esperanças e seus sofrimentos.

Nós sabemos que a autenticidade de nossa fidelidade ao Evangelho verifica-se também com base no carinho, na atenção, na solidariedade efetiva e solicitude concreta que nos esforçamos em manifestar para o próximo, especialmente para os mais frágeis e marginalizados. A solidariedade não tem alcance apenas social, mas ocorre a partir de um forte sentimento religioso e espiritual.

Sob o fulcro da caridade, a releitura da Encíclica Rerum Novarum à luz da realidade contemporânea, nos permite apreciar a constante preocupação e dedicação da Igreja a favor daquelas categorias de pessoas, que são objeto de predileção por parte do Senhor Jesus. O próprio conteúdo do texto é um testemunho excelente da continuidade, na Igreja, daquela que agora se designa “opção preferencial pelos pobres”, opção que define como uma forma especial de primado na prática da caridade cristã. (CA 11).

Ao procurar promover a dignidade humana, a Igreja mostra um amor preferencial pelos pobres e marginalizados, porque o Senhor identificou-se de forma especial com eles (cf. Mt 25, 40). Este amor não exclui ninguém; simplesmente destaca uma prioridade de serviço, que goza do testemunho favorável de toda a tradição da Igreja. Este amor preferencial pelos pobres, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor.

O sensum charitas (sentido da caridade) da Igreja pelos pobres acha-se admiravelmente inscrito no Magnificat de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem da Nazaré, com exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que “derruba os poderosos e exalta os humildes (...) enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias (...) dispersa os soberbos (...) e conserva a sua misericórdia para aqueles que o temem” (cf. Lc 4, 18). Maria está profundamente (cf. RM 37) impregnada do espírito dos “pobres de Javé” que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação, pondo nele toda a sua confiança (cf. 25, 31). O apóstolo Tiago, o “Amós do Novo Testamento” deixa isto bem claro:

Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do

alimento cotidiano e algum de vós lhes disser: ide em paz,

aquecei-vos e saciai-vos, sem lhes dar o que é necessário ao

corpo, de que lhes aproveitará? (Tg 2, 15s).

Hoje, ninguém pode imaginar que, em continentes inteiros, são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome, inúmeras as crianças sub-alimentadas, a ponto de morrer uma grande parte delas em tenra idade e o crescimento físico e o desenvolvimento mental de muitas outras correrem perigo. E todos sabem que regiões inteiras estão, por este mesmo motivo, condenadas ao mais triste desânimo. (PP 45).

Claro que a esmola é uma atitude emergencial. Dou uma ajuda para alguém comprar um pão, apanhar um ônibus ou adquirir um remédio. É socorro momentâneo. Em muitas ocasiões, a esmola é o recurso que se torna disponível para minorarmos uma carência. Não devemos achar que fazemos tudo pelo próximo dando-lhe apenas nossas migalhas. A esmola é um passo inicial para tirar alguém do sufoco, mas deve ser sequenciada de uma atitude mais programática e efetiva, para, a partir daí se tornar caridade. A esmola é o primeiro passo para a caridade. Não é suficiente, mas é um início.

As campanhas do tipo “Não dê esmolas” servem como um salvo-conduto para quem deseja demitir-se das obrigações humanas, cristãs e sociais. Há quem pense e até diga que “Eu não dou esmola para não fomentar a malandragem, mas tem instituições trabalhando por ‘essa gente’, e até acho que a miséria acabou”. Será que acabou? Que “instituições” são essas? São confiáveis?

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

Vista pelo antigo judaísmo como uma das obras de misericórdia mais importantes, a esmola é aconselhada no evangelho de Mateus, que a considera como um gesto que brota do coração, dirigido, em última análise, ao próprio Deus, ao Pai que deve ser a única testemunha da esmola (cf. Mt 6,2ss). Lucas adverte contra a ganância, e aconselha, como meio de fugir dela, através da esmola (cf. 11,41; 12,33).

A coleta que Paulo organiza (cf. At 24,17) entre os cristãos de origem pagã, em favor da comunidade de Jerusalém, é louvada como um vigoroso ato de caridade cristã. Ela representa um gesto de reconhecimento aos que foram os primeiros a testemunhar o evangelho de a fé cristã. Ela representa um ato de ação de graças a Deus, autor de todos os bens e da obra maravilhosa da evangelização (cf. 2Cor 9,12-15). O centurião Cornélio (cf. At 10,4) deve sua conversão às suas orações e às suas esmolas.

Para Jesus o mandamento do amor para com Deus e com o próximo, resume toda a lei e o ensinamento dos profetas. Nesse contexto, o amor ao próximo está inseparavelmente unido ao amor a Deus. É isto que torna o homem semelhante a Deus (cf. Mt 5,45; Lc 6,35).

Caridade, por fim, é o ato generoso de saciar a necessidade das pessoas em suas vidas, simplesmente por amor a elas, e para que elas dêem graças a Deus. Se amarmos verdadeiramente ao próximo como a nós mesmos, não o deixaremos, tendo condições para saciá-lo, sem que atendamos às suas necessidades, pois estaríamos negando a nós mesmos. Assim, disse o Senhor Jesus, para que tenhamos misericórdia do próximo: “Vá e faça da mesma maneira.(Lc 10,37).

Quando se fala por aí, em auditórios cristãos, volta-e-meia surgem questões a respeito do que é a verdadeira caridade. Esse carisma se constitui no mais puro e pleno ato de amor. De nada adianta, sejam os dons ou o conhecimento da Palavra, se esta não for praticada; semelhante à pedra torna-se o coração sem caridade. Desta forma, o Espírito nos fala por meio do apóstolo Paulo:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e

não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o

címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e

conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que

tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes,

e não tivesse caridade, nada seria (1Cor 13,1s).

Da mesma forma, não basta praticar uma caridade hipócrita, como se vê por aí, tipo interesseira, para obter favores, resolver dificuldades circunstanciais ou apenas para “limpar o carma”. É necessário que os atos de caridade sejam revestidos dos mais benevolentes princípios, os quais Paulo nos expõe em Coríntios 13.

A maior caridade já nos foi praticada. O Pai enviou seu próprio Filho, para que nós não somente fossemos resgatados das maldições da lei pela doação de sua vida, mas também para que, por Jesus o Messias, pudéssemos ser chamados de filhos de Deus, como está escrito:

Vejam que prova de amor o Pai nos deu: sermos chamados

filhos de Deus! (1Jo 3,1).

A partir deste ato de amor imensurável de Deus para conosco, devemos estar ávidos em praticar a caridade por amor e gratidão para com todos. Esta caridade não deve ser morosa, mas como Jesus sempre fez, imediata, coerente e discernida.

O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença e a omissão. E é justamente essa indiferença que faz crescer a pobreza, a marginalidade, a infância abandonada, os bebês jogados no lixo e as famílias golpeadas pela pobreza. É indiferença que cria os problemas da terra, a marginalização da mulher e a ignorância política do povo.

Esmola e caridade são juízos afins, unívocos e convergentes que se interpenetram na busca da fartura do Reino, que primeiro é espiritual, e depois se transforma em bênçãos materiais em favor do pobre, do oprimido e daquele que tem fome e padece de alguma carência.

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

Meditação levada e efeito em um retiro de leigos na periferia de uma capital do nordeste em setembro de 2008. Estavam presentes cerca de 500 pessoas.

O autor, 68 anos, é biblista, pregador de retiros e Doutor em Teologia Moral.