O Deus Uno e Trino (SERMO LXXIV)

O DEUS UNO E TRINO

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Documentos da eclesiologia latino-americana dão conta que o nosso Deus, “no mais íntimo do seu mistério, não é solidão, mas uma família” (P 582). Tal assertiva nos revela que a espiritualidade cristã deriva suas capacidades específicas de uma gama de verdades fundamentais. O cristianismo, em seu discurso mais rico, fala na relação do humano com o transcendente, relacionamento esse vivido em uma comunidade de fiéis formada pela adesão-compromisso com Cristo e sustentada pela presença ativa do Espírito Santo. É nesse âmbito que a espiritualidade dos cristãos se move em uma nítida perspectiva trinitária, eclesial e sócio-fraterna.

Jesus está sempre passando por nós, os batizados, e nos convidando a um engajamento com a espiritualidade verdadeira que dimana do amor do Deus Trinitário. O Mestre é “aquele que vem em nome do Senhor”. Ele é o logos, o “verbo encarnado” que vem aos que se abrem ao projeto salvífico do Pai. Deus tem uma linguagem paradoxal, que às vezes parece contraditória, sob a ótica de nossa limitada visão. Ele nos vê como criaturas em particular, com a nossa individualidade e na comunidade com os dons que devem ser partilhados. A Jerusalém de hoje é o nosso coração que precisa ser restaurado, tornando-se aberto para recebê-lo com alegria.

Nós costumamos afirmar que a Santíssima Trindade é o grande mistério da revelação cristã, pois toda a criação passa pelo poder de sua obra. Jesus ao se tornar homem, revela ao mundo o mistério central da nossa fé: ele se encarnou para dizer quem é o Pai, quem é o Filho e quem é o Espírito Santo que o Pai envia em seu nome. Maria, a mãe de Jesus, fez a síntese trinitária em sua vida. Ela é a pessoa humana por excelência que mais soube se colocar a serviço do Pai, do Fi-lho e do Espírito Santo. Ela viveu em plenitude a fé, a esperança e o amor. Diante do abissal mistério do Deus-Trindade-Amor, que amando conclama a amar, ela realiza a resposta do seguidor do Ressuscitado, que só pode ser aquela de celebrar a glória desse amor incomparável. Essa celebração é a forma mais pura e elo-qüente de viver a espiritualidade-comunhão com o Uno e o Trino. Como afirma Bruno Forte, pregador de retiros da Casa Vaticana, É este o sentido da confissão de unidade e unicidade do Deus da tradição bíblica. Tal profissão de fé é um ato de adoração, bem como um compromisso de vida: “Escuta (Sh’ma!) Israel: o Senhor é nosso Deus e é Uno. Amarás o Senhor teu Deus com todo a teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças!” (Dt 6,4). Quem crê em Deus penetra no seu mistério, e se empenha que todos os homens entrem nessa dinâmica, na justiça e na paz.

Deus se apresenta na história como um só em três Pessoas para que tenhamos maiores chances de conhecê-lo e adorá-lo. A questão que é razão de qualquer teoria ou prática religiosa, mais do que uma metodologia, aponta para a ne-cessidade que temos de conhecer a Deus. Quem é Deus e como ele se revela à humanidade? Estas são perguntas localizadas no âmago da fé cristã. Nesse aspecto. Uma teologia viva está sempre fundamentada na vivência de uma espiritualidade equilibrada, baseada no amor do Pai, na graça de Jesus Cristo e na comunhão do Espírito Santo (cf. 2Cor 13,13).

A Igreja afirma que a Trindade é um mistério de fé no sentido estrito. Trata-se de um dos muitos mistérios escondidos em Deus, que não podem ser conhecidos se não forem revelados do Alto (DS 3015 – Vat. I; CIC 237).

É interessante salientar que a Igreja, ao contrário do que acusam alguns segmen-tos adversários, não professa uma fé em “três deuses”, mas em UM só e único Deus em TRÊS pessoas. Cada uma das pessoas da Trindade Santa é Deus pela consubstancialidade, e tem sua forma própria e característica de orientar nossa espiritualidade. Este mistério é o centro axial da fé cristã onde o Pai cria, o Filho se encarna e o Espírito Santo procede do amor de ambos. Como disse Santo To-más de Aquino, cada Pessoa, embora atue junto com as outras, age de seu jeito na criação do Universo (STh I que 27-43).

Batizados em nome da Santíssima Trindade, os cristãos se renovam em um novo nascimento para Deus. Essa regeneração é o mais precioso dom de Deus, pois conduz o homem – e orienta sua espiritualidade – para a amizade com ele. Essa amizade, mistério da graça – como veremos adiante – conduz a humanidade à sal-vação. Ao afirmar, por exemplo, tudo o que pertence ao Pai é meu também. Por isso é que eu disse: o Espírito vai receber daquilo que é meu, e o interpretará para vocês (Jo 16,15). Jesus evidencia com muita clareza a sincronia entre os Três divinos.

Crer no Deus Triúno não deve se limitar apenas a um pragmático e superficial acreditar. Crer é muito mais que isto, é ter fé, ir além... Crer é amar como Jesus amou e continuar, na dimensão sócio-fraterna, sua obra. A Santíssima Trindade não pode ser compreendida fora de um contexto de amor e salvação. Ela é uma realidade de participação nos conduz à comunhão final, nos redime, liberta e sal-va, tornando nossa humanidade mais espiritualizada, plena e enriquecida.

A Trindade, definida dogmaticamente como Um só Deus e Três Pessoas, é a mola propulsora da autêntica espiritualidade cristã. Antes que o mundo existisse, Deus já existia na interioridade do amor dos Três Divinos e no projeto de criar o homem e fazê-lo feliz. A virtude criadora do Universo é, portanto, toda ela Trinitária. Na verdade, a expressão utilizada aqui “Deus já existia” é incorreta. Quando tratamos das coisas de Deus, devemos empregar as palavras e os verbos adequadamente. Como digo em meu livro Kairós, teologia do tempo do Senhor (Ed. Vozes, 1998). O tempo adequado para Deus é sempre o presente, pois sendo Criador e incriado, ele não tem passado. Assim, ele ama, cria, salvam existe e perdoa. Os atos de Deus estão sempre acontecendo no presente, num kairós, pois nele, que é eterno, não há cronologia.

O fato é que o Deus Triúno está presente em toda a história da humanidade, des-de a Criação do mundo, na inspiração dos profetas, na encarnação, na instaura-ção da Igreja e na expectação da parusia. Muitos teólogos e biblistas vêem nos três homens que visitam Abraão, em Mambré (cf. Gn 18), retratados no famoso ícone de Rublev (séc. XV), o deus Trino que anuncia ao patriarca a boa notícia, resultando para o clã e todo o povo em uma bênção de fecundidade, que a partir daí irá se tornar “povo de Deus”, santo e escolhido. No linguajar rebuscado dos Livros Sapienciais, o Espírito Santo é chamado de “a sabedoria de Deus”. Essa sabedoria está ao lado do Pai no evento criacional.

[...] antes que fossem feitos a terra, os campos e os primeiros elementos da poeira do mundo... quando ele preparava os céus, ali estava eu, quando traçou o horizon-te na superfície do abismo, quando firmou as nuvens no alto, quando dominou as fontes do abismo, quando impôs regras ao mar, para que suas águas não transpu-sessem os limites, quando assentou os fundamentos da terra, junto a ele estava eu como artífice, brincando todo o tempo diante dele... (Pv 8,26-30).

Desde os albores do cristianismo, o mistério da Santíssima Trindade é o ponto alto da fé e da espiritualidade da Igreja e da nossa vida cristã. O apóstolo Paulo manifesta a síntese da ação divina na alma humana que se dispõe a acolher o dom de Deus. Nessa acolhida está o cerne da espiritualidade. O dom de Deus é multiforme e se compõe da graça que Cristo nos mereceu e ofereceu gratuitamen-te a todos, o amor do Pai, rico em misericórdia, e a inspiração do Espírito Santo que gera a comunhão.

A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo é a parte que corresponde ao Filho no pro-jeto da salvação que o amor do Pai pensou e terminou concretizando na ação do Espírito Santo. Deste modo, a Santíssima Trindade se torna modelo e certeza de comunhão para toda a humanidade a partir da forma irrestrita com que as Três Pessoas se amam. Sendo modelo e certeza, a Trindade se torna também escola de espiritualidade, caminho e meta de chegada para aqueles que querem viver o amor de Deus, seguindo a Jesus, que se torna assim, pelo poder do Espírito Santo, a re-velação visível do Deus invisível (A. M. Galvão. A Santíssima Trindade. O mistério de Três Pessoas e Um só Deus. Ed. Ave-Maria, 2ª. edição, 2000).

Esta é uma realidade dogmática, envolta no mistério, que aprendemos desde os catecismos elementares. Embora mistério a Trindade nos deixa alguns vestígios que são possíveis de ser compreendidos, e dignos de toda a adoração. Não é por-que certas coisas não podem ser plenamente compreendidas que vão deixar de ser verdade e possuir um peso significativo para o enriquecimento do nosso processo de espiritualidade.

No episódio do “batismo de Jesus”, na margem do rio Jordão, marco fontal do cristianismo, vemos a Trindade celebrando os tempos do Messias que ali se ins-tauravam: o Filho é batizado, o Espírito Santo pousa sobre ele (em forma de pom-ba) e o Pai proclama seu amor, generoso e eterno (cf. Mt 3,16). Nessa perspectiva revelacional observa-se como a Trindade opera em cada pessoa de acordo com a ação que lhe é característica.

Quando subiu aos céus, Jesus determinou aos seus discípulos a continuidade da sua obra, anunciando a todos a boa notícia do Reino, e batizando os crentes em todo o mundo “em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo” (cf. Mt 28,19s). Ao confi-ar a missão aos seus seguidores Jesus age articuladamente com a Santíssima Trindade:

O Espírito Santo descerá sobre vocês, e dele receberão força para serem as minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os extremos da ter-ra (At 1,8).

O Espírito desce a mando do Pai para iluminar aqueles que serão as testemunhas do Filho ressuscitado. Abrem-se, a partir daquele mandato, as pistas para o de-senvolvimento de uma espiritualidade maciça, consciente e testemunhas, onde o desejo de santidade do ser humano vai se encontrar com os dons de Deus. Nas primeiras epístrofes da Igreja, sob a inspiração do Espírito, já eram proclamadas fórmulas trinitárias:

Deus ressuscitou a este Jesus. E nós todos somos testemunhas disso. Ele foi exal-tado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito prometido e o derramou: é o que vocês estão vendo e ouvindo (At 2,32s).

Os antigos “Pais da Igreja”, de cultura grega, lá pelos séculos III e IV dC., objeti-vando dinamizar a incipiente espiritualidade dos fiéis, costumavam ensinar às suas comunidades: quem quiser se salvar deve [...] pensar e crer na Trindade (DS 75; PG 12,205)

Na Santíssima Trindade – é salutar nunca esquecer, sob pena de se recair em grave heresia – não existe qualquer relação de subordinação. Os Três Divinos são co-eternos, simultâneos e relacionais. Nessa linha de crença, o Credo, tanto o A-postólico como o Niceno-Constantinopolitano, em sua estrutura trinitária resume o conjunto da fé cristã, em que o Espírito opera ativamente na pericórese (interio-ridade) divina. Santo Ireneu († 201), um dos maiores teólogos da Antigüidade, es-tabeleceu uma reflexão profunda sobre o mistério da Santíssima Trindade. Nessa reflexão (in: Contra os Hereges), uma das primeiras aulas sobre a Trindade Santa, há uma menção clara e explícita às Três Pessoas, estatuindo a forma como deve-mos crer nelas para incrementar uma espiritualidade eficaz.

• Deus Pai é incriado (primeiro artigo de fé);

• Jesus Cristo, o logos de Deus, reúne o homem e Deus (segundo artigo);

• O Espírito Santo (“ele que falou pelos profetas”) foi derramado sobre a humanidade para renová-la (terceiro artigo).

À relação amorosa dos Três Divinos, a teologia chama de pericorética (interiorida-de). Nessa imanência se observa a comunhão recíproca e amorosa do Pai, do Filho e do Espírito Santo, assumida de forma integral. Nessa conformidade, o Pai ser torna peghé (fonte) na qual o Filho e o Espírito bebem. Ali o Filho é gerado e o Es-pírito procede dessa comunhão inefável.

Cheia de problemas e desajustes, a sociedade moderna ainda não aprendeu a de-senvolver regras eficazes de convivência, talvez porque desconheça o sentido da comunhão existente na interioridade de Deus, levada a efeito pelos Três Divinos, Pai, Filho e Espírito Santo. A Trindade é, sem dúvidas, modelo para a família, pa-ra as comunidades e sociedade humana como um todo. A comunidade humana é permanentemente vocacionada a renovar sua espiritualidade e a testemunhar a comunhão trinitária do amor e da entrega recíproca.

O fato de contemplar e adorar a Trindade pode nos levar, não só à revisão da for-ma como conduzimos nossa espiritualidade, como também à crítica do modelo social e familiar de nosso tempo. É comum se observar a existência de um indivi-dualismo egoísta no lugar da partilha de bens afetos, sentimentos e atitudes. Se a pessoa é humana é imagem e semelhança daquele que as criou, conforme cremos, e essa imagem é solidária e associativa, por que desenvolvemos uma cultura ego-ísta capaz de privilegiar o individualismo?

Se olharmos atentamente, veremos que os nossos modelos sociais, no regime so-ciopolítico que for, se confrontados com o modelo trinitário da pedagogia divina, ficam abaixo da crítica, com muito a dever, perdendo-se em descaminhos históri-cos, num caos quase sem volta. Em tempos de inclusão social, vale a pena obser-var o modelo da Santíssima Trindade, que a ninguém exclui. Como ensina L. Boff,

A sociedade que pode surgir, na inspiração do modelo trinitário, deve ser fraterna, igualitária, rica pelo espaço de expressão que concede às diferenças pessoais e grupais. Só uma sociedade de irmãos e irmãs, cujo tecido social seja urdido de par-ticipação e comunhão de todos em tudo é que pode reivindicar ser pálida imagem e semelhança da Trindade, o fundamento e o aconchego derradeiro do universo (in: A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Ed. Vozes, 1988).

Sendo templo da Santíssima Trindade, a pessoa humana é digna de todo o respei-to e solidariedade. Atentar contra essa dignidade é, como nos ensina a Teologia Moral, praticar um pecado que clama aos céus. Só dando curso a espiritualidade rica e fecunda é que o cristão é capaz de compreender essa realidade e colocá-la em prática. Essa atitude dimana de um apurado sentido de fé.

Ao crer na Trindade o cristão trava um conhecimento mais claro com o projeto de Deus, elaborado desde sempre fazê-lo feliz. Toda a felicidade buscada fora de Deus, fora daquele mistério da economia da salvação, é falsa e, como tal, incom-pleta e ilusória. Só Deus é capaz de preencher o vazio existencial e a sede de infi-nito que há no ser humano. Assim se situa a Trindade no princípio de nossa busca por uma espiritualidade capaz de nos aproximar de Deus, possibilitando o seguimento de Jesus. Escrevendo às Igrejas da Ásia, São Paulo elabora uma reve-ladora doxologia:

É por isso que eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda fa-mília, no céu e na terra. Que ele se digne, segundo a riqueza da sua glória, fortale-cer a todos vocês no seu Espírito, para que o homem interior de cada um se fortifi-que. Que ele faça Cristo habitar no coração de vocês pela fé. Enraizados e alicerça-dos no amor, vocês se tornarão capazes de compreender, com todos os cristãos, qual é a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, de conhecer o amor de Cristo, que supera qualquer conhecimento, para que vocês fiquem repletos de toda plenitude de Deus (Ef 3, 14-19).

O Concílio Vaticano II manifesta de forma clara e concisa o acesso trinitário à sal-vação e à verdadeira espiritualidade, através do Espírito Santo,

Senhor que dá a vida: Consumada a obra que o Pai confiara ao Filho para que realizasse na terra, no dia de Pentecostes foi enviado o Espírito Santo pa-ra santificar continuamente a Igreja e assim dar acesso ao Pai, por Cristo, num só Espírito (cf. Ef 2,18). Este é o Espírito da Vida, fonte de água que jorra para a vida eterna. Por ele o Pai dá vida aos homens mortos pelo pecado, até que um dia ressuscitem em Cristo os seus corpos mortais (LG 4).

Texto de pregação em uma novena, na Festa da SS. Trindade, em uma Diocese do Paraná, em 2008.

O autor tem mais de uma centena de livros editados, no Brasil e exterior, entre ele “O dom de Deus”, Ed. Ave-Maria, 2ª. edição, 1999. É teólogo leigo, biblista com especialização em exegese, e Doutor em Teologia Moral.