Ter fé ou acreditar? (SERMO LXXIII)

TER FÉ OU ACREDITAR?

Geralmente, nos cursos, conferências e retiros que tenho realizado pelo Brasil tenho escutado questões a respeito da diferente entre ter fé e acreditar. Muita gente pensa que é a mesma coisa. Pois é sobre isto que vamos discorrer hoje, nesta reflexão.

Assim, passamos a invocar a fé, como sustentáculo e inspiração da ética cristã, e caminho para a implantação de uma política que atenda desde os mais elementares anseios da pessoa humana. Quando se fala em fé, mesmo em ambientes eclesiais, constata-se que, de certa forma, o povo ainda faz alguma confusão entre ter fé e acreditar, entre religião e religiosidade, entre Igreja e Reino.

Algumas correntes da nova psicologia demonstram certa confusão ao afirmar que o termo fé não é privativo da atividade religiosa, mas vinculado a toda atividade antropológica. Se formos observar atentamente tais afirmações, veremos que elas usam fé como acreditar (em si e nos fatos históricos). Na verdade, acreditar é aceitar alguma coisa como real, até que fatos novos confirmem ou desmintam. Acreditar, em geral, é provisório, como uma faculdade tipicamente humana.

A fé é algo mais consistente e profundo; emana do transcendente. Teologicamente diz-se que é um dom, um presente gratuito de Deus. Há a fé cerimonial, cúltica, que é um gesto de respeito a atos e cerimônias, sem contudo ter as características de fé autêntica. Situa-se mais na linha da crença; algo que exija uma demonstração permanente.

A teologia ensina que Deus, desde a perda do paraíso estabeleceu um plano de amor, chamado economia da salvação, capaz de resgatar o homem de sua situação de pecado, de queda original, de afastamento com seu Criador. A esse plano dá-se o nome de Plano (alguns dizem projeto) de Deus.

Ora, no mistério da amizade (a graça), Deus vem ao encontro do homem e o convida a participar do Plano de Salvação. Essa oferta é gratuita e não pressupõe méritos anteriores, exceto os que Cristo obteve na cruz. A resposta a esse dom (presente) de Deus é dado pelo homem através da sua fé. Deus vem ao encontro (a graça); o homem atende, adere, confirma (a fé).

Assim podemos concluir que fé é a resposta pessoal do homem a uma proposta divina (a graça). Aderindo ao chamado da graça, o homem torna-se filho de Deus, irmão de Cristo, irmão dos outros homens, membros da Igreja, herdeiro do Reino e destinatário da salvação. A graça engloba tudo isto. Há, embora sutil, uma diferença entre crer, acreditar e ter fé.

Crer vem de credere, que no latim é acreditar com o coração. Crê-se em realidades divinas e humanas. O acreditar ocorre mais a nível intelectual, mediante comprovações físicas ou de valor. Ter fé vai mais além e exige profundidade. É algo místico; vem do mistério. Mistério, no grego mistêrion, retrata grandezas que estão acima da compreensão humana.

Crê-se com o coração; acredita-se com a mente. Fé, porém, é um ato de entrega e confiança sem nenhuma comprovação em troca. Ter fé é comprometer-se; com Deus, com o outro e com a natureza. A fé, diz J. B. Libânio, é um apropriar-se, ao longo da história, de modo humano, do projeto proposto por Deus. A fonte de revelação do projeto de Deus está nas Sagradas Escrituras.

Como resposta global, abrangente e incondicional, a fé é uma atitude de aproximação do ser humano, em direção ao plano de Deus. Esse projeto é um conjunto de providências histórico-salvíficas, no sentido da felicidade do homem. Destina-se, como plenitude, para a outra vida; seus efeitos, todavia, começam a ser sentidos aqui na terra.

Para desenvolver a fé é preciso estabelecer um processo de ver, julgar e agir. Até certo ponto não é difícil, dentro das nossas limitações, estabelecermos um ver, baseado naquilo que se enxerga no dia-a-dia. A partir de agora, deve se incorporar o teológico à linha de raciocínio iniciada, indo em busca de um julgar e, se Deus quiser, levantar, por fim, pistas para um agir. Olhamos a realidade (ver), inspiramo-nos na Palavra de Deus (julgar) e tomamos uma atitude cristã transformadora (o agir).

Ter fé é abrir-se ao apelo amoroso de Deus; é estar a serviço, na ajuda, na caridade, na defesa, na acolhida e na partilha. Há uma grande diferença entre caridade e assistencialismo. A caridade, como a fé e a esperança, é um dom de Deus. O assistencialismo é mais material, cíclico e circunstancial.

Um grupo de senhoras decide fazer um chá em benefício de uma creche, por exemplo. Fazem os convites, encomendam os comes-e-bebes, contratam as atrações. Dias depois, deduzidas as despesas, mandam um cheque à creche. Isso é assistencialismo. Fazem a doação, mas antes dela, divertem-se, fazem higiene mental. Mandam o valor líquido arrecadado. Não têm trabalho; mandam fazer tudo fora; não vão lá ver as crianças; mandam somente o cheque.

Igualmente são assistencialistas os chamados “clubes de serviço”, cujas campanhas visam, antes da assistência, o ganhar pontos junto ao distrito superior. Durante um jantar de cem pessoas é arrecadado um valor. No dia seguinte, ou no outro, vão ao local, por exemplo, um lar de velhos, entregam o valor arrecadado, levam suas bandeiras e estandartes, tiram fotos que vão servir de comprovante junto às autoridades superiores, e para serem publicadas na revista mensal, como eficiência. Isso é assistencialismo!

O assistencialismo pode até atender às necessidades dos carentes, mas nunca será caridade por faltar-lhe o ingrediente fé como eixo motriz, e também pela falta de continuidade. A antropologia cristã tem na fé em Deus sua origem e destinação. O homem deve emergir do anonimato da matéria para a luz da dignidade. Os antigos mestres judaicos diziam que ter fé e amar são faces da mesma moeda.

A fé dos judeus, ponto de partida para a nossa fé cristã, não nasce a partir de constatações mais ou menos teóricas sobre a existência de um criador. Há esta reflexão, sem dúvidas, mas ela é posterior. Os antigos hebreus, desde o tempo do semi-nomadismo, fundaram sua fé mística a partir de um evento histórico. O Deus de Israel é um Deus vivo que atua:

Da mesma forma como a chuva e a neve, que caem do céu

e para lá não voltam sem antes molhar a terra, tornando-a

fecunda e fazendo-a germinar, a fim de produzir semente

para o semeador e alimento para quem precisa comer, assim

acontece com a minha palavra que sai da minha boca: ela

não volta para mim sem efeito, sem ter realizado o que eu

quero e sem ter cumprido com sucesso a missão para qual

eu a mandei (Is 55, 10s).

A fé professada pelo povo hebreu se prende a uma introdução histórica:

Amanhã seu filho vai lhe perguntar: “O que significam esses

testemunhos, estatutos e normas que Javé nosso Deus

ordenou a vocês?”. Então você responderá a seu filho: “Nós

éramos escravos do Faraó no Egito, mas Javé nos tirou do

Egito com mão forte. Diante de nossos olhos ele realizou

sinais e prodígios, grandes e terríveis contra o Egito, contra

o Faraó e toda a sua corte. Quanto a nós, porém, ele nos

tirou de lá para nos introduzir aqui e nos dar a terra que

havia prometido a nossos antepassados. Ele então nos

ordenou cumprir todos esses estatutos, temendo a Javé

nosso Deus, para que sempre tudo nos corra bem e para

nos dar a vida, como hoje se vê. Esta será a nossa justiça:

cuidarmos de colocar em prática todos esses mandamentos

diante de Javé, nosso Deus, conforme ele nos ordenou”

(Dt 6, 20-25).

A historicidade de um povo, descoberta após uma leitura mais atenta da Bíblia, mostra que a fé dos antigos judeus é algo projetado ao futuro. A terra à qual o povo é conduzido representa o cumprimento daquelas promessas feitas aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó. Ela é uma promessa que se projeta no tempo. Tempo terreno, de bem estar (terra onde corre leite e mel) e tempo futuro, de eternidade celeste.

Como processo histórico, as sociedades de todos os tempos sempre buscaram racionalizar a fé, colocando-a a serviço de ideologias, adaptando-a a seus discursos. Em nosso continente latino-americano – afirma o documento de Santo Domingo (1992) – há um divórcio entre fé e vida, ao ponto de produzir clamorosas situações de injustiça, desigualdades sociais e violência.

Hoje, muita gente que se diz cristão, pratica a injustiça, o roubo e a opressão de seus semelhantes. Tivemos até um “anão do orçamento” que enriqueceu ilicitamente, e teve a cara-dura de afirmar que “...Deus me ajudou...”. Nesses, a fé não teve força, ainda, de penetrar de forma radical e transformadora. O patrão que paga um salário indigno ou que demite sem razão, está ajudando a tirar a vida do assalariado.

O pão é a vida do pobre; quem tira esse pão é sanguinário.

É assassino do próximo quem lhe tira os meios de viver;

derrama sangue quem priva o trabalhador do salário

(Eclo 34, 18-22).

Sendo a fé um salto para o desconhecido, ter fé é aceitar como verdade algo que a nossa inteligência humana não tem condições de processar (cf. Hb 11,1s). O cientista acredita depois de comprovar; o místico tem fé sem pedir comprovação.

O ato de fé – ensina Gustavo Gutiérrez – encontra-se na raiz de toda teologia. Mas não enquanto simples adesão intelectual à mensagem, e sim como acolhida vital ao dom da Palavra ouvida na comunidade eclesial, como encontro com o Senhor, com o amor ao irmão. Acolher a Palavra, tornando-a vida e gesto concreto, constitui-se o ponto de partida do entendimento da fé. Na formulação teológica de Santo Anselmo († 1109) encontramos o credo ut intelligam:

Eu não pretendo, Senhor, penetrar em tua profundidade,

porque minha inteligência não poderia, de modo algum

esgotá-la; mas desejo compreender, em certa medida, a tua

verdade, que meu coração crê e ama. Não procuro

compreender para crer, mas sim creio para compreender

(Credo ut intelligam), pois estou seguro que se não cresse

não compreenderia.

A graça da fé dá todo o suporte ao trabalho teológico. A vida da fé, nesse aspecto, não é só marco de partida, mas, sobretudo o ponto de chegada da especulação teológica. Aqui, o crer e o compreender encontram-se numa relação como que circular e recíproca. Na Bíblia, o ato de conhecer não está relegado a um nível simplesmente intelectual.

Conhecer é amar. Isso nos leva a viver a fé como instância mediadora do amor de Deus pelo homem e vice-versa. A crença instrumentalizada por interesses ou ideologias (e como tal alienante) , é um simples acreditar; jamais será fé. Para iluminar o processo de crescimento da fé é preciso abandonar certas posições maniqueístas, como “a Igreja é a reunião dos bons”, “nada no mundo é bom”. Isso leva a um verticalismo radical, a uma fuga da realidade, que impede o fluxo da fé em todos os compartimentos da vida humana, inclusive na sociedade.

Muitas vezes a atitude de crença é eminentemente formal, escondendo por detrás um ateísmo materialista, um desinteresse com o outro, capazes de revelar um egoísmo sem precedentes. O homem hodierno busca mais segurança do que salvação. Tendo, com freqüência, perdido o sentido do pecado e do transcendente, almeja dominar o mal (considerado mais como carência ou como um passo necessário a ser superado) por meio das ciências. Também por isso, parece-lhe, não raras vezes, inútil recorrer a Deus. Eis alguns exemplos, segundo C. I. Gonzalez:

a) o homem racionalista reduz o mal humano às faltas contra a norma ética, cujas raízes não ultrapassam os fatos. É um novo pelagianismo apresentado com tintas humanistas;

b) para o evolucionista não existe pecado, mas uma etapa cujos elementos negativos serão superados naturalmente, em termos da evolução;

c) o psicologista procurará reduzir exageradamente a idéia de Deus no homem, por exemplo a uma superestrutura ilusória, proveniente do desejo reprimido de um paraíso perdido, ou coisa semelhante. Neste caso o psicólogo deveria, por exemplo, ajudar a pessoa a se salvar, encontrando a si mesma, ou se adaptando à sociedade. Negado o pecado, a consciência deste poderia reduzir-se à experiência de um “complexo de culpa” a ser eliminado ou superado;

d) o existencialista, invariavelmente ateu, sente a vacuidade e o absurdo de um homem sem esperança de libertação. Trata-se de uma cosmovisão pessimista que repudia uma “salvação vinda de fora” (de Deus) para transformar o interior do homem;

e) o homem vítima da sociedade de consumo sente-se ameaçado pelas guerras ou pelas máquinas que ele mesmo fabricou. Longe de esperar em Deus, busca salvação em frágeis tratados de paz, ou coloca sua confiança nas estruturas e sistema políticos, econômicos ou de consumo.

Crer no sentido de ter fé, vincula, compromete, cria laços. Crer, mais na linha do acreditar, torna tudo muito superficial: “Creio que o homem foi à lua; mas isso não me vincula nem me compromete com nada”. Sobre esse acreditar (crer sem compromisso) há uma interessante admoestação de São Tiago:

Crês tu que há um só Deus? Fazes bem. Só que os demônios

também crêem nisso. E tremem (Tg 2, 19).

Às vezes nossa maneira de crer, sem compromisso, alienada, sem unir fé com atitudes, pode ser um pouco semelhante ao modo como os demônios crêem na existência de Deus. É do tipo eu aqui e ele lá. Isto não é fé, e nunca será, porque não existe nem a tentativa. Uma crença verticalista, só em Deus, ignorando ou desprezando as criaturas, não é fé; e pior: torna-se uma mentira:

Quem diz amo a Deus, e deixa de amar seu irmão, é um

mentiroso; pois quem não ama a seu irmão, a quem vê,

não poderá amar a Deus, a quem não vê (1Jo 4, 20).

Perdido o senso da horizontalidade – como afirma A. Algayer – , a fé entrou a ser vivida de forma abstrata, a-histórica, intemporal, desvinculada do mundo. E a promessa do Reino ficou reduzida à esperança escatológica, acontecimento futuro. Ser bom cristão, da “cidade de Deus” e bom súdito do imperador, cumprir formalmente os mandamentos, receber os sacramentos, seria considerado forte garantia de salvação.

O Evangelho de Jesus e o kérygma (anúncio) da Igreja não podem ser separados. O Evangelho sem a fé testemunhada pela Igreja torna-se apenas um conjunto de textos bonitos. O kérygma sem o Evangelho anuncia uma idéia meio alienada, divorciada da realidade. Sobre isto há um texto do teólogo J. Jeremias que ensina que o Evangelho de Jesus e a Proclamação da Igreja, embora atuem sintonizados, não são a mesma coisa. A vida e a obra de Jesus são a Palavra de Deus com a qual ele interpela os homens. A fé da Igreja é a resposta, inspirada pelo Espírito Santo, com a qual o gênero humano responde ao apelo de Deus - louvando-o e dando um testemunho ao mundo.

Fé é diferente de acreditar. Nunca é demais a repetição. Deste modo, não é fé:

a) sentimento (sentimentalismo)

gestos sem conteúdo;

b) razão

constatação lógica, tipo 2+2=4 (embora a fé não seja

contra a razão);

c) fanatismo

religiosidade fanática, exagerada, cega e sem conteúdo;

d) formalismo

vida religiosa tradicional, irracional, sem profundidade e

sem o mínimo compromisso com a alteridade;

e) incoerência

atos que desmentem gestos ou discursos; cristão

desonesto com a Bíblia debaixo do braço; política que usa

o nome de Deus em seus discursos demagógicos; o casal

infiel que tem imagem de Nossa Senhora pendurada

na parede do quarto; juiz injusto com crucifixo sobre a

mesa; etc.

Sobre fé incoerente, muito se teria que falar. Às vezes se vê pessoas avarentas e usurárias a falar em Deus, a agradecer por tantos bens, como se Deus pudesse tornar-se cúmplice de tanta rapina e idolatria. Sobre a idolatria da posse, há um discurso contundente de São Paulo:

O avarento, que é um idólatra, não participará da herança no

Reino de Cristo (Ef 5, 5).

A chamada “religião com mancha”, ou seja oca, sem valor, usando-se uma antítese a um trecho de São Tiago (cf. 1, 27) é aquela que pensa subsistir sem a fé e sem a caridade, em última análise, sem o compromisso social com o mais fraco, representado no texto pelos órfãos, pelas viúvas e pela vida correta. Ainda sobre a avareza e o império do ter encontramos a oportuna palavra do papa Paulo VI: “A avareza pode suscitar um materialismo sufocante” (PP 18).

Toda a realidade religiosa aponta, pois, para Deus. Mas Deus, o Deus de Jesus, aponta, paradoxalmente para o homem, suas necessidades e seus valores. Daí a inesperada conclusão com a qual Tiago trata de definir a religião pura e sem mácula: Visitar os órfãos e as viúvas, em sua dor....

Lamentavelmente, o que se encontra hoje, em termos de religião, é uma enorme dicotomia entre a prática e o discurso. A fé dos fariseus era assim. Exterior, legalista e carente de sinais. Acreditar só depois de ver. E isso se evidencia muito nos chamados “grupos de elite”, onde cristãos de classe média (e classe média alta), pertencentes ou não a movimentos eclesiais leigos, de casais, de profissionais, de dirigentes de empresa, geralmente adotam duas atitudes equivocadas (para não dizer falsas):

1. a favor das opções sociais, mas só no discurso, pois

ninguém quer renunciar a seu lazer de fim de semana, na

casa de praia, ou no sítio... falam muito em partilha, mas

ninguém mexe no bolso;

2. os “movimentos sociais” da Igreja são subversão, um perigo

à propriedade privada.

Essas pessoas, de todos os grupos, vão à missa quando estão dispostas, dão esmola (mas esquecem-se da partilha), e seus encontros e reuniões, em geral, são autênticas “ilhas da fantasia” apartados da realidade, despidos do transcendente. É triste se ver determinados intelectuais cristãos, leigos ou consagrados, a citar mais filósofos e pensadores do que Jesus ou algum teólogo comprometido. Em outros casos Deus aparece no centro do discurso, mas não das atitudes...

A atual consciência social, insensível diante dos sofrimentos dos excluídos do mercado, revela a vitória desta nova espiritualidade: amar o próximo é defender os interesses pessoais contra outros do mercado e, sobretudo, contra a violência dos excluídos do mercado. Uma estranha espiritualidade para um país que se diz cristão. Como a sociedade capitalista está fundada na ilusão de que o mercado é o único caminho para o paraíso, identificado como plenitude de consumo, o sacrifício dos pobres é apresentado como ‘sacrifício necessário’ para a ‘redenção da sociedade’. E com isso, se cria uma cultura da insensibilidade social, o que possibilita, aos integrados no mercado uma consciência tranqüila diante do sofrimento dos pobres (J.M. Sung).

A tradição bíblica sempre condenou a exigência de sacrifícios humanos em favor de ídolos ou deuses. Hoje a idolatria do consumo, despida de fé no transcendente imola pobres e excluídos ao deus-mercado. É a teologia do consumo.

A fé verdadeira, diferente do simples acreditar ou emocionar-se com palavras bonitas, é aquela que interpela as consciências por causa das extremas injustiças encontradas na sociedade dita cristã. Essa fé deve remeter os cristãos às fontes de onde brotam a injustiça e o egoísmo. É a partir dessas fontes que deve iniciar uma ação transformadora.

Essas situações de pobreza, injustiça e desrespeito, já alertavam os bispos em Puebla, em 1979, “...são um sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança ideológica e da organização da convivência social e econômica de nossos povos” (P 437). É um texto antigo, mas sempre atual.

A ética cristã tem na fé seu ponto de partida. O grande desafio é cristianizar a ética social, arrancando-a do domínio das ideologias, para convertê-la no poder que irá transformar a política num instrumento do amor, da partilha e do bem comum. “...optar pelos pobres, diz João Paulo II, é a primeira forma de se praticar a caridade cristã” (SRS 43).

Para que a ética cristã ilumine a atividade política, é necessário que as pessoas mudem seu modo de ser, convertendo-se aos projetos de Deus. Quem coloca o poder acima de tudo, não respeita a liberdade do outro. A autoridade e a hierarquia, em geral, pelo degrau que impõem, banem o diálogo e a relação de amor. Quem tem com-paixão com o sofredor, não impõe autoridade.

Conduzida como âncora da espiritualidade coerente e discernida, a fé torna-se um poderoso condicionador do senso crítico. Nesse particular, a fé é essencialmente crítica. O verbete crítica vem do grego, xrytiké, da mesma raiz de crise, dá idéia de uma ocasião de julgamento. Crítica é uma escolha de alternativas, exercendo um julgamento sobre as posturas sociais, as ideologias e, sobretudo, uma visão comparativa entre a realidade e o projeto de Deus.

Historicamente, as ideologias iluminista, capitalista, marxista, comunista, neoliberal, de segurança nacional, nova ordem, pansexualismo, têm sofrido a crítica da fé e da ética cristã, e não têm sido aprovadas. Enquanto a fé irradia, abre, a ideologia fecha, privatiza, relativiza.

A mensagem mística da ética cristã, que tem a fé por base, não pode afastar o homem de sua obrigação de zelar e re-construir o mundo. “A esperança do Reino (“novo céu e nova terra...” Ap 21, 1) não deve arrefecer nossa preocupação com a felicidade e o desenvolvimento humano ainda nesta vida” (GS 39). Aos essencialmente verticalistas o concílio adverte: “É preciso construir um mundo mais humano. O mundo futuro, transformado, não é só obra de Deus, mas também do homem” (idem).

A fé não existe no abstrato. Para sabermos se o que sentimos é efetivamente fé, basta ver se ela produz frutos de amor. Nesse particular, a fé leva a uma transformação. Ela está inserta na história humana, como realidade e expectativa. Zaqueu, o chefe dos publicanos de Jericó, foi tocado por Jesus. A fé nele despertada gerou uma conversão que o levou à partilha de seu supérfluo e à restituição do indevidamente acumulado (cf. Lc 19, 1-10). As forças contrárias, daqueles que apenas acreditam, estão sempre a dizer que fé que transforma é uma utopia. Você concorda com o que eles afirmam?

De fato, se formos tentar mudar sozinhos alguma coisa, veremos que é muito difícil, senão impossível. Mas com a força do Espírito de Deus, a fé pode ser levada aos segmentos mais resistentes. É um trabalho de paciência, de testemunho e de muita oração. A vida cristã, a espiritualidade vivida conforme o estado de cada um é a resposta concreta ao oferecimento (dons) de Deus. Como dom do Espírito Santo, a fé, além de um presente gratuito de Deus, é um acontecimento da graça. É a aceitação incondicional de Jesus Cristo e das exigências e interpelações de seu Evangelho.

Mas, entre viver coerentemente a espiritualidade e comprometer-se com a dimensão terrena do Reino, falta ainda um bom caminho, como veremos, daqui para frente.

Ainda sobre fé, é interessante a consciência de que ela se expande em várias dimensões. A primeira delas é a individual, que começa no interior do coração. Ali a fé é acolhida como o dom de Deus que serve para a vida do homem. A segunda é a dimensão comunitária. Crê-se em conjunto com os outros, e a fé torna-se fio condutor do amor. A terceira dimensão é a social. É a fé que se torna compromisso, envolvendo o cristão em todas suas perspectivas de vida.

Com isso se observa que para uma vivência da fé, não importa entendê-la, mas aceitar, aderir, agir em seu nome. O que não tem perdão é fazer de especulações religiosas uma escapatória para não aderir ao que Deus está realizando, e isso quando tais realizações estão diante dos olhos. A vivência da fé, entretanto, é dificultada por vários obstáculos, dentre os quais cabe citar:

a) a ignorância

é desconhecer o projeto de Deus e a pessoa de Jesus

Cristo; esse atenuante livra poucas pessoas, pois, por

mais limitado culturalmente que seja o indivíduo, na

catequese eucarística ou de crisma, esses valores lhe

foram passados;

b) o orgulho

O ndivíduo auto-suficiente afirma não ter necessidade de

Deus para ser feliz;

c) a vida desordenada

este é um sério obstáculo à fé; o ser injusto, opressor,

violento, materialista, depravado, egoísta, não consegue

enxergar a Deus no meio de uma vida tão desordenada;

é como se vivesse num regime de idolatria;

Há quem use a Escritura para validar o sistema, ou coonestar suas atitudes individuais, elaborando exegeses tendenciosas, adaptando trechos isolados e subvertendo idéias. Quando – como vimos – o demônio veio tentar e dissuadir a Jesus, ele praticamente veio com a Bíblia na mão, recitando trechos que, vistos isoladamente, podiam convencer os mais incautos e assim servir a seus propósitos malignos. Jesus rejeitou aquela hermenêutica.

Os que conhecem intelectualmente as Sagradas Escrituras têm alguns trechos no bolso, para jogá-los contra aqueles que buscam a partilha, o amparo ao fraco, a denúncia à opressão. Querem ver os textos que eles usam?

• acautelem-se contra os falsos profetas (Mt 7, 15);

• sempre haverá pobres no meio de vocês (Dt 15, 11; Mt 26,

11);

• dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Mt

22, 21);

• sujeitem-se aos que os governam (Tt 3, 1);

• meu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36);

• quem foi que me encarregou de julgar ou dividir os bens

entre vocês? (Lc 12, 14).

Sem dúvida, todas estas afirmações têm outra explicação diferente daquela dada pelos omissos, pelos que oprimem, pelos avarentos, por quem não admite repartir. Vamos apanhar uma delas apenas:

Sempre haverá pobres no meio de vocês (Dt 15, 11; Mt 26, 11).

Estas palavras foram proferidas por Jesus e dirigidas aos discípulos que condenaram o gasto que uma mulher fez, ao adquirir finos óleos para ungi-lo. Talvez tivessem achado exagerado o gesto da mulher, sugerindo que o dinheiro seria melhor empregado se fosse dado aos pobres. A frase proferida por Jesus não é dele, mas uma repetição da fala de Javé, quando do êxodo.

A primeira menção é que de fato sempre haveria pobres para serem ajudados pelos homens de boa vontade; o Mestre, entretanto, teria pouco tempo no meio deles.

O segundo sentido, porém é mais profundo. Ao dizer que sempre haveria pobres em Israel, Javé não proferiu uma sentença sobre a perenidade da pobreza, mas conhecedor do egoísmo de muitos, ele anteviu a continuidade das legiões de pobres e excluídos.

O sentido real seria, mais ou menos, este: “Já que vocês sempre vão ser egoístas e se esconder atrás de mil artimanhas para não repartir e não ajudar, sempre haverá pobres, por isso dou-lhes uma ordem: abram a mão, deixem de ser avarentos!”. Não é vontade de Deus que sempre haja pobres; mas como ele tem visão de eternidade, sabe que a pobreza sempre estará relacionada com a insensibilidade e com a dureza dos corações.

Pessoas que dizem crer, mas perdem-se numa mera exteriorização social, qualificam-se a receber as mesmas reprimendas endereçadas aos fariseus: “Sepulcros caiados!”. Os hipócritas, aqueles cuja fé e piedade é só de uso externo, podem enganar a visão limitada dos homens, mas jamais a Deus. Não se pode separar o culto que Deus deseja da prática da justiça.

Não se homenageia o Deus da vida praticando cultos de morte. Deus e justiça são elementos – se assim se pode dizer – indissociáveis. E essa união exprime um aspecto fundamental da fé no Deus da Aliança. Fora disso, tudo é mentira:

O verdadeiro jejum que eu aprecio é acabar com a injustiça

(Is 58, 6).

Deus não quer sacrifícios mas corações arrependidos (Sl

51, 19).

Rasguem o coração e não as roupas! (Jl 2, 13).

Este povo me louva com os lábios mas seu coração está

longe de mim (Is 29, 13).

Misericórdia eu quero, e não sacrifícios (Os 6, 6).

Atitudes sem conteúdo, que não traduzem caridade e compromisso de transformação, podem estar atreladas a uma porção de coisas, menos à fé, menos à ética cristã. Sobre isso há uma forte citação de São Paulo:

Diante de Deus passará por justo, não quem conhece a

lei, mas quem a cumpre (Rm 2, 13).

Há entre os teólogos algum desacerto sobre a cronologia entre o crer e o converter-se. Há quem diga que a fé é fruto da conversão. Como a fé é um dom primevo, adquirido teologalmente através do batismo, entendendo que a pessoa só se converte se tiver fé, se tiver deixado triunfar em si a graça de Deus e as luzes do Espírito Santo. Ao iniciar sua vida pública, Jesus recomenda:

Convertam-se e creiam na Boa Notícia! (Mc 1, 15).

No original grego encontramos o imperativo convertam-se como metanôiete, ou seja, mudem de sentimentos, e creiam aparece como pisteúete. Ora, fé é expressa pelo verbete pístis, logo é fácil encontrar, no presente texto, uma relação entre o crer e o ter fé.

O pedido de Jesus, portanto, é que seus seguidores tenham fé e creiam na Boa Notícia (o Evangelho). Fazer metánoia é converter-se, mudar sentimentos, regenerar o coração. “Em coração de pedra não viceja a fé”, afirma Santa Teresa de Jesus.

A fé é dom de Deus, mas exige do homem uma atitude de receptiva mudança (metanôiete) e de liberdade de escolha. Por isso, ela deve ser coerente. Não há fé sem exigências, sem compromissos, sem conversão. A fé é um sim, como o de Maria, como o de Abraão, à vocação de Deus. É uma mudança de atitudes, no sentido do plano de Deus e da instauração do Reino, aqui e agora. Uma fé que acelere a conversão é a mesma que justifica, que torna o homem justo. Sobre isso há uma citação do salmista:

A justiça daquele que é fiel permanece para sempre (Sl 112, 9).

A justificação da fé, nesta vida, torna o homem justo para a outra. Atualmente, significativo número de cristãos vive numa grande confusão, porque não se dá conta das exigências da fé, daquilo que a teologia chama de pressupostos racionais da fé; alguns chegaram a admitir praticamente que sua fé cristã poderia exprimir-se em todo o sistema de pensamento e coexistir com qualquer ideologia. Deste modo, não há como imaginar que atos de superficial e isolada piedade podem encobrir a opressão, a idolatria das riqueza ou do poder. Deus que conhece a fundo nossa alma sabe da inautenticidade de nossa fé:

Mas tu não tens olhos nem coração inteligente senão para o

lucro, para derramar sangue inocente, oprimir e fazer violência

(Jr 22, 17).

A recíproca, entretanto é verdadeira. Se de um lado as melhores obras perdem a eficácia se não praticadas com amor, São Pedro nos mostra que

O amor cobre uma multidão de pecados (1Pd 4, 8).

Sobre a opressão da riqueza e da avareza, há um revelador texto de Santo Tomas de Aquino, a respeito da partilha: “Os bens são de um, mas para todos. Depois de satisfazer suas verdadeiras necessidades, o proprietário deve aos demais os bens que lhe sobram, avaliando sempre suas próprias necessidades com a mesma medida pela qual avalia as necessidades dos pobres” (in S.Th. IIa. IIae. q. 59).

Como requisitos de salvação, Jesus indica o crer e ser batizado (cf. Mc 16, 16). Acreditar, como vimos, é algo superficial, material. Eu acredito nas pessoas, nas ciências, nos sistemas humanos, em minha capacidade, etc. Igualmente acredito no que está escrito nos livros. Crer é algo mais complexo. Bem mais! Crer, em termos de ter fé é, como ensina são Paulo, a aceitação não só racional, mas que brota no coração (cf. Rm 10, 9s).

A partir dessa consciência, a fé passa a fazer parte da essência da vida humana, pois se torna uma resposta sempre atualizada a seus questionamentos.

Resumindo, a fé é uma resposta comprometida do homem ao plano de Deus. Com ela modificamos circunstâncias de nossa vida, dando-lhe novos enfoques; com ela provamos a inexistência do destino, como algo fatalista, mas proclamamos liberdade e capacidade de mudança.

O mistério da fé é, portanto, uma constatação de que já estamos recebendo algo mesmo antes de pedir. É uma certeza-suficiente, obtida através do coração, que dispensa demonstrações e certezas científicas. Porém, a fé precisa ser forte, crescente e sobretudo comunicante, a fim de, na dimensão social, criar critérios éticos capazes de transformar a sociedade. Como o controle de uma sociedade se dá pela política, a ética cristã, formada e fortalecida na fé, tem condições de gerar o compromisso político, por onde vão surgir as transformações exigidas pelo Evangelho de Jesus Cristo.

UMA HISTORIETA REAL

Havia um grupo de cristãos de classe média que se reuniam freqüentemente para debater problemas sociais à luz das exigências evangélicas. Na verdade, entrava ano e saia ano, e as reuniões não iam além da crítica. Um dia alguém propôs: “Quem sabe a gente se dispõe a um agir? Nossas reuniões estão muito paradas! Acho que todos estão cansados só do ver e do julgar... Podemos ajudar em alguma comunidade, na pastoral, na liturgia, vamos colocar nossos talentos a render, de uma maneira ou de .outra; que acham?” A proposta foi aplaudida entusiasticamente por todos. Só que nunca foi posta em prática.

Excerto de uma pregação levada a efeito em um retiro de religiosos na periferia de Recife, PE, em 2009.

O autor é Escritor, Biblista e Doutor em Teologia Moral.