Adeus, amigos
Para o falecido amigo-poeta Lúcio Lins
“Os médicos disseram que passei cinco dias em coma! Não vi nada, não senti nada, não me lembro de nada! Se a morte for isso, pra mim está bom”. Meu pai, Archidy Picado, em seus últimos momentos no Hospital Universitário
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Entre as muitas impressões que muitos teem a meu respeito consta a de que sou mórbido, com “predileção” pela consideração da morte a despeito da importância que todos deveriam dar a Vida.
Nas conversas entre amigos, procuro justificar tal “predileção”, que me faz nutrir a preocupação de levar sempre comigo um documento de identificação (para que saibam quem estava no corpo que usei, caso o encontrem caído em algum lugar), observando que, infelizmente, convivi muito cedo com as foiçadas da Morte a reparar a necessária passagem pela angústia da aniquilação a todos que, neste e em outros tempos, são presenteados com a oportunidade de vislumbrar, ainda que por breves momentos, toda a potência dessa Vida infinita que desde sempre a tudo move e sustenta.
Infelizmente fazemos parte de um organismo cósmico que, como qualquer coisa materializada no espaço-tempo, tem dimensões e durações limitadas. Durante o momento que se chama Hoje, representante temporal da eternidade (a considerar a dimensão do Agora para além da tirania dos calendários, do delírio dos dias e das noites), até mesmo o tempo de vida de uma estrela é curto. Entre os mistérios do mundo da Luz descobriu-se que muitas delas nem existem mais no céu. Certos físicos quânticos, como todos os cientistas, adeptos de São Tomé, finalmente viram e creram que, como intuíram antigos mestres do Oriente, a materialidade de tudo é fruto de um amálgama de forças a formar desde a matéria-prima micro-cósmica que tudo fundamenta às estrelas, que explodem a Vida no espaço-temporal. Com isso Ela, a Vida, nada mais pretende além de forjar complexos orgânicos ao desenvolvimento e manutenção de mentes as quais lhe farão ciente de Sua própria existência. (Se nos inclinamos impulsivamente para o autoconhecimento penso que é porque este é o impulso primeiro e último da Vida, que quer saber o máximo possível sobre Seu próprio funcionamento).
Mesmo me sentindo inevitavelmente metido na Vida, ao contrário do que acontece com muitos a consciência de minha morte me torna um tanto tranqüilo em relação à minha participação na ânsia coletiva pela obtenção de tudo aquilo que, quer material, quer imaterialmente valioso, constroem os sentidos a justificarem a sobrevivência de nossa identidade individual e de grupo sobre o planeta.
Quando olho para trás, vejo que não conquistei a posse de muitas coisas consideradas importantes pela convivência com uma certeza básica: gerações e gerações passaram sobre a Terra e se transformaram em pó, algumas mesmo prematuramente graças às forças brutais que regem os movimentos da Natureza e da ignorância, da ambição e do desamor. Entre deuses, príncipes, reis, escravos e baratas estive com muitos que, hoje, sequer são sombras a vagar pela terra: meus avós, meus pais, alguns amigos. Entre mortos e vivos, muitos nunca usufruíram sequer os pequenos prazeres da Vida. Milhões não usufruem. Mesmo os primeiros gigantes que, dizem, habitaram a Terra, com suas existências entre séculos, hoje fazem parte de um passado remoto: imperatrizes e meretrizes, estrelas, dinossauros, impérios e vermes, tudo passa, tudo morre. A despeito disso, entretanto, tudo tem vivido, sempre; milagrosamente tudo continua a pulsar e pulsar, e a respirar e a sentir.
Não podermos saber as razões ou os meios à expressão da primeira forma da Vida. Tenha ou não nunca havido um princípio, o fato é que, quer estrelas quer pessoas, estamos todos aqui. Mesmo que filósofos e poetas tenham desconfiado sermos não mais que personagens do sonho de um “Deus” que é imagem no sonho de outro “Deus” que sonha dentro do sonho de outros, de forma exuberante e maravilhosa a Vida existe e Se espalhou como centelhas luminosas e mentes que brilham pelo gélido vazio imaculado e negro espaço sideral, interior de Seu coração infinito à formação de circulares mundos possíveis, onde pode experimentar-Se em corpos e desenvolver-Se ao conhecimento da criação de Si mesma e de Seus sentidos.
Eis como sinto tudo. Eis como me sinto enquanto partícipe de tudo.
Como disse bem o Poeta, “quixotice dá força pra viver”. É com minhas “fantasias”, pois, que fundamento o significado lógico-racional de minha permanência no mundo. Sei que, como a maioria, a despeito de nossas misérias, eu queira ficar para sempre; mas um dia não estarei mais aqui. E mais: no dia de minha partida finalmente perceberei que hoje, somente hoje vivi, e que hoje e somente hoje morrerei.
Antes de ir, porém, direi a minha esposa que foram muitos prazeres conhecê-la. Aos meus filhos que me desculpem as ausências e que, seja como for, procurem ser felizes e fazer outros felizes. A todos, enfim, deixarei escrito à gravura em minha lápide: “Que me desculpem aqueles a quem, involuntariamente, fiz sofrer. Que me desculpem aqueles aos quais, involuntariamente, ainda faria sofrer”. E ainda: “Que me perdoem eventuais expressões apaixonadas daquilo que considerei partes da Verdade. Muito mais do que as histórias que revelarão minhas pequenas mentiras”.