Calidoscópio de visões
A teia interminável do saber e da verdade
Numa sexta-feira estava na Toca do Chopp com uma amiga, discutíamos episódios nada, digamos, convencionais da vida. Gargalhadas depois, em certo momento analisávamos um fato específico: se naquele instante o proprietário do bar resolvesse contratar alguém para narrar sobre como “é ou está” o seu estabelecimento? Decerto histórias contraditórias, complementares, semelhantes, estranhas, apareceriam.
Um cliente mais sóbrio e solitário poderia dizer que o ambiente está neutro demais. Já as amigas animadas, na primeira fileira, poderiam superficialmente dizer que nem repararam muito, mas que iriam escrever uma análise. O garçom atarefado podia revelar o quanto gosta de equilibrar bandejas em um ambiente noturno. Ou não. O caixa daria sua versão econômica, talvez. A menina de óculos, sozinha, esperando a lua baixar, poderia romanticamente dizer sobre noite, as nuvens e os chopps iluminados e seus colarinhos espumantes. O senhor da mesa ao lado do banheiro narraria uma história de entra-e-sai no melhor estilo a cevada e seus poderes diuréticos. O jovem enamorado diria que o caldinho de feijão não pega tão bem nessa hora de hálitos ingênuos. E, ainda, tantas outras versões seriam possíveis.
Mas, qual seria a história melhor? Ou a melhor história... Quem deteria a verdade em linhas escritas a partir de olhares e parcialidades de uma noite espreitada da cadeira de um bar? Todos e ninguém.
Relatar, compor uma narrativa, seja de fatos reais ou imaginários, é uma costura de cenas e detalhes selecionados pelo autor. Observar, escolher, analisar, escrever são verbos que passam sempre pelo sujeito.
Voltando à hipótese lançada no início, qual composição seria escolhida para representar aquele momento? Depende. Quem faria a seleção? Se um júri fosse formado tentando-se um “julgamento mais imparcial”, mais perto do “senso comum”, ainda assim passaria pelo crivo dos julgadores, suas referências, cultura e preferências.
O que se passa pelo olhar, se passa simultaneamente pelo ser e o contexto. Quem dá significado às coisas, também aos acontecimentos, é o indivíduo (sua percepção e o momento). É pela interação com algo/alguém que os organismos vivos “apreendem”, transformam e são transformados. Sendo que não há exatamente em uma conseqüência previsível para as inúmeras combinações e possibilidades.
Estamos, ultimamente, tão acostumados (treinados) ao senso de utilidade e à busca de “resultados” que passamos parte do tempo a procurar a serventia de tudo, formulando teorias e disseminando dogmas. E, o pior, acreditando que os olhares dos outros estão mais “corretos ou incorretos” (maniqueísmo) diante do nosso. Para que serve a arte? Para que serve a poesia? Para que serve a literatura? Para que serve uma cadeira...
As histórias da humanidade e das culturas, de cada ser humano e dos grupos, são permeadas de subjetividades. São cacos coloridos, recortados e pintados por pessoas com atributos variados, que formam um grande calidoscópio. Cada giro pode gerar nova cena, num jogo ótico sucessivo de reflexos que formam imagens em constante mutação.
“Conter a verdade” é o mesmo que não poder piscar em plena ventania. Fazer história, viver, talvez seja simplesmente manusear um calidoscópio de visões multifacetadas, e olhar por uma interminável teia de saberes e verdades, acrescentando, se possível, mais um pedaço, no tom que for lhe mais belo. Ou não...
Solange Pereira Pinto