Schopenhauer e Nietzsche: sobre a questão do Viver e do Morrer
Assim como um livro do filósofo escocês David Hume despertou o genial Immanuel Kant de seu sono dogmático, um clássico na filosofia alemã, que estava esquecido nas prateleiras das bibliotecas, a obra “O mundo como Vontade e Representação” de Arthur Schopenhauer despertou Nietzsche de uma forma intensa. A primeira obra de Nietzsche, “O Nascimento da Tragédia”, possui uma influência schopenhaueriana, mas aos poucos Nietzsche foi se afastando das idéias e dos pensamentos de seu “antigo mestre”, e foi construindo sua própria filosofia tão arrebatadora.
Schopenhauer, embora confessadamente ateu, exaltava o ascetismo, a supressão dos desejos do corpo, o desapego as relações humanas e sobre qualquer coisa do mundo, ensinamentos de origem bem budistas. Schopenhauer era um niilista pessimista, e em sua obra ele afirmava que “a vida era um erro”, a existência era um erro, e só a morte corrigia essa espécie de erro: o não-ser passa a ser temporariamente, vivendo uma vida repleta de sofrimentos, desprazer, dores, e tédio. Então a morte corrige esse erro existencial: o ser passa a não-ser, volta de onde ele saiu, isto é, para o nada. Schopenhauer tinha um fascínio pelo nada, e pela morte. Ele afirmou certa vez que “o homem está condenado não à morte, mas sim a vida”, desdenhando sua aversão pela existência como um todo.
Nietzsche, um apaixonado pela vida, mesmo padecendo de uma doença que o atormentava diariamente, nunca deixou de amar a vida, o mundo, de tentar criar novos valores para nosso amor pela vida e pelo mundo crescessem. Nesse ponto, Schopenhauer era um covarde cheio de contradições. Embora tivesse um enorme encanto pela nadificação que a morte causava a todos os seres, ele mesmo fugia da morte quando em alguns momentos de sua época, epidemias de doenças se alastravam perto de onde ele residia, levando-o a partir para outras cidades. Schopenhauer criticava o suicídio não do ponto de vista social e nem religioso, mas do ponto de vista de sua tese sobre a questão da “Vontade”, pois para ele o suicídio é o ápice do arbítrio, da vontade do indivíduo o qual quer suprimir sua própria vida. Como Schopenhauer afirmava e ensinava a negação da vontade, o indivíduo que se mata não nega a vontade, independente de seus motivos; ao contrário, ele afirma a vontade que está em si.
Já Nietzsche, um filósofo que amava a vida, era a favor da morte voluntária, isto é, do suicídio na hora certa, no momento certo. Nietzsche afirmava que “não está em nós impedir nosso nascimento, mas podemos corrigir esse erro: pois às vezes é um erro. Quando alguém se suprime, pratica a coisa mais respeitável que há... Morrer de uma maneira orgulhosa quando não é mais possível viver de uma maneira orgulhosa. A morte escolhida voluntariamente, a morte escolhida no momento oportuno, com clareza e alegria, consumada em meio a filhos e testemunhas: ... Assim como uma avaliação real (daquele que decide tal escolha) sobre o que se alcançou, e do que se quis, uma soma da vida.” Nietzsche criticava a chamada “morte natural”, que para ele não existia morte natural, “toda morte é um suicídio”. Neste ponto eu discordo: toda morte é um assassinato. Já discorri anteriormente sobre essa minha tese, basta pesquisar e a lê. No livro “O Viajante e sua Sombra”, Nietzsche novamente analisa sobre a questão da morte voluntária( o suicídio), e a incentiva quando um indivíduo consegue concretizar sua missão a qual ele próprio criou para si. Para que continuar vivendo, como uma mera engrenagem posta numa indústria, e que depois de um certo tempo é substituída por outra? Nietzsche critica o que o cristianismo fez com as consciências das pessoas, enchendo-as de medo e remorso sobre suas ações, as quais poderiam ser punidas após a morte por Deus, e que também só Deus tinha o direito de tirar a vida de alguém. Nietzsche odiava essa postura de escravo e de covarde tão presente no instinto do rebanho.
Schopenhauer, que alegava ser ateu, agia como um cristão, tinha um postura comportamental cristã, assim também como o filósofo Immanuel Kant. Não é a toa que Nietzsche chamou-os de “cristãos pérfidos”. Quando se lê “O vazio da existência”, “Da Morte, e Contribuições sobre o Sofrimento do Mundo”, pode-se até ficar estupefato do autor de tais textos e idéias, Schopenhauer em questão, não ter se matado diante de sua exaltação ao nada e a morte, a qual não devemos jamais temer, dizia ele. Outrora ele afirmara: "A morte diz: tu és o produto de um ato que não deveria ter sido; assim, tens de morrer para anulá-lo”.
Contudo Nietzsche, que exaltava a vida, que afirmava: “Isto é a vida? Então de novo, e de novo...” ele era favor do suicídio lúcido, consciente, em que a própria pessoa é o autor de sua própria aniquilação, e não se deixa ser consumido pelo tempo, por doenças, por obrigações sociais, ou por doutrinas fantasmagóricas feitas pelas religiões. Como escrevera certa vez Nietzsche: “Devemos fazer da nossa própria morte uma festa, nem que seja por maldade contra vida: contra essa mulher que nos quer abandonar”. Concordo com isso. Schopenhauer escrevera que “não devíamos amar a vida, já que ela nos troca ou nos lança para as garras da morte”.
Nietzsche concordava com a idéia de que a vida nos lança quando bem quer para os braços da morte, contudo nem por isso devemos odiar a vida. Devemos amá-la com lucidez e conhecimento, aproveitar cada momento, viver com intrepidez e ousadia, e descartar a vida antes que ela decida nos descartar. Esse era um dos pensamentos de Nietzsche.
“Auto-Assassinato consciente”, escrevera ele numa obra publicada póstuma chamada “Fragmentos do Espólio”. Eu acredito que se não fosse a doença com a qual Nietzsche lutou, a fim de continuar parindo novas idéias e pensamentos, durante toda a sua vida, levando-o a loucura e a um estado catatônico irreversível, certamente no momento certo esse grande e genial pensador teria optado pela “morte voluntária”, com alegria, coragem e lucidez de tudo o que ele fez, criou, tentou e vivenciou.
Gilliard Alves