O Caso Isabella Nardoni

Prólogo:

Estava demorando. Aconteceu. Recebi uma mensagem de uma leitora e estudante de Ciências Jurídicas e Sociais (Direito). Nesta mensagem a notável menina-moça-mulher diz:

“Bom dia doutor Wilson,

Meu nome é Hortência, tenho 27 anos e resido na cidade de Vitória que é a capital do Estado do Espíto Santo.

Estou lhe escrevendo porque sou sua leitora, sua fã e também estudante de direito. Este ano, se Deus quiser, eu me formarei.

Amo o Direito Penal. Estou estudando forte para concursos. Quero ser promotora ou juíza. Como o senhor sabe o caso Isabella Nardoni mexeu e ainda mexe com todos nós brasileiros.

Houve o julgamento e o casal de supostos assassinos foi condenado. Sem discutir o mérito da questão, isto é, sem adentrar ao caso da culpa ou inocência dos condenados, quero perguntar ao senhor qual seria o recurso mais viável para a defesa? Como o senhor faria se fosse a defesa que está sendo muito bem paga neste caso?

Desde já agradeço a sua resposta, que poderá ser dada em forma de texto no Recanto das Letras e, se o senhor quiser me mandar algum complemento sobre o fatídico caso receberei seu e-mail de muito bom gosto. Um beijo. Hortência.".

Deveras sinto-me lisonjeado por ser consultado sobre tão complexo caso. Felizmente a leitora teve siso e equilíbrio suficientes para não me perguntar se eu concordava ou não com a sentença aplicada ao casal de supostos assassinos Alexandre Nardoni e Anna Carolina.

De qualquer modo eu não fugiria à regra dos bons preceitos profissionais e à ética. Responderei a questão sem desrespeitar os profissionais que trabalharam de forma proficiente no caso em comento.

É vedado ao profissional do direito: “fazer publicar na imprensa, desnecessariamente e habitualmente, alegações forenses ou relativas a causas pendentes” – Lei 8.906, de 04 de outubro de 1994, art. 34, Inciso XIII, do Estatuto da OAB.

Claro que a LOMAN - Lei Orgânica da Magistratura Nacional em seu artigo 36, também em outras palavras, assim se expressa:

Art. 36. É vedado ao magistrado:

I -;

II -;

III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.

Após trânsito em julgado, dado (um assunto) por encerrado, poderei, assim como outros advogados, juízes, promotores, desembargadores e afins comentar, sem causar melindres ou ferir a ética, com mais detalhes e amiude esse julgamento que causou repercussão nacional e internacional.

Após este introito vamos ao que finalmente interessa e sem mais delongas:

O caso Isabella Nardoni refere-se à morte da menina brasileira Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos e alguns meses de idade, que foi jogada do apartamento de seu pai localizado no sexto andar do Edifício London no distrito da Vila Guilherme, em São Paulo, na noite do dia 29 de março de 2008.

O caso gerou grande repercussão nacional e, em função das evidências deixadas no local do crime, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da criança, foram condenados por homicídio doloso triplamente qualificado (art. 121, § 2°, incisos III, IV e V), e vão cumprir pena de 31 anos, 1 mês e 10 dias, no caso dele, com agravantes pelo fato de Isabella ser sua descendente, e 26 anos e 8 meses de reclusão no caso de Anna Jatobá. A decisão foi proferida pelo Juiz Maurício Fossen, no Fórum de Santana em São Paulo.

O co-réu ALEXANDRE ALVES NARDONI e a co-ré ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ foram condenados também a uma pena adicional de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMIABERTO, sem direito a “sursis” e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo.

As condenações foram severas, mas: "Dura lex sed lex"! Esta é uma expressão em latim cujo significado em português é "a lei [é] dura, porém [é] a lei". A expressão se refere à necessidade de se respeitar a lei em todos os casos, até mesmo naqueles em que ela é mais rígida e rigorosa.

Quem estuda ou estudou sabe que a expressão "Dura lex sed lex" remonta ao período de introdução das leis escritas na Roma Antiga; a legislação, até então, era transmitida pela via oral, e por consequência sofria diversas alterações por parte dos juízes, que as refaziam de acordo com tradições orais, e introduziam uma série de interpretações pessoais, na medida em que eram os detentores do poder de se referir a esta tradição oral.

Com a introdução das leis escritas, passaram a ser iguais para todos - e, como tal, deviam ser respeitadas, por mais duras que fossem.

Para melhor fundamentar minha resposta a simpática aluna e leitora Hortência recorri à melhor doutrina. Sobre o caso em questão Damásio Evangelista de Jesus, muito conhecido como Professor Damásio, é um jurista brasileiro, considerado um dos mais respeitados especialistas em direito penal da atualidade escreveu o que se segue:

O Código de Processo Penal (CPP), nas ações penais por crimes da competência do Júri, determina:

"O protesto por novo Júri é privativo da defesa, e somente se admitirá quando a sentença condenatória for de reclusão por tempo igual ou superior a 20 anos, não podendo em caso algum ser feito mais de uma vez" (art. 607, caput).

Assim, condenado por homicídio doloso, sendo a pena igual ou superior a 20 anos de reclusão, o réu podia recorrer, pleiteando novo julgamento, que era admitido, independentemente do exame de mérito.

A Lei n. 11.689, de 9 de junho de 2008, entretanto, em seu art. 4.º, revogou o Capítulo IV do Título II do Livro III do CPP, no qual se incluía o art. 607, extinguindo o recurso do protesto por novo Júri, exclusivo da defesa.

Daí a questão de Direito Intertemporal: em relação aos delitos do Júri, como o homicídio, cometidos antes da vigência da Lei n. 11.689/2008, ela é de aplicação imediata ou a revogada (art. 607) tem efeito ultra-ativo? Temos uma lei anterior benéfica e outra posterior gravosa.

O tema é importante para o autor ou co-autor de crime de sangue cometido antes da vigência da lei nova. Se de aplicação imediata, a norma extintiva só alcançaria os fatos praticados a partir de sua entrada em vigor, não existindo mais o protesto em relação ao réu anteriormente condenado a 20 ou mais anos de reclusão; configurando revogado o art. 4.º norma de Direito Material (Direito Penal), o art. 607 (e também o art. 608) seria ultra-ativo, aplicando-se, não obstante revogado, aos fatos anteriores à sua vigência, havendo direito a novo julgamento.

Quando a norma é ultra-ativa ou de aplicação imediata?

Configurando a lei nova regra de Direito Penal (Direito Material), incide o disposto no parágrafo único do art. 2.º do Código Penal (CP):

"A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado" (art. 5.º, XL, da CF).

Cuidando-se, entretanto, de lei de natureza processual penal (formal), aplica-se o art. 2.º do CPP:

"A lei processual penal aplicar-se-á desde logo [...]"

Verifica-se, pois, que os réus condenados a 20 ou mais anos de reclusão por crimes da competência do Júri, cometidos antes da Lei n. 11.689/2008, em face da lei nova, terão ou não direito a novo julgamento, de acordo com a tese adotada.

Haverá três correntes de interpretação:

1.ª – a norma do art. 607 do CPP é de natureza penal e, por isso, ultra-ativa (mais benéfica), aplicando-se aos réus condenados a 20 ou mais anos de reclusão por delitos da competência do Júri, cometidos antes da vigência da Lei n. 11.689/2008, mais gravosa e irretroativa ("novatio legis in pejus"; parágrafo único do art. 2.º do CP).

Para essa orientação, réus processados por homicídio ou outro delito do Júri cometido antes da Lei n. 11.689/2008, se condenados, na vigência da nova regra extintiva, na quantidade fixada pela norma, terão direito a um segundo julgamento.

2.ª – o art. 4.º da Lei n. 11.689/2008 contém norma processual penal, sendo, por isso, de aplicação imediata, de maneira que, por exemplo, réus processados por homicídio cometido antes da Lei n. 11.689/2008, se condenados a 20 ou mais anos de reclusão, ainda que na vigência da nova regra extintiva, não terão direito a um segundo julgamento.

3.ª – estamos em face de norma mista, penal e processual penal, prevalecendo sua natureza de Direito Material (Penal): o art. 4.º da Lei n. 11.689/2008 é irretroativo; o art. 607 do CPP, ultra-ativo.

Solução: réus condenados a 20 ou mais anos de reclusão por homicídio (ou crime diverso, mas da competência do Júri), cometido antes da Lei n. 11.689/2008, julgados na vigência da nova regra extintiva, terão direito a um segundo julgamento.

Inegavelmente, a terceira posição está correta. De ver-se, contudo, que estamos seguramente convencidos de que é de importância secundária a discussão das três correntes de opinião. Há razão maior a dar a resposta à questão proposta sem tanger o tema da natureza penal, processual penal ou híbrida das normas sob crivo de aplicação.

Entendemos que a tese que não permite protesto por novo Júri a condenados a 20 ou mais anos de reclusão por homicídio ou crime diverso, da competência do Júri, cometido antes da Lei n. 11.689/2008, julgados na vigência da nova regra extintiva, fere o princípio constitucional da amplitude de defesa.

Dessa forma, para nós, aquele que, condenado a 20 ou mais anos de reclusão na vigência da lei nova por crime de homicídio cometido antes da Lei n. 11.689/2008, tem direito ao recurso do protesto por novo Júri.

Praticado um delito, surge para o Estado o direito de punir e, para o autor, o direito penal público subjetivo de liberdade, expresso em meios e recursos inerentes à defesa (a plenitude de defesa).

A Constituição Federal de 1946, em seu art. 141, § 25, assegurava "aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela". A Carta Magna de 1988, em seu art. 5.º, XXXVIII, "a", reconhecendo a instituição do Júri, garante "a plenitude de defesa".

Não é constitucional, pois, que, depois da prática do crime, o Estado reduza a plenitude da defesa, diminuindo a sua amplitude com a exclusão de um recurso, alterando, assim, as regras do jogo em prejuízo do réu.

A Lei de Introdução ao Código de Processo Penal, Decreto-Lei n. 3.931, de 11 de dezembro de 1941, cuidando de conflito de leis no tempo em relação a prazo, previa hipótese semelhante a que estamos tratando em seu art. 3.º:

"O prazo já iniciado, inclusive o estabelecido para a interposição de recurso, será regulado pela lei anterior, se esta não prescrever prazo menor do que o fixado no Código de Processo Penal".

Em suma, no conflito de leis criminais no tempo, na questão discutida, a regra do art. 607 do CPP, ultra-ativa, prevalece sobre o art. 4.º da Lei n. 11.689/2008.

CONCLUSÃO PARA MELHOR RESPONDER A PERGUNTA DA ESTUDANTE E LEITORA HORTÊNCIA:

Dentre as três correntes de interpretação elencadas também sou de parecer que a terceira interpretação, salvo outro juízo, é a que mais se adequou ao caso dos Nardoni.

Vejamos a conclusão a que chegou o renomado penalista e Professor Damásio:

“... Dessa forma, para nós, aquele que, condenado a 20 ou mais anos de reclusão na vigência da lei nova por crime de homicídio cometido antes da LEI Nº 11.689, DE 9 DE JUNHO DE 2008, que altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri, e dá outras providências, tem direito ao recurso do protesto por novo Júri... ”.

Ora, o crime que pôs fim à vida da menina Isabella aconteceu em 29 de março de 2008. Sabemos que a Lei Penal retroage para beneficiar o réu! Isso já está decidido pelo STF – Supremo Tribunal Federal. Veja o que foi decidido:

“... A decisão do STF é sustentada pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XL, que determina que as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico ao réu devem retroagir para beneficiá-lo...” – (Ministro Joaquim Barbosa do STF).

Claro que a defesa precisa melhor fazer valer seu interesse, profissionalismo e honorários. Para isso, creio, mesmo antes de ser prolatada a sentença deve ter urdido com esmero (eu teria feito exatamente isso) uma necessária petição recorrente lastrada na CF/1988, decisão do STF e jurisprudências outras firmadas em casos semelhantes no país inteiro.

No mais é só esperarmos para ver no que dará essa saga triste, sofrida e sopitável das emoções mais irrefreáveis de vingança social muito bem explorada e aproveitada pela mídia que precisa vender e faturar alto com as desgraças urbanas.