Angela Maria ou A maior cantora do Brasil.
Dizer que o Brasil é um país sem memória é infelizmente, mais do que um lugar comum, uma constatação aceita como normal. É certo que nos últimos sete anos o Brasil tem conhecido grandes transformações econômicas e sociais, mas a memória nacional, esta continua uma indigente contumaz. Apesar dos muitos esforços empreendidos por denodados pesquisadores, a memória nacional, em especial no que depende de certas instâncias, especialmente as midiáticas, continuará não passando de uma vetusta decrépita. É que, a bem da verdade, se por um lado alguns lutam para salvá-la, preservá-la e asfaltar seu caminho rumo ao futuro, muitas são as forças contrárias.
Nesses dias que correm, a construção da memória passa inevitavelmente pelos poderes midiáticos, que possuem a varinha mágica para encantar e fazer guardar os pedaços esparsos de outras épocas e outras situações. Mas não divaguemos demais, senão não chegaremos ao ponto que desejamos e que não é exatamente falar da desmemoria nacional.
Mas que dá engasgos verificar certas coisas, isso dá. Vamos então ao ponto. O que fazem os donos, os poderosos, os manda-chuvas dos meios de comunicação que, nesses tempos de big brothers e coisas tais são tão pródigos em criar heróis de barro molhado, que não colocam em letras garrafais nos jornais, não estampam nas capas das revistas, não vociferam nas ondas dos rádios, não anunciam em cores colossais nas telas dasTVs: Angela Maria é a maior cantora que o Brasil já teve?
É possível que ao ler ou ouvir isso, algum jovem mancebo, ou manceba, do alto de suas sapiências virtuais, brade indignado: Quem? E então poderemos repetir com mais ênfase. Sim, Angela Maria foi, e é, desde 1951 quando deu início a sua vitoriosa carreira, a maior e melhor cantora do Brasil. É certo que nossa música popular sempre foi pródiga em nos ofertar muitos e muitos artistas, da mesma forma que os jogadores de futebol ou as inumeráveis frutas, é tanta a fartura que nos perdemos em meio à abundância tropical. Enquanto alguns países contam nos dedos seus ídolos musicais, nós nos damos o luxo de esquecê-los, na voracidade de criar novos, mesmo que, para isso, o talento tenha de ser sacrificado.
A lista de nossas cantoras é interminável, mas só para citar algumas, e assim mesmo, apenas a título de ilustração, verificaremos como é, no mínimo imperdoável, que Angela Maria, do alto de seus quase 83 anos, a serem completados a 13 de maio de 2010, não esteja sempre sendo reverenciada, aclamada e lembrada para que as novas gerações possam ver e ouvir o que é realmente cantar.
Quando Angela saiu de casa aos vinte anos, para tentar a sorte como cantora, nossos ouvidos tão musicais já haviam se deliciado com vozes que faziam a felicidade de seus fãs, desde a Pequena Notável Carmen Miranda, às irmãs Linda e Dircinha Batista, Aracy Cortes, Aracy de Almeida, Aurora Miranda, Dalva de Oliveira, e muitas outras, uma mais e outras menos conhecidas. Todas certamente notáveis cantoras, cada qual com seu tom próprio de voz e carisma. Quando começou a sua carreira no Rádio e na discografia em 1951, Angela foi logo conquistando dois títulos que faziam apenas justiça ao seu talento sem igual: Melhor cantora do ano e Rainha dos Músicos. Muitos e muitos outros títulos se seguiriam, entre os quais, a de Rainha do Rádio obtido em 1954 com uma votação de mais de 1 milhão e 400 mil votos. Seus sucessos foram se sucedendo, o samba “Não tenho você", de Paulo Marques e Ari Monteiro, que bateu recordes de vendagem, os sambas-canção "Fósforo queimado", de Paulo Menezes, Milton Legey e Roberto Lamego, e "Orgulho", de Valdir Rocha e Nelson Wadekind, o samba-canção "Vida de bailarina", de Chocolate e Américo Seixas, o bolero "Recusa", de Herivelto Martins, e muitos e muitos outros. Nesses anos iniciais de sua carreira foi seguidamente, e por mais de um veículo de comunicação, escolhida como a melhor cantora do ano. Em 1957, gravou um LP que, por si só dá mostras de seu talento, de seu carisma e de seu sucesso: o LP “Quando os maestros se encontram com Angela Maria”, cujo título foi inspirado no famoso programa da Rádio Nacional “Quando os maestros se encontram” que reunia os maestros da emissora num único programa.
Esse LP foi um dos mais ambiciosos já produzidos no Brasil, cuja façanha se amplia com o passar do tempo. Segundo o texto do produtor Ramalho Neto, escrito na contra capa do LP, “Não se tratava de mais um long-playing desta notável e consagrada cantora, como os anteriores, selecionados com bom gosto e perfeição técnica. Era algo mais grandioso. Um empreendimento jamais tentado em todo o mundo, cujo orçamento ultrapassava, de muito, o até então mais caro disco já feito na América do Sul”. Esse ambicioso disco reuniu os maestros Renato de Oliveira, Leo Peracchi, Sylvio Mazzucca, Lyrio Panicalli, Severino Araújo, Lindolpho Gaya, Gabriel Migliori e Gustavo de Carvalho, e cada um deles fez um arranjo específico para uma música que seria cantada por Angela e a acompanhou na gravação da música. Cada uma das orquestras envolvidas nessas gravações contou com cerca de 50 dos melhores músicos de então. E tudo isso para registrar o melhor da voz da melhor cantora do país. É de se registrar que na história de nossa música popular nenhuma cantora conquistou tal status.
Até 1964, quando lançou um LP com o título de "Ângela, a maior Maria", seu sucesso popular manteve-se ainda intacto. Mas naquele momento além das transformações políticas e sociais pelas quais o país começava a passar a música popular também se transformava, e isso já vinha ocorrendo na verdade desde um pouco antes com o aparecimento da bossa nova e do rock e logo em seguida, da jovem guarda, dos festivais da canção e da tropicália. E naquele furacão que varreu nossa sociedade, tudo foi virando pelo avesso, e muito se foi criando como absolutamente novo e insuperável, em especial na música. E assim, grandes ícones de nossa música, louvados e aclamados anos antes, ficaram de repente com as pechas de ultrapassados, como foi o caso de Luiz Gonzaga, ou cafonas, como foi o caso de Angela Maria. O Rei do Baião ainda seria redimido a partir dos anos 1970, mas Angela Maria, se não saiu de cena de uma vez foi pouco a pouco perdendo espaço e, mais ainda, sendo colocada no breu do esquecimento, tanto é que muito se fala de várias cantoras do passado, desde Carmen Miranda, Aracy de Almeida ou num bloco só, As cantoras do Rádio, mas Abelim Maria da Cunha, nome verdadeiro de Angela não tem merecido maiores deferências. Apesar disso, não é demais lembrar que nos anos 1970, sua voz encantou os ouvidos brasileiros com sucessos como “Gente humilde”, de Chico Buarque e Vinícius de Moraes, ou então “Tango para Tereza’, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia. Isso sem contar as fortes influências que legou, como foi o caso da saudosa Elis Regina que nunca negou ter sempre se inspirado na voz de Angela Maria.
Mesmo assim, encontrar seus discos nas lojas reais ou virtuais é algo um tanto quanto difícil, ainda mais se contarmos que sua discografia incluiu mais de 140 discos gravados entre 78 rotações, LPs e CDs, e mesmo assim, somente se acham uns poucos discos da grande cantora. Sim porque, sem desmerecer nenhuma outra cantora que já tivemos, e não foram poucas, Angela mereceria melhores cuidados por parte dos meios fonográficos, tendo em vista o patrimônio que representa. Não se ateve a um só gênero ou compositor. Gravou de tudo e um pouco de todos. Gravou sambas, sambas-canção, boleros, tangos, fox e tudo sempre com a maestria e o encanto de uma diva da canção.
Seus graves e agudos se alternam com a naturalidade de um pássaro pousado num galho alto de uma árvore numa tarde de céu azul. E esse sem dúvida é um dado a ser destacado, pois Angela consegue fazer com que as músicas que interpreta ganhem vida nova apenas, como se isso fora pouco, porque estão sendo interpretadas por ela. E não foram os poucos discos temáticos que ela lançou. Só para citar alguns: “Angela Maria interpreta boleros”; “Angela Maria canta para o mundo”; “Angela de todos os temas” e outros. E ela desliza pelas notas, dominando os ouvintes desde a espanhola “O arlequim de Toledo”; ao fado “Foi Deus”; à rumba “Tabu” ou a marcha “A lua é camarada”.
A suavidade e a força de sua voz fazem de cada canção por ela interpreta uma peça em si. É uma solista da voz. Se fosse norte americana, certamente seria tida como uma diva do jazz, aclamada por seus recursos vocais. Mas como nasceu, para sorte nossa que gostamos de a ouvir cantar, nesse país que afoga a própria memória em copos de bar, está esquecida, pelo menos por parte da mídia, que não a cita, não a toca, não faz especiais pelo menos semestrais sobre ela, porque na memória popular certamente está presente, e se uma pesquisa for feita pelos subúrbios e interiores do Brasil, certamente muito se encontra sobre ela, desde discos até memórias afetivas.
E não se diga a inverdade de que ela não obteve projeção internacional pois que recebeu do norte americano Louis Armstrong, um dos maiores músicos do século XX a seguinte afirmação: “Angela é maravilhosa”. Foi aplaudida e condecorada pelo presidente de Portugal, aclamada pelo Rei da Espanha, contratada para temporada no Olympia de Paris, fez excursões pela América Central e do Sul, e recebeu convites dos Estados Unidos, Japão e inúmeros países da Europa. Não fora a conjuntura diferente daquela encontrada por Carmen Miranda quando foi para os Estados Unidos, e talvez tivesse feito carreira definitiva lá fora.
A combinação entre história escrita e memória popular é complexa e muitas vezes contraditória. Muitas vezes uma coisa não bate com a outra, e é difícil de prever uma combinação definitiva entre as duas instâncias. Isso talvez explique, fora a desmemória imposta pela mídia e a alcunha dada a ela de “cafona” no turbilhão da virada dos anos 1960 para 1970, o esquecimento que hoje vemos pairar sobre ela. Porque num país que se prezasse de verdade, e onde houvesse uma maior liberdade nos meios de comunicação, poderíamos ligar o Rádio ou a TV e veríamos com facilidade interpretações de Angela Maria e nos deliciaríamos com sua voz aveludada e quase de soprano, com um domínio perfeito sobre as notas musicais que se vão e vêm postar diante dela dóceis ao acalanto de sua interpretação.
Não é e nunca será demais afirmar: Angela Maria é a maior cantora do Brasil. Se o futuro nos reservará outra igual não sabemos. O certo é que, assim como no futebol, Pelé e Garrincha são muitas vezes comparados a novos valores que surgem, mas permanecem sempre inigualáveis, assim se dá com Angela, que permanecerá como a maior e melhor cantora que o Brasil já teve.