SALVADOR: A CAPITAL MUNDIAL E O DESENVOLVIMENTO
Assim, do nada, como que por mágica, Salvador será uma “capital mundial”. Sem julgar o mérito de um termo tão genérico quanto esse, vê-se o prenúncio de que pousarão na cidade várias estruturas. Bom, é difícil dizê-las “benefícios”, mas essas intervenções são pelo menos análogas a “graças”. É porque têm um caráter divino, de coisa que vem dos céus, imposta de cima para baixo como criações-soluções incontestáveis da Providência. Não se pode discutir; alguém de cima sabe, diante de sua onisciência, o que é bom para cada usuário e habitante da cidade do Salvador. Muito mais notável, porém, é a verdade de que esse poder supremo é onipresente e onipotente; seja por sua capacidade de estar – em forma de mídia – em todos os lugares ao mesmo tempo, seja por sua influência – econômica – na vida e no destino das pessoas.
Essa antiga “Cidade da Bahia” goza de um momento de boom imobiliário que, para muitos, nada mais representa que o “desenvolvimento da cidade”, a “geração de emprego e renda”, o paraíso na terra. Um paraíso pretensamente único possível no ambiente profano, o dos pés no chão. É que por um lado, há quem simplesmente considere isso o próprio desenvolvimento, em sua forma mais plena; por outro, quem diga que é o melhor apesar de tudo, a menos pior das opções. Contudo, se existe um horizonte “social”, para o qual se dirigem os empreendimentos imobiliários atualmente, ele não pode ser o desenvolvimento da cidade. Argumento some em sua falta de consistência diante da solidez da busca pelo dinheiro, pelo lucro. O presente discurso supera a pueril (porém bem intencionada) condenação simples do dinheiro, como mal social... Óbvias as benesses do dinheiro, que nada mais é que um elemento genérico de troca, de reserva de valor etc. O questionamento se dá além: onde o dinheiro não é a única nem a prioritária forma de liberdade.
A cidade tem um corpo, e é também composta por cada cidadão, mas é justo a liberdade de cada um deles o parâmetro para o que se poderia chamar de “desenvolvimento”, de forma geral. Aqueles que defendem qualquer coisa simplesmente porque gera “emprego e renda” têm (pelo menos no discurso) vontade de fazer as pessoas livres em escolha pelo seu poder aquisitivo. É também questionável esse desenvolvimento econômico da população – já que nas freqüentes ações são desproporcionais os benefícios que os donos de empresas e empregados mais qualificados aferem em relação à população do lugar. Entretanto, na linha do que já se disse, existe um desenvolvimento mais abrangente, em que a cidade e seu corpo, juntamente com cada cidadão individualmente, é beneficiada.
A densificação populacional, o mau funcionamento da circulação, a poluição dos mananciais, a violência, o déficit habitacional são alguns dos problemas que tornam pior a experiência livre do ser humano nas cidades. Os empreendimentos aos quais se atribui um desenvolvimento se evidenciam mais absurdos quando se trata de um desenvolvimento do qual aqueles fatores são inimigos. O déficit habitacional soteropolitano não será curado com mais unidades de luxo e de classe-média: não faltam casas nem as pessoas que adquirem um apartamento são aquelas que vivem na rua. A fluidez do trânsito não se resolverá com a concentração da população em pequenas áreas, com a criação de vias para novas unidades e unidades para novas vias. Construir muros e guaritas não transformará a violência urbana em paz urbana, até porque murar o território anula na essência a integração e a convivência do que poderíamos chamar de urbanidade.
No começo de todo processo de venda da cidade está o investimento estrangeiro indireto e outros interesses de grupos privados. Sua ação no território urbano é prejudicial na medida em que submete o poder público a tornar propício o ambiente a negócios onde é a própria força polarizadora da maioria do retorno em dinheiro. E no qual seu risco, em contraposição àqueles do citadino (que pode ter perdas na sua cidade e diretamente na sua própria vida), é simplesmente perder alguns milhões dentre suas centenas de milhões. A lentidão do processo democrático – recheado de discussões, investigações, análises, opiniões – é oposto aos interesses de quem deseja retorno rápido e garantido de seus investimentos; e funciona de argumento para justificar ações ditatoriais do governo. Evidência disso é que sem qualquer discussão popular, os projetos para “Salvador: Capital Mundial” estão expostos num shopping center, com apoio da prefeitura.
Propostos seja lá por quem for, com essa ou aquela intenção, é preciso questionar sobre a sanção imediata dessa nossa prefeitura aos projetos.
Para a população soteropolitana, deficitária de educação básica, a idéia de desenvolvimento trazida por esses projetos chega da mesma maneira bela que pretende soar nos discursos daqueles que a defendem. Os profissionais não podem se mostrar apenas vítimas; quem deveria conscientizar e instigar a população sobre o problema urbano senão os profissionais da área? A liberdade das pessoas é oposta a uma vida em que devem obediência a algum ocupante de cadeira em uma cúpula qualquer, de cuja eleição não participaram. Liberdade é poderem decidir cada vez mais diretamente sobre os seus destinos, munidos de diversas formas de conhecimento. Se ser democrático é agir pela liberdade das pessoas e a aquisição de conhecimentos faz delas seres mais livres, parece que os arquitetos e urbanistas têm uma missão.