Medo de morrer ou medo de viver (SERMO LXIX)
MEDO DE MORRER OU MEDO DE VIVER?
Nossa sociedade ocidental, de consumo, teme significativamente a morte, e por temê-la, busca uma banalização. Essa forma de evasiva ocorre, em algumas circunstâncias, através da negativa em debater adequadamente o assunto. É curioso ver a frieza com que escutamos um noticiário assinalar que um desastre, aqui ou acolá, teve cem vítimas fatais, entre elas crianças e idosos. Os sobressaltos do cotidiano criam em nós um estado de indiferença que chega ao embrutecimento. A gente escuta notícias de morte como quem ouve a subida do preço da pipoca ou a nova cotação do dólar.
O que a gente não pode esquecer é que por trás de uma pessoa que morre, mesmo lá do outro lado do mundo, está uma vida, uma história pessoal que chegou abruptamente ao fim, e uma família ou grupo social que ficou sem aquele ente querido, seja um pai, uma mãe, um filho, um amigo... Certas mortes podem ser banais para quem apenas houve falar delas, mas são um ponderável sofrimento para quem sente esse drama na carne e no espírito.
Essa frieza emocional é fruto da distância. Morreram cem pessoas que eu nem conheço, num país longínquo e sem maiores vínculos com a gente. Agora, se morresse um parente nosso a gente estava lá, na porta do hospital ou no cemitério, chorando e clamando por justiça.
Outra forma de banalizar a morte é através do cinema, com as mortes em massa nos filmes de violência, quando torcemos para que Arnold Schwarzenneger mate o maior número possível de inimigos. Igualmente vibramos com as mortes trágicas nos filmes de horror ou nos espetáculos de teatro. Igualmente as centenas de mortes que ocorrem nos jogos de “realidade virtual” dos computadores, dão uma falsa impressão do fenômeno.
Deste modo, a morte, quando não suficientemente compreendida, sempre irá estabelecer uma séria tensão com o desejo de viver. E todo o temor – eu até diria terror – brota da constatação que a vida tem fim e que a morte é inevitável. A vida só é verdadeiramente vivida quando a morte nos leva, do tempo à eternidade. A morte é a chave do segredo da vida.
Na dialética vida e morte, observa-se que a plenitude do homem interior exige a morte exterior. Francisco de Assis chamava a morte de irmã, pois via nela uma passagem para a vida futura. Cheio do amor de Deus, o místico da Porciúncula não temia a morte, pois via nela um meio de encontrar-se com aquele Deus a quem ele se acostumara a amar e a servir.
Em muitos casos, a tensão entre o viver e o morrer ocorre a partir de uma dúvida ou de uma idéia distorcida que se tem da vida eterna. A confrontação entre o homem interior imortal e o homem exterior mortal, caracteriza a passagem de uma vida para a outra. A morte soa como um drama contra a auto-suficiência do homem que não admite o fim.
C. G. Jung afirma que o medo da morte é condição de sobrevivência para o ser humano. Mesmo assim, observa-se que a morte gera um medo, que poderíamos dividir em psíquico e religioso. O psíquico decorre da impotência humana contra a morte, que quebra o ritmo vital. O medo religioso é um medo do inferno e do desconhecido, que não deixa de ser, um medo de Deus.
Ora, quem tem plena certeza que na morte vai se encontrar com o Criador, esse não teme a morte, ao contrário, como os santos, anseia pela passagem para a casa do Pai.
Pelo fato de sentir medo, o homem banaliza a morte, que se torna uma via de mão dupla com a banalização da vida. “Falo da morte alheia enquanto estou vivo, mas evito falar na minha morte”. Este é o pensamento moderno. Para muitos, como vimos, a morte vem vulgarizada pelo cinema, teatro e tevê. Torna-se aventura; passatempo.
Há também aquela morte social, que se torna corriqueira aos nossos olhos. São as mortes no trânsito, nas filas do SUS e na falta de atendimento dos hospitais, as chacinas, a insalubridade, a perda do emprego, etc. Essa banalização nada mais é que uma fuga.
Ocorre aainda a “morte higiênica” onde o doente é confinado numa UTI para que morra longe da família. Mais tarde, o morto é entregue devidamente lavado, vestido e pronto para ser sepultado.
Nos Estados Unidos e alguns países da Europa, por exemplo, a morte é revestida de uma sofisticação, em que as empresas funerárias procuram competir, uma com as outras, para ver quem faz o enterro mais luxuoso, com a limosine mais moderna, as músicas mais tocantes, e o ministro que diga as palavras mais bonitas. No entanto, depois das pompas fúnebres, a família não assiste o enterro. O defunto é deixado num determinado lugar do cemitério, onde os funcionários providenciam o sepultamento.
Essa banalização da morte executa, ora a eutanásia (recordam do Dr. Morte?) que consiste em prover a morte de quem assim o deseja, ora realiza congelamentos de pessoas doentes, na esperança de uma mesma vida no futuro, quando – quem sabe – tiverem descoberto a cura para aquela doença. O congelamento moderno é semelhante, tem como que a mesma finalidade dos antigos embalsamentos do Egito.
Recentemente, no início de 2010, nos Estados Unidos, se me parece, um homem matou seu parceiro por sufocamento, asfixiando-o com um travesseiro para que ele não sofresse, já que era paciente terminal de Aids. Que jeito estranho de livrar alguém do sofrimento! Isto é banalizar a vida e a morte!
A verdade é que, hoje, o ser humano tem medo de morrer, porque seu modelo social o comprime, resultando, para muitos, um medo de viver. É em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva dissolução do corpo que atormentam o homem, mas também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe para sempre.
No episódio do paraíso, talvez esteja a gênese de todo o drama humano. Adão e Eva perderam a amizade com Deus porque quiseram tornar-se iguais ao Criador. Talvez sem saber que haviam sido criados para a imortalidade física, com medo de viver, buscaram-na, só que pelo lado errado (cf. Gn 3, 4).
Hoje as pessoas, volto ao mote central desta reflexão, têm medo de viver. As crianças não querem assumir os compromissos da adolescência. Os jovem temem as responsabilidades da vida adulta, e por isso agem como crianças, para que os pais não se apercebam que eles cresceram. Os adultos não querem envelhecer, e por isso usam cremes, fazem cirurgias plásticas, adotam cuidados especiais, até o congelamento, que já vimos linhas atrás. Os idosos querem parecer eternamente jovens. Há em todos como que um freio contra a maturidade física.
Essa ânsia de prolongar a vida, de buscar energia pelo lado errado tem resultado em escravidão e morte. No Brasil, todos se lembram do drama de uma jovem, artista de tevê e modelo que quase morreu, após fazer uma cirurgia de lipoaspiração, para emagrecer uns quilos e perder alguns centímetros de cintura. Isso é medo de viver... Os noticiários estão cheios de reportagens sobre pessoas que morreram quando buscavam beleza ou mais vida. Ninguém quer conviver com rugas, estrias, ou algumas gordurinhas...
A Igreja ensina que a esperança escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas antes, apóia o seu cumprimento, com motivos novos. No entanto, o maior castigo a um ser humano, seria torná-lo humanamente imortal. Os parentes desapareceriam, os amigos envelheceriam, contrairiam novos hábitos e morreriam, e a pessoa ficaria sempre igual, como uma espiga de trigo que esqueceram de colher.
Na mitologia, vemos a deusa Calypso com inveja da condição mortal de Ulisses. Na comédia cinematográfica “A morte lhe cai bem” (1991), o personagem vivido por Bruce Willys prefere continuar um simples mortal do que experimentar a tumultuada imortalidade das suas pretendentes, vividas por Merryl Streep Goldie Hawn.
O medo de viver vai desembocar no temor da morte. Sem conhecer bem o sentido de sua vida, algumas pessoas imaginam a morte como um grande vazio. Ora – devem pensar – se minha vida é assim, tão sem sentido, como será a morte? A perspectiva da morte coloca o homem diante do maior de todos os desafios: como descobrir um sentido em sua vida, um ideal pelo qual valha a pena viver.
O progresso tecnológico da humanidade, em muito pouco ajudou o homem a descobrir a razão de viver. E quem não descobre a razão de sua vida, às vezes deserta dela pelo suicídio. O suicida é alguém que tem medo de viver. Prefere a morte violenta, inglória ou sem honra até, do que enfrentar a vida, que se tornou para ele um suplício impossível de ser encarado.
O medo da morte leva as pessoas ao suicídio, que nada mais é que um gesto de desespero. As pessoas que se matam, em geral já vêm mortas psiquicamente da primeira infância. A morte, nesse particular, tem o significado de um aniquilamento.
Deste modo, os medos de viver e morrer costumam andar juntos. Por se interpenetrarem, em alguns casos um é conseqüência do outro. As pessoas, em geral, têm muito medo da morte. Quando se fala nessa dama, muitos pedem para mudar o assunto, dão pancadinhas na madeira (para isolar, dizem). Quando se programa, em movimentos, associações ou comunidades, alguma palestra ou reflexão sobre morte, vida posterior ou algo parecido, a freqüência diminui consideravelmente.
Tem gente que não vai a velórios e enterros, pois “quem não é visto não é lembrado”, dizem... Entretanto, esse fato que muitos procuram ignorar e que a tantos inquieta e assombra, é a única certeza da vida humana. Ninguém sabe se vai ficar rico, se vai morar nessa ou naquela cidade, qual o número de filhos que vai ter. Mas é certo que vai morrer, afinal, como afirma o gaúcho do interior, ninguém fica pra semente... O medo da morte ainda será comentado mais adiante.
Ao anunciar a fecundidade do grão de trigo, que é ele próprio e a vida dos que nele crêem, Jesus afirma:
Se alguém me serve, meu Pai o honrará (cf. Jo 12, 26),
nós viremos e faremos nele nossa morada (Jo 14, 23) e ele
produzirá muitos frutos (Jo 15, 5).
Mesmo os que, querendo passar uma imagem de “durões” não revelam medo da morte, pelas evasivas ao assunto, fica claro que o assunto é obscuro e, como tal, rejeitado. Pelo lado material igualmente o temor se verifica, especialmente no que se refere ao apego de muitos aos bens, ao patrimônio.
No decorrer das cinco fases do paciente terminal, levantadas pela doutora Elizabeth Kuebler-Ross, é sempre recomendado fugir às chamadas “mentiras piedosas”, para que a pessoa desfrute de paz, serenidade e fortaleza. Não se deve, em hipótese alguma, enganar o doente. É um desrespeito para com o doente e mais sofrimentos para a família. A pessoa tem o direito de conhecer a real extensão de sua enfermidade, para se preparar adequadamente para o desenlace. Quem age assim demonstra medo da morte e desrespeito com a vida de quem está morrendo. Ah, dizem - ele vai cometer uma loucura! Vai nada!
Na perspectiva da morte a pessoa amadurece e tem oportunidade de se preparar melhor. Além disso, o doente pressente, pelo silêncio dos familiares, pelas conversas à meia-voz, pelos olhos vermelhos de quem chorou, os familiares aos cochichos com os visitantes, a realidade de sua situação. A doença lhe confere essa sensibilidade. A ideologia burguesa do silêncio sobre a morte, oculta as decisões políticas de sua classe, que terminam por ser destruidoras da vida dos pobres.
Acostumados a banalizar a morte, muitos grupos sociais fecham os olhos às mortes causadas pelo desleixo e pela criminosa irresponsabilidade oficial, seja de autoridades, governantes, congressistas e julgadoras, que na busca de objetivos políticos ou de interesse próprio, relegam a saúde pública, a educação e a segurança a patamares irrelevantes, em geral causadores de tantas mortes.
Pelo seu cunho técnico, as Unidades de Tratamento Intensivo, embora ajudem a salvar vidas, desacostumam as pessoas às experiências da morte. Essa falta de experiência torna difícil, para muitas pessoas, falar abertamente em morte, ou ficar ao lado de um moribundo. O doente terminal morre sozinho, distante daqueles a quem tanto amou...
A coisa que o moribundo mais precisa na hora da morte é uma palavra de conforto, a assistência de palavras espirituais e de esperança que fortaleçam sua fé. A hora da morte traz consigo uma experiência crítica e traumática. Nessa hora vem Jesus, Maria, os Anjos e os Santos protetores, mas também vem aquela turma “do outro lado” que nesse instante dramático não quer perder aquela alma, por isso inspira dúvidas, remorsos, saudades do passado, revolta, etc.
É preciso muito apoio espiritual nessa hora. O doente não pode ser abandonado nessas circunstâncias. É de enorme conforto para alguém enfrentar a morte segurando na mão de uma pessoa amiga ou da família.
Eu, particularmente, não tenho medo de morrer. A fé que procuro alimentar todos os dias, me faz ver a morte como uma passagem, para a qual, dentro das minhas limitações, preciso estar preparado. Meu temor é perder a Graça de Deus. Não é salutar a preocupação com esta vida terrena e esquecer a felicidade duradoura daquilo que chamamos de vida eterna. Lá que nossa vida se torna definitiva.
Justamente quando concluía este tópico, estive na expectativa de uma cirurgia para o dia seguinte. Sem medo, mas prevenido, fui à minha comunidade, onde o padre Flávio ministrou-me a “unção dos enfermos”.
Mesmo sem medo de viver ou morrer, é incrível a euforia e a força que o sacramento me concedeu. Na hora da cirurgia, antes de perder a consciência, rezei o Credo. Quando as luzes, sobre mim se acenderam, eu disse baixinho: “Senhor, estou em tuas mãos!”. Hoje, já recuperado, retorno ao ponto onde parei, um passo adiante na fé e na esperança.
Este texto faz parte do livro “O Grão de Trigo – Reflexões sobre a vida depois da Morte” (tese de Mestrado em Escatologia do autor), Ed. Ave-Maria, 1999.