Lendo a Páscoa de novo
Pode-se dizer, sem medo de erro, que a Páscoa cristã seria, já, uma terceira leitura do evento e já clareamos o sentido de tal afirmação. Ela aparece como rito de pastores, ou seja, sacrifícios realizados por semi-nômades muito antes do êxodo bíblico. Eram sacrifícios feitos com animais jovens para garantir a fecundidade do rebanho e abundância das pastagens. Este povo se deslocava pelo deserto à procura de pastagens melhores, em tempos de primavera, nas regiões da antiga Mesopotâmia e norte do atual Israel. No momento da partida, e com o objetivo de evitar as investidas dos demônios do deserto, sacrificavam, em família, um animal jovem e tingiam os suportes de suas tendas com o sangue do animal sacrificado. A gênese do gesto ritual reside na proteção de todo o rebanho e na saúde do gado miúdo.
É aí que encontramos, a partir dos relatos bíblicos de Êxodo 12 a 15, os principais preparativos para a saída do Egito. Importa notar que o êxodo com Moisés recorda elementos antigos e dão a eles novo significado, nova leitura, segunda leitura. Tanto é assim que alguns pesquisadores bíblicos consideram que existe um Antigo Testamento dentro do Antigo Testamento, isto é, antes da passagem do mar. Assim, após a travessia do Mar dos Juncos (a Bíblia não fala em Mar Vermelho) estariam os hebreus no seu Novo Testamento. A idéia é interessante porque abre as portas para aquilo que Jesus mais tarde fará.
A nova Aliança (diatheke) no sangue de Jesus se configura, portanto, como a re-leitura e atualização daquela Páscoa judaica que os antigos Santos Padres chamavam de “figura da Páscoa do Senhor”. Já Melitão de Sardes (177 dC) sugeria: “Antigo segundo a Lei, novo, segundo o Verbo; temporal pela figura, eterno pela graça; corruptível pela imolação do cordeiro, incorruptível pela vida do Senhor” (Homilia sobre a Páscoa).
“Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão...” (1Cor 11,23). Com estas palavras de São Paulo, os cristãos sentimo-nos laçados para trás. Sentimo-nos jogados naquela noite. Sentimo-nos ao redor daquela mesa. Estas mesmas palavras tornam a nos lançar para a frente, na direção da mesma noite e na direção da mesma mesa. Há uma outra dimensão muito bonita: somos lançados na direção uns dos outros por causa desta mesa. Somos lançados dentro de uma Grande Manhã onde o sepulcro não segurou o Senhor.
Em todas essas considerações a linha vermelha que perpassa o ato ritual é a celebração da vida. O convite para todo cristão e cristã lançar um olhar pascal sobre o sofrimento dos homens e mulheres em seus passos na terra e lutarem em defesa de suas vidas. Na Páscoa de Jesus, caminhamos na certeza de que um mundo novo se abre. A Páscoa deixa de ser só passagem e re-significa o horizonte da vida que agora se plenifica na doação do Senhor e, sendo assim, escolhe, pois, a vida (Dt 30,19).