O caos e as possibilidades de gozo

Depois de muito tempo sem publicar nada neste espaço, publico agora dois pedaços de dois diferentes parágrafos do livro Morte em Veneza, de Thomas Mann. Um dos motivos que me levaram a isso foi a recordação imediata, após a sua leitura, de outro texto também postado aqui e o comentário que o precede. Trata-se de "A peste: o sonho da festa ou um pesadelo político?", do dia 16 de julho de 2009. Tanto as palavras de hoje quanto as do dia 16 de julho, o que está em jogo é a entrega ao caos e as possibilidades de gozo e prazeres sonhados resultantes dessa entrega, cujo preço paga-se com a própria vida. Lembro da passagem em que Moises ao ver de relance a manta de Deus imediatamente cai ao chão de tanta glória concentrada numa mesma visão. Se visse mais de seu criador, desintegraria no instante mesmo da aparição. Aschenbach, um escritor de renome, seguia Tadzio pois estava preso à paixão que sentia pelo rapaz. Mas a entrega à promessa do novo prazer que o jovem representava resultará na dupla dissolução do que Aschembach era. Em primeiro lugar dissolução dos valores morais cujos princípios sempre se orgulhara tê-los, valores constituintes de sua pessoa, marca presente em suas ações, gestos e opiniões e que o identificava tanto para os outros quanto para si mesmo. Em segundo, dissolução de sua vida, a ameaça da morte – Veneza sofria com uma epidemia. O fantasma biológico, invisível, dos miasmas rondava sondando as vidas que insistiam naquele lugar, naquela cidade. Semelhante tema, por exemplo, se pode ver na obra A peste, de Albert Camus, ao que Foucault em O Anormais chamou de “sonho literário da festa” (página 58). Citarei o trecho: “Há uma literatura da peste que é uma literatura da decomposição da individualidade: toda uma espécie de sonho orgástico da peste, em que a peste é o momento em que as individualidades se desfazem, em que a lei é esquecida. (...) A peste passa por cima da lei, assim como passa por cima dos corpos.” Para não me estender mais no que deveria ser breve, chego ao fim do comentário.

"Pois a paixão, tal como o crime, não se adapta à ordem estabelecida, ao bem-estar da marcha do cotidiano, e qualquer desarranjo da estrutura burguesa, qualquer perturbação e tribulação do mundo têm de lhe ser bem-vindos, pois ela pode alimentar a vaga esperança de encontrar aí algum proveito. Assim, Aschenbach experimentava uma obscura alegria pelo que, camuflado pelas autoridades, se passava nos becos sujos de Veneza – esse segredo pernicioso da cidade, que se confundia com seu próprio segredo e em cuja preservação ele também estava tão empenhado. Pois a única preocupação do apaixonado era que Tadzio pudesse partir, e ele reconhecia, aterrorizado, que já não saberia viver, caso isso ocorresse." (Pg. 67,68)

"Mas o barulho, a gritaria, ampliados pelo eco da barreira de montanhas, aumentavam, recrudesciam, dilatavam-se numa loucura arrebatadora. Vapores oprimiam os sentidos: o cheiro acre dos bodes, o odor dos corpos arquejantes, um hálito como que emanado de águas putrefatas, e ainda um outro, familiar – cheiro de feridas e de doença disseminada. Seu coração retumbava acompanhando os timbales; seu cérebro girava, foi tomado de furor, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à ronda do deus. O gigantesco símbolo de madeira obsceno foi descoberto e erguido: passaram a urrar a senha ainda mais desenfreados. Bramiam com lábios escumantes, excitavam-se mutuamente com trejeitos lúbricos e mãos cúpidas; rindo e gemendo espetavam-se uns aos outros com os aguilhões e lambiam o sangue dos membros. Mas com eles, neles estava agora aquele que sonhava e que pertencia ao deus estranho. Sim, eles eram ele mesmo quando se atiraram sobre os animais, dilacerando e massacrando, e devorando postas fumegantes; eram ele mesmo quando, no musgo revolvido do solo, teve início um acasalamento sem limites, como sacrifício ao deus. E sua alma saboreou a luxúria e o desvario da degradação." (Thomas Mann, Morte em Veneza, Pg. 86)

BHChads
Enviado por BHChads em 17/03/2010
Reeditado em 17/03/2010
Código do texto: T2143578
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