Sobre dois mundos
Para os partidos. Para que possam ser inteiros.
“Povo unido jamais será Partido”. Zé Trovão – Poeta paraibano
Tenho um conhecido que, além de professor de História, se diz materialista-comunista e, principalmente, um “Humanista”. Constantemente discutimos nossas divergências ideológico-interpretativas sobre a origem e as necessidades da nossa e da existência de tudo. Seu ponto de vista lhe proporciona a compreensão sobre os mecanismos da Vida fundamentado na supremacia da realidade da matéria sobre a do Espírito. Sua religião, o materialismo, defende a opinião de que, quando mortos, desapareceremos de uma vez por todas da face da Terra. De nós não sobrarão sequer lembranças, ao contrário de muitas personagens importantes do passado, as quais burocraticamente concedemos o título de “imortais”, cujas vidas e feitos estarão registrados “para sempre” nos anais da História.
No que diz respeito às investigações filosófico-metafísicas sobre o que primeiro surgiu no Princípio – se o Espírito a produzir a matéria à expressão de Suas idéias, ou a matéria e “dona História” a produzir a Cultura e nossas invenções sobre “O Espírito” (portanto, se a Essência precede a existência, ou o contrário) – me rendo humildemente a impossibilidade de investigação do ocorrido à manifestação material da Vida em Seus tempos primeiros, uma vez que a expressão “tempos primeiros” sugere a necessária presença de pelo menos uma testemunha a registrar o momento das explosões iniciais à criação orgânica dos sistemas, cósmicos, individuais e sociais. Como tal observador não existia, portanto, ainda não se havia começado contar o Tempo para que ele também pudesse vir a existir, invalidando a consideração de um mensurável “princípio” à Vida e a Sua finalidade.
Nos debates com meu conhecido histórico-materialista, digo-lhe que, através de suas considerações históricas, percebo que para todos os adeptos do chamado “materialismo histórico” a História tem sido considerada outro ente supremo, substituta daquilo que idealistas espiritualistas chamam “Deus”. “Dona História”, parece-me, como a outros, é um subproduto da versão religiosa daquele universo fantasioso, morada do tal ente mítico supremo, “Senhor do céu e da Terra”, inventado pelos intérpretes da Filosofia Perene e menosprezado pelos marxistas (entre outros idealistas materialistas utópicos) apenas como causa e, ao mesmo tempo, efeito da “alienação das massas”.
Em seu livro "A ilusão vital", o filósofo francês contemporâneo Jean Baudrillard nos dá um bom exemplo do que considerei a aparente “vida independente” de Dona História às determinações dos destinos dos homens ao escrever: “Talvez o fim da História, se realmente podemos conceber algo assim, seja meramente irônico. Talvez ele seja meramente um estratagema da História que consiste em ter ocultado de nós o seu fim, em ter terminado sem que tenhamos percebido. (...) A artimanha da História foi nos fazer acreditar em seu fim, quando, na Verdade, ela já começou a fazer o caminho de volta, na direção oposta”.
Como “Dona História”, tal é também a noção que têm os materialistas de “Seu Estado”, outro “superser” que, surpreendentemente, sob a perspectiva dos citados materialistas, parece-nos agir "independente" das nossas ações, exercendo sobre todos nós influências decisivas à formação essencial de nosso caráter e conduta das pessoas, cujas reações temperamentais parecem oscilar de acordo com a dinâmica determinante da Economia, prima do Estado.
Na Verdade, tanto quanto “Deus”, a História e o Estado não passam de representações de nossos desejos de atribuir a outros – quer pessoas, quer sistemas políticos ou deuses do Bem e do mal – as conseqüências destrutivas por todas as perversidades cometidas por nós mesmos contra nós e nossos próximos (estejam eles considerados próximos ou distantes). Porque, a bem da Verdade, os efeitos de tais irresponsabilidades devem recair somente a nós em nossa convivência viciada com certos equívocos conceituais, parecendo nossa consciência dessa verdade evidente anestesiada pela idéia que alimentamos sobre nossa inescapável submissão às determinações de “Papai Sistema”. Porque, tal como “Papai Sistema”, o Estado e “seus” problemas nada mais é que o resultado constituinte dos aglomerados de múltiplos indivíduos, então emocionalmente desequilibrados, geopoliticamente mal distribuídos sobre o planeta fracionado em partes desiguais às quais chamamos “Pátrias”, sendo assim, também, constituídos os grupos conhecidos como “Família” e “Comunidade”.
Mesmo identificando a História como uma outra representante da idéia de um “Deus” e Seus atributos, qual a diferença fundamental entre “Deus-pai” e “Dona História”, esposa mandona de “Seu Estado”, amante da “Prima Economia”, filha perversa do “Papai Sistema”?
Ao contrário das atribuições que os idealistas materialistas dão ao “seu Estado”, responsável pela manutenção das coletividades, e à “Dona História”, que “se pensa” soberana na determinação de sua própria trajetória existencial (“o que fiz tornarei a fazer” – parece ela nos dizer, completamente indiferente a nossa esperança de experimentar algo realmente Novo em nossa vida individual e coletiva), ao “Deus-Pai” foi dada função de eterno vigilante dos movimentos interiores da consciência pré-humana, onde também parece habitar.
Os cristãos, por exemplo, crêem que do alto e, ao mesmo tempo, das profundezas de Sua plena-perspectiva, “Deus” se preocupa essencialmente com a condição consciente e, mais ainda, inconsciente dos indivíduos; com a justa utilização de seus livres-arbítrios enquanto agentes co-criadores de suas vidas no salão do espaço-tempo à escritura de suas próprias histórias e seus necessários “finais felizes”.
Como observei antes, um dos pontos de vista mais inviáveis dos idealistas materialistas históricos considera a maioria dos indivíduos (senão todos), suas sensibilidades e razoável poder de autoconsciência, um tanto incapazes de reagir às más influências de Dona História e de Papai Sistema a realização compulsória das más intenções que constituem os fundamentos perversos, egoístas, desumanos de outra representação mítico-supra-humana (pra não dizer supra-desumana): o famigerado “Titio Mercado”.
“Titio Mercado”, junto com toda sua família de “Deuses” e seus fiéis adoradores, parece invalidar todas nossas esperanças de possíveis mudanças substanciais, mesmo radicais, daquelas perversidades destrutivas por nós praticadas no passado, para onde, às vezes, outra vez pensamos estar sendo conduzidos pelos caprichos de “Dona História” que, numa reação desesperada ao seu profetizado fim, tenta sobreviver voltando-se e correndo para trás, para o seu “primeiro dia”, como aqueles que desejariam ter nascido velhos a se tornarem jovens e crianças, até se aconchegarem no ventre materno à iminente inexistência.
Entre eu e meu conhecido materialista, portanto, os valores que dão sentidos as nossas vidas, como aqui observei, emergem de universos perspectivos opostos. Creio que ainda nos encontramos apenas porque ele é um dos membros temporários de minha família temporária. A bem da Verdade, nada temos em comum – a não ser talvez o gosto pela obtenção de conhecimentos, embora sua abertura a outras instâncias da percepção e do saber lhes seja preconceituosamente antipática. Mesmo assim, de minha parte, quando em nossos pequenos embates intelectivos, identifico significativas convergências sob os ângulos de nossos divergentes pontos de vista – como o fato de que a pré-existência dos recursos materiais, defendida por ele em seus argumentos ideológico-materialistas, foi-nos e é-nos sem dúvida condição indispensável aos objetivos ou às objetivações da consciência pré-humana aos fundamentos ideológico-culturais das civilizações pretensamente Humanas, tanto em seus aspectos técnicos, materiais, quanto em seus aspectos psíquico, subjetivo, moral, conceituais, étnicos e (somente então) conseqüentemente históricos.
Para nós, “espiritualistas”, entretanto, considerados um tanto limitada e equivocadamente apenas “idealistas” (como se idealistas não fôssemos todos), é sem dúvida o reconhecimento de nossa capacidade sensitivo-imagética essa força que nos dá condições de transformar a Natureza à criação de nossas culturas, de nossas realidades histórico-materializadas, de nossos singulares modos de vida – nada mais que produtos da sensibilidade unida a nossa capacidade de memorizar e imaginar a feitura de outros mundos possíveis; como já disse antes, como os que temos construído ao longo do tempo, resultados de nossas interpretações sobre a Vida e Seus “outros propósitos”, considerados “misteriosos” ou “ocultos”. Por isso não posso abdicar da convicção de que, no que diz respeito aos processos de desenvolvimento de todos os arcabouços culturais que substanciaram, substanciam e substanciarão valores pré-humanos, Humanos, objetos e objetivos constituintes das civilizações (embora não da constituição de suas matérias-primas primeiras), tudo foi fundamentado com base em nossa capacidade sensitiva, de memorização, raciocínio e imaginação à invenção de toda nossa realidade histórica – que passou a existir e se desenvolver tão somente a partir das narrativas que fizemos dela (ou das que ainda faremos); ou seja, quando começamos a contá-la e de nenhum outro modo, sendo ela passível de ser ressentida, repensada e, tanto quanto foi inventada, outra vez reinventada à construção de possíveis outros tantos melhores mundos futuros.