UM BIBLIÓFILO NOTÁVEL
Do ponto de vista da Cultura, de domingo para esta segunda-feira, o Brasil acordou infinitamente mais pobre. Domingo, 28 de fevereiro de 2010, o advogado, empresário e bibliófilo paulista José Mindlin* deixou o orbe dos viventes, de pneumonia, aos 95 anos de idade. Repetir que este infausto ocorrido foi uma perda irreparável para o País inteiro é cair no lugar comum das frases feitas mais corriqueiras.
Empresário bem sucedido, bastante culto, filho de imigrantes judeus, o Dr. Mindlin foi sócio majoritário da indústria Metal Leve, do ramo da metalurgia; porém, durante sua vida toda, dedicou-se por inteiro aos setores culturais e, em particular, apegou-se à aquisição e conservação de livros, livros aos milhares, dos quais tratava com zelo e muito carinho, daí sua notoriedade como bibliófilo.
Um bibliófilo notável, na acepção mais radical da palavra, pois dono de uma das maiores, senão a maior biblioteca particular brasileira, com um acervo invejável de livros raríssimos, adquiridos em antiquários e sebos de vários países.
Para que se tenha ideia da enormidade e da preciosidade da sua biblioteca, que acabara de fazer 83 anos, o intelectual – fugindo à norma dos de origem judia, por ser agnóstico – ostentava, entre suas peças mais destacadas, a edição de 1524, de “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões, e a primeira edição de “O Guarani”, de José de Alencar. Não registrei outras joias, mas é inumerável o seu rol de obras e mais obras raras, com tiragens de edições antiquíssimas, tanto de autores nacionais como de escritores estrangeiros.
Há cerca de quatro anos atrás, portanto em 2006, na edição do programa Roda Vida, da Rede Cultura, o Sr. José Mindlin fora entrevistado por um grupo eclético de pessoas de alto nível, entre as quais jornalistas, escritores, professores, médicos, advogados e outros observadores, sob a moderação do jornalista e escritor Paulo Markun.
Assim, nesta segunda-feira, 1º de março, numa homenagem póstuma ao ilustre desaparecido, a Rede Cultura reprisou aquela entrevista concedida pelo insigne macróbio, em 25 de dezembro de 2006. Apesar da idade já avançada, à época, ao contar com 91 anos, o amigo dos livros discorreu brilhantemente sobre diversos assuntos, principalmente aqueles ligados à Cultura, de um modo geral, e com uma lucidez impressionante. Impressionantes, também, a memória e a sua erudição.
O famoso e dedicado bibliófilo falou de suas viagens pelo mundo, dos negócios, inclusive no ramos de antiquários, onde não se deu tão bem; fez um enfoque do período em que foi Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, durante o governo de Paulo Egídio, por quem fora deveras instado para assumir o cargo, em plena ditadura militar. Declarou-se opositor do regime de então, mesmo sendo secretário de um governador nomeado, e, num gesto humanístico, recusou-se a oferecer apoio moral e financeiro – ao contrário de muitos empresários paulistas – aos fora-da-lei do DOI-CODI, vez que condenava o expediente da tortura.
Perguntado sobre que livros e/ou autores ele indicaria, foi incisivo em nominar “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, assim como toda a obra de Machado de Assis e a de João dos Guimarães Rosa. Dos autores estrangeiros, ressaltou possuir um fascínio pelo francês Marcel Proust, que desaconselhou para os principiantes.
A fim de que se não perca a memória – mais do homem, menos do empresário bem sucedido – e para que se não evaporem, tão breve, a lembrança e a significação histórica do excelso exemplo de intelectual, um rico que não vislumbrava apenas os cifrões, maníaco pelos livros e pela Cultura, aqui, neste simples artigo, a nossa singular e solidária homenagem ao Sr. José Mindlin, cujo passamento nos deixa uma indelével lacuna no panteão da inteligência brasileira.
Fort., terça-feira, 02/03/2010.
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(*) Pós-escrito:
Com base na reportagem “O exemplo de Mindlin”, de Natália Rangel, ISTOÉ, Nº 2104, p. 66, adicionamos ao artigo, em resumo, os seguintes tópicos:
1. Ao deixar para uma instituição pública a mais importante biblioteca privada do País, o empresário mostrou que, até para ser generoso, o brasileiro tem de enfrentar o Estado.
4. Opinião de Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil: “É tanta burocracia do Estado para se doar uma coleção que ela se desmantela. É uma desgraça para o País."
3. Mindlin costumava dizer que não tinha o “fetiche da propriedade” e atribuía a si mesmo e a sua esposa, Guita, falecida em 2006, o papel de “guardiões” temporários dos 40 mil livros de sua biblioteca particular. Para ele, o vasto acervo literário que reuniu ao longo de sua vida já tinha um destino certo: uma instituição pública.
4. Morreu sem ver o seu maior sonho realizado: a conclusão das obras da biblioteca que leva o seu nome na Universidade de São Paulo. Motivo de tanta demora: os trâmites de cunho meramente burocráticos. Inacreditavelmente teve de brigar oito anos para conquistar o direito legal de doar os seus livros, o que ocorreu finalmente em 2006.
5. A BIBLIOTECA DE MINDLIN: A coleção Brasiliana ficará na Universidade de São Paulo. 17 mil títulos relacionados à formação do País foram destinados à USP em 2006. 40 mil é o total de reunidos pelo bibliófilo. A primeira obra foi comprada em 1927. US$ 4 mil foi quanto custou a primeira edição de “O Guarani”, de José de Alencar.