Escritos Embaixo
Escritos Embaixo
Foi-se o tempo em que um dos maiores jornais de São Paulo se dava ao luxo de utilizar página inteira, no Segundo Caderno, para relatar a vida de uma moradora de rua.
Kurt Eichenwald, jornalista do New York Times, narra em livro a máxima vigente do corporativismo: o consumidor é o inimigo.
Neill Blomkamp e Terri Tatchell, roteiristas do “District 9”, transformam as outras partes do inimigo em alienígenas, que moram em barracos, comem comida do lixo, roubam tênis e celulares dos humanos.
O Reino da Paródia não contava com esta.
É de se perguntar para onde vai, ou para onde mais pretende se esconder o veio da inteligência humana, através de véus e mais véus de rematadas tolices num momento em que o barril está transbordando, existe tecnologia e recursos para sanar as chagas mas não há, aparentemente, disponibilidade para tanto.
“Onde há disponibilidade, há abundância”, expressam os esotéricos. Todavia, é mais fácil socorrer os aliens de outras fronteiras, do que abastecer a despensa dos enlouquecidos de cá, posto que espremidos - até a última gota - por uma engrenagem com vida própria.
Num mundo de ONGS e movimentos espiritualistas de ordem múltipla, nenhuma mão é estendida a contendo, sob pena de se associar a pieguice ou a movimentos políticos estropiados, ou o que quer que seja passível de rótulo pejorativo ou em desacordo com uma cultura zonza e arfante, cujo único aspecto realmente global é a barbárie perpetrada contra os alienígenas de todos os guetos.
Qual país do Terceiro Mundo descarta a possibilidade
de embutir em suas periferias, seres que vivem em barracos, se alimentam de resíduos, roubam apetrechos inacessíveis e são abatidos pela mão forte do Estado?
Eichenwald esmiúça e indaga, a um só tempo. É um escritor com “e” maiúsculo e sua obra virou filme dirigido por Steve Soderbergh. Neill Blomkamp e Terri Tatchell tem toda a liberdade para criar e ainda por cima concorrerem ao Oscar. O nó da questão se dá na união, ou se preferir, na colagem dos por assim dizer pensamentos expostos, mais o desinteresse da grande mídia, seja pelos inimigos descritos por Eichenwald, seja pelos alienígenas criados por Blomkamp e Tatchell. Até porque, quando o primeiro dança, e os albergues estão repletos de diplomados, transforma-se automaticamente no segundo. Se der sorte.
O jornalista do New York Times constata que a nota dominante de todas as viagens de executivos de multinacionais pelo globo deve-se ao alinhamento dos preços de seus produtos com os concorrentes. Noutras palavras, cartéis são a praxe oculta que se multiplica em hotéis cinco estrelas. Ele também cogita se as montadoras não tem na gaveta um automóvel capaz de rodar 100 quilômetros com um litro de gasolina...
Tudo gira e o inimigo rodopia.
Nossa querida administração, cujas opiniões a respeito são tão divididas, uns a consideram “pai dos pobres e mãe dos bancos”, outras apregoam que entrou definitivamente para a história pela porta da frente, e outras ainda, cautelosas, apenas aventam quanto ao legado, quanto ao que virá depois. Sua presumível continuidade desde já prega “Um Estado Forte”. Isso é assustador.
Dedilha a doce lenda aos ouvidos dos crédulos que o imperador romano Marco Aurélio, todas as vezes que saía as ruas, levava consigo um escravo incumbido de sussurrar-lhe aos ouvidos: lembre-se de que você é apenas um homem.
O incômodo insight de Neill Blomkamp (diretor do filme), foi transformar todo esfarrapado, todo excluído, num alienígena, pois só assim seria possível ver com regozijo seu barraco aberto a pontapés e sua execução sumária. Não são portanto homens, mulheres, crianças, velhos, os que habitam a área hoje denominada de comunidade, um nome mais ameno para uma realidade que não arrefece.
Culpar governos pelos incontáveis “District 9” espalhados de norte a sul no nosso país, e deixar essa culpa exclusivamente com eles, me parece hoje
um tanto em desalinho com o que se espera do ser humano nesse Novo Milênio.
Considerando o futuro como uma incógnita dotada de dois ou três pontos não variáveis, considerando o presente como fruto de possibilidades passadas, nada impede que em nossas lápides, num futuro qualquer, estejam escritos embaixo - com um ponto de interrogação no final - os seguintes dizeres: somos todos reféns ou somos todos cúmplices?