Rompendo o pacto da mediocridade
Diagnóstico de uma demissão
Com o advento do marketing, da publicidade, da qualidade total, muitas instituições de ensino estão confundindo seu papel social. Atualmente, com um investimento financeiro pequeno ou médio, se abre uma faculdade na esquina, uma escola em casa, um curso de informática fantasma.
Numa receitinha caseira, como quem faz um arroz com feijão e bife, montar o negócio nem é tão complicado. Pegue um indivíduo seja ele padeiro, marceneiro, advogado, economista, comerciante, político etc, não importa, com dinheiro na mão, acrescente mais duas ou três cabeças iluminadas, para se formular um projeto “educacional”. Espere o aquecimento do mercado. Registre o plano. Em seguida, quando estiver quase no ponto, contrate um publicitário (ou peça para aquele amigo bom em corel) para fazer uma logomarca, uns cartazes, folderes, outdoor, para dourar o produto. Quando sentir o aroma de sucesso no ar, está pronto para servir. Em alguns casos há quem prefira o bife mal passado, então sirva assim mesmo. Telefone para os amigos, abra as portas da cozinha, ponha a mesa e chame seus convidados. Se a comidinha estiver boa, diga que foi você mesmo quem fez, se não estiver diga que a cozinheira é novata. Após a sobremesa, corra ao MEC para tentar aprovação dos pratos que você está oferecendo. Se houver alguma indigestão, não se desespere, podia ser uma indisposição passageira que logo, logo, um sal de frutas dará o jeito de reformular uma ou outra linha torta do documento. Quando o número de convidados crescer muito, chame os vizinhos, primos, parentes, para ajudarem no cozimento das iguarias.
Em se tratando do “mercado da educação”, não acho exagero algum dizer que a receita acima é quase infalível. Há 20 anos, quando fiz a primeira graduação superior, existiam em Brasília no máximo cinco faculdades. Lembro que, na época, tinha uma apelidada de “pagou passou”. E, outra, era chamada de “insiste só mais um pouquinho que tem até quarta chamada para o vestibular”.
Com o passar do tempo, o crescimento populacional, a globalização, a pós-modernidade, o capitalismo, e todos os outros blábláblás que escutamos dos estudiosos, aliados às pseudo-reformas educacionais, repercutiram, e a demanda pelo ensino superior ganhou dimensões. Abrir “escola” (instituições ditas “sem fins lucrativos”) dava mais lucro que restaurante. Daí, surgiram as Facisso, Facquilo, Facfácil, Univenha, Isdiploma, e similares. Algumas, sem dúvida, com projetos mais sérios e outras com o departamento financeiro mais apurado.
O que se torna difícil em meio a essa avalanche de ofertas, como em balcão de feira, é escolher a peça com menos defeito. A promoção, os preços convidativos, o pagamento facilitado, os tamanhos P, M, G, GG, para caber todo mundo (do que não sabe praticamente escrever ao que não sabe realmente entender o que lê), dificultou a seleção pela qualidade, seriedade e compromisso real com a formação do aluno.
Por um lado, não sou exatamente contra o acesso facilitado ao terceiro grau. O que me assusta é a saída facilitada do aluno que está na faculdade. Antigamente eu ouvia: “entrar na faculdade é fácil, difícil é sair”. Hoje vejo, na prática, que sair também é tão fácil quanto entrar.
Isso demonstra que poucas faculdades estão verdadeiramente preocupadas com a formação de qualidade, e grande parte teme manter em seus quadros professores que deixam alunos para testes finais ou reprovam. Ao que parece, professor bom, de nível, competente é o que passa todo mundo, para não ter aluno reclamando na coordenação e direção.
Ora veja, sabemos que a maioria da população brasileira não sabe escrever e nem ler, independente do grau de escolaridade. São poucos os que dominam a língua materna para estabelecer uma comunicação adequada por escrito (ou até mesmo falando) e, também, é a minoria que entende um texto que lê e consegue absorver algo, e, pior ainda, utilizar o conhecimento para transformar a própria condição, a própria vida.
No entanto, existem aos montes, nos cursos superiores em geral, alunos semi-analfabetos aprovados em todas as disciplinas com notas superiores a sete. Lá, também, estão futuros professores, alunos de Pedagogia e Normal Superior, com uma defasagem suficiente para retornar ao fundamental. Mas, sairão diplomados e habilitados a alfabetizar os outros.
Contudo, ouve-se “se o aluno chegou até aqui, foi passando, eu que vou reprovar?”, “deixe que o mercado reprove”. Pergunto: onde está a responsabilidade do professor? O professor vê e se cala, para não ser “reprovado” pelo empregador. Cada vez mais, o professor está proibido de falar. São as mordaças invisíveis. É a lei da sobrevivência do mercado. Todavia, o “discurso” institucional diz “aqui não admitimos isso, o professor tem toda a liberdade em reprovar”. Ledo engano! Experimente, e se o seu coordenador de curso ficar incomodado com as pressões exercidas pelos alunos que não tiveram notas suficientes, seu pescoço vai para a direção terminar de degolar. Feito um frango no canto da cozinha, primeiro é arrancada cada pena, depois de amolada a faca, crau, é só esperar o sangue espirrar! Normalmente, às vésperas das férias, para o depenado ficar sem possibilidade de encontrar outro rumo melhor.
Outra prática conhecida, para demitir professores comprometidos e empenhados com a formação de qualidade, é desviar o assunto, “insatisfação do aluno por causa das notas” ou “perseguição pessoal da coordenação com o professor X” etc, para “você não se relaciona bem com os alunos”, ou ainda, “você não tem a graduação adequada” (ainda que o professor tenha especialização na área das disciplinas que ministra). Tentam dar um “tom profissional” para dispensar aquele que incomoda, que rompe o padrão, a média, que denuncia, que deseja mudanças, tão somente para esconder os aventais sujos do chefe de cozinha despreparado e lambão.
É repulsiva a inversão de valores, aliás, a falta deles. Para acobertar inseguranças pessoais, melindres institucionais, e a farsa do outdoor, parte-se para a injusta desqualificação profissional do professor. Não sou contra demissões, ao contrário, desde que feitas com princípios, lisura, justa motivação. Incompetentes de fato não devem ser mantidos. Ou ainda, que seja, por motivo pessoal (o que é até aceitável), que este seja dito e não transvertido em “incompetência” do professor, quando esta pertença à instituição e seu representante.
Se, estamos hoje vivendo e praticando o pacto da mediocridade, da opressão, da dominação, da ignorância, da miséria, é, também, porque os sistemas, autorizados pelo governo, e seus componentes, responsáveis pela transformação social e humana a partir da educação, não estão de fato cumprindo cada um o seu papel. Mas, infelizmente, estão todos ganhando para isso. Quem perde? Eu, você, a sociedade, o país, diante da avalanche de futuros profissionais despreparados e com diploma debaixo do braço.
Vejo que, o professor tem sido considerado mero prestador de serviços para essas empresas com discursos de transparência, qualidade e profissionalismo, mas que na prática estão mais preocupadas é com a satisfação do cliente e com as fofocas do corredor. Mensagens não ditas verbalmente, mas comprovadas por atitudes.
O que não imaginava é que o pacto da hipocrisia atingia camadas mais extensas. E, que o pacto da mediocridade vai do aluno ao corpo docente, passando pela coordenação e direção, inclusive. Enquanto esse pacto não for rompido, o que resta é a frase de Marcos Gouvêa de Souza, especialista em marketing, publicidade e administração, “não existe empresa nota 10 com empregados nota 5”. E, depois, ainda perguntam por que a educação no Brasil não vai para frente.