EU SOU O OUTRO VOCÊ - Uma leitura de Nove Noites de Bernardo Carvalho

Eu sou o outro você!

Josiane Aline Geroldi

RESUMO:

O romance Nove Noites – 2002 de Bernardo Carvalho, nos transporta por um caminho incessante em busca do “Outro”. Este caminho é traçado a partir do momento que um jornalista (construído á semelhança de Bernardo Carvalho) lê em um artigo de jornal a notícia da morte de um antropólogo, e neste mesmo artigo encontra a referência ao suicídio de um outro antropólogo chamado Buell Quain. Após ler e pronunciar o nome, o narrador resolve investigar a vida deste “outro”, e inicia sua investigação pelas cartas deixadas pelo suicida e seus conhecidos, e através de entrevistas com pessoas que supostamente teriam se relacionado, e que teriam informações que pudessem revelar o motivo de sua morte. É a partir da vida do outro que o narrador consegue entender fatos ocorridos em sua vida. É este o grande jogo da literatura em NOVE NOITES: Vozes inventadas para dar sentido ao outro, que acabam construindo sentidos para nós mesmos: EU SOU O OUTRO VOCÊ! Este parece ser o grande trunfo da escrita, transportar o leitor através da imagem de um outro até a imagem de nós mesmos. Assim, a literatura é como o outro, enigmático e que pouco a pouco se desvenda diante do leitor.

O que poderia haver de tão fantástico e misterioso na vida de um antropólogo americano que na noite de 2 de abril de 1939 resolve suicidar-se entre os índios brasileiros “que o acompanhavam na sua ultima jornada de volta da aldeia para Carolina e que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. Que se cortou e se enforcou. Que deixou cartas impressionantes, mas que nada explicam?”(CARVALHO,2002,p.08) A resposta seria, a princípio, nada! Porém, ao ler a notícia em um artigo de jornal, quase sessenta e dois anos depois da morte do americano, um jornalista (o narrador que parece ser construído à semelhança do autor) sente-se arrebatado pelo desejo de desvendar a vida deste “outro”, provocado pela sonoridade e familiaridade que encontra no nome: Buell Quain - “Li várias vezes o mesmo parágrafo e repeti o nome em voz alta para me certificar de que não estava sonhando, até entender - ou confirmar, já não sei - que o tinha ouvido antes.” (p.13). A partir deste ponto, Nove noites livro de Bernardo Carvalho, nos transporta por um caminho incessante em busca do “Outro”. E este caminho coloca o leitor na fronteira entre a verdade e a ficção: “vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os mesmos sentidos que o trouxeram até aqui [...] a verdade está perdida entre todas as contradições e disparates (CARVALHO,2002, p.07). Este parece ser o percurso que o leitor precisa percorrer junto com os narradores de NOVE NOITES para desvendar o mistério da vida e da morte de Buell Quain.

Além de ser provocado pelo jogo entre a ficção e a realidade, ao leitor ainda cabe o desafio de unir as vozes do texto para construir um sentido à narrativa. Umas das vozes do livro

(a primeira que aparece) é a de Manuel Perna, um amigo do antropólogo Buell Quain no Brasil que vivia em Carolina, e que acaba se transformando em guardião das cartas escritas por Buell. Essa voz aparece grafada em itálico e dirige-se a um você que é esperado – pode-se dizer que a carta-testamento é escrita à espera do outro que é construído aí. A outra voz, caracterizada pela figura do narrador, investiga e tenta desvendar o mistério do outro – isto é, da vida e da morte do antropólogo Buell Quain. O livro começa com a voz de Manuel Perna e logo depois, entra em cena a voz do narrador e estas revezam-se até o final da narrativa.

Vale ressaltar a similitude apresentada entre estas duas vozes: ao mesmo tempo em que Manuel Perna nos apresenta um discurso que “revela” fatos acontecidos com o antropólogo (já que a fala dele é situada em 1944, isto é, cinco anos depois do suicídio), o jornalista nos fala dos mesmos acontecimentos só que de um outro ponto de vista e de um outro tempo, o presente (2001). Como diz Susana Scramim:

Os enredos no relato de Bernardo Carvalho não apenas se duplicam, também se dobram, e o encontro com o sentido é sempre adiado. A segunda história não desarticula a primeira, no lugar disso, duplica o seu problema num outro enredo para o qual igualmente não se encontra sentido. A lacuna de sentido que se constrói entre uma história e outra indica que a dobragem de sentido não ocorre mediante o desvendamento do mistério, ao contrário, opera com base no vazio deixado pelo sentido no espaço lacunar entre as duas histórias. Com isso, o problema do espaço na narrativa ganha outros contornos e estimula a presença de outros procedimentos no texto. Simultaneamente, espaço e tempo operam em uma mesma direção: criar efeitos de descontinuidade, com vistas a interromper o fluxo linear da linguagem.(Scramim,2007, p.149)

Assim, Manuel Perna parece ser o detentor do segredo, e o jornalista ,o leitor investigador destes mesmos fatos. Em suas investigações e pesquisas o jornalista conta apenas com a verdade das cartas. Cada carta trata de uma verdade particular, estes documentos se transformam em um meio de chegar até a imagem do “outro” e o desvendar. Como diz Manoel Perna: “todo mundo quer saber o que sabem os suicidas”(p.27).

O Enigma

Partindo desta simetria entre as vozes, podemos traçar um paralelo narrativo e entre os fatos perceber como o “outro” é abordado e como a sua verdade acaba sendo absorvida e conseqüentemente adiada pelas duas vozes através das cartas no decorrer da trama. “O outro” é ponto comum entre todos os personagens da narrativa. Podemos começar nos atendo ao personagem principal da narrativa de Nove noites: o antropólogo! Sendo a antropologia a ciência que estuda o “outro”, nesta obra, o antropólogo é que é observado e estudado. Para Manuel Perna, Quain, representava a salvação, o outro que vem para dar a mão a alguém que está em um nível inferior ao seu, mas, que, ao mesmo tempo que observa, também precisa de ajuda:

Ele me disse que ninguém pode imaginar a tristeza e o horror de ser tomado como salvação por quem prefere se entregar sem defesas ao primeiro que aparece, quem sabe um predador, a ter que continuar onde está.... ao contrário de você a única coisa que ainda me pergunto é sobre o momento em que ele entendeu que estava perdido, quando passou a sentir que alguém pudesse ver nele a salvação, o momento em que entendeu que tudo podia ser ainda muito pior e que havia gente abaixo dele na sua escala de aviltamento. Porque talvez seria esse o instante em que ele decidiu que desceria também, [...] que espécie de sofrimento o pôs em sintonia com um mundo pior que o seu? ( p.42)

Quando vem para o Brasil, para estudar os índios (o “outro” brasileiro), Buell Quain parece estar fugindo de sua própria identidade “ me parece que ele tinha encontrado um povo cuja cultura era a representação coletiva do desespero que ele próprio vivia como um traço de personalidade”(Idem, p.57). Ele vem buscar no outro aquilo que não parece claro para sua própria existência. E esta busca por uma identidade intensifica o enigma: sem saber quem está procurando, o narrador tenta desvendar ou construir a identidade de um outro, que, como nas tribos indígenas que o antropólogo percorria e que chamava de Nakoroka cada um poderia ser e assumir a identidade que quisesse:

Onde cada um decide o que quer ser, pode escolher sua irmã, seu primo, sua família, e também sua casta, seu lugar em relação aos outros uma sociedade muito rígida nas suas leis e nas suas regras, onde, no entanto, cabe aos indivíduos escolher os seus papéis. Uma aldeia onde a um estranho é impossível reconhecer os traços genealógicos, as famílias de sangue, já que os parentes são eletivos, assim como as identidades. (p.47)

Esta parece ser a postura adotada pelo antropólogo: ele procura assumir uma outra identidade, procura ser um “outro” enigmático. O leitor, juntamente com as vozes do texto, passa a desenvolver o papel do antropólogo, de conhecer e desvendar este outro que não quer ser revelado, mas que ao mesmo tempo, deseja incansavelmente desvendar a vida dos outros.

Se na antropologia o estudo do outro é abordado numa perspectiva acadêmica, em Nove noites, o outro ganha dimensão literária. É através do estudo do outro que Manuel Perna e o narrador ganham elementos para escrever. O narrador acaba juntando informações suficientes para escrever um romance e é justamente a imprecisão dos fatos, a busca pelo que está escondido, a variação de personalidade do outro que favorecem a criação do jogo leitor/obra. E instigam no leitor o desejo de desvendar o enigma de Buell Quain. Segundo Scramim, “há segredos a serem desvendados porque o que existe na narrativa está ali como paisagem repleta de elementos á disposição do desenvolvimento da ação”.(SCRAMIM, 2007, p.154)

À espera do outro – A carta

Nesta mesma direção podemos analisar a figura de Manuel Perna. Ele está a espera do “outro”, é o guardião das cartas e inicia sua narrativa dizendo “ Isso é para quando você vier” (p.07). Ele está a espera, e tem algo guardado para um “outro” (que parece ser cada um de nós). Neste sentido Manuel Perna nos fala de um “outro” indecifrável que seria Buell Quain, e ele é detentor de informações que seriam peças fundamentais para desvendar a personalidade do antropólogo. Mas, ao mesmo tempo em que revela a vida do outro, Manuel Perna espera um outro para revelar tudo que sabe a respeito. Esta espera se dá a partir da escrita de uma carta testamento, redigida para substituir uma outra carta.

Em todas as cartas escritas por Manuel Perna, podemos acompanhar o incansável convite a mergulhar no universo do outro; este convite que parece ser endereçado ao leitor, ao mesmo tempo que convida, nos previne, que o espaço do outro é algo flutuante entre a verdade e a ficção porque através das cartas não podemos ter certeza absoluta do outro que se apresenta aos olhos:

Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não tem mais os mesmos sentidos que o trouxeram até aqui[...] A verdade está perdida entre todas as contradições e disparates. Quando vier á procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará ás portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu. Á espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. (p.07)

Sendo assim, Manuel Perna e a literatura nos apresentam uma história que possui um terreno impalpável onde a espera e a busca são elementos fundamentais para desvendar o mistério.

Á procura do outro – O narrador

Os papéis estão espalhados no Brasil e nos Estados Unidos. Fiz algumas viagens, alguns contatos, e aos poucos fui montando um quebra-cabeça e criando a imagem de quem eu procurava, muita gente me ajudou. Nada dependeu de mim, mas de uma combinação de acasos e esforços que teve inicio no dia em que li, para meu espanto, o artigo da antropóloga no jornal.” (Idem p.14)

Se Buell Quain procurava nos índios brasileiros algo que lhe faltava, o narrador encontra na história do antropólogo uma maneira de relembrar a sua própria história,“ Ninguém nunca me perguntou e por isso nunca precisei responder que a representação do inferno, tal como a imagino, também fica, ou ficava, no Xingu da minha infância” ( p.60). É investigando o “outro”que o narrador aproxima-se de si mesmo. E ao mesmo tempo que o estuda, começa a realizar pesquisas com os mesmos índios que eram por ele estudados “Comecei a procurar sobre os Krahô pouco depois de ter lido pela primeira vez sobre o suicídio de Quain no artigo do jornal” (idem,2002, p.73).

Assim o narrador se vale das cartas deixadas pelo antropólogo para construir a imagem do outro. Podemos perceber que ele busca no antropólogo exatamente o que Buell Quain buscava nos índios: “aquilo que não parecia claro para sua própria existência”. E mergulha no universo de Quain para desvendar e entender o seu próprio universo. “Tinha de haver uma carta em que ele revelasse os seus desejos e sentimentos [...] eu não soube da existência dessa carta até me aconselharem a procurar uma professora de antropologia [...]” (p.27).

Todos os elementos que o narrador não consegue através das cartas, ele busca através das entrevistas com as pessoas que trabalharam, estudaram e conviveram com Buell Quain. A primeira a ser entrevistada é a antropóloga que escreveu o artigo de jornal falando sobre a morte do Antropólogo: “ trocamos alguns e-mails, que serviram como uma aproximação gradual[...] Supôs que eu quisesse escrever um romance, que meu interesse fosse literário, e eu não a contrariei. A história era realmente incrível.”(p.14) E é através das cartas e dos relatos, destes discursos privados que além de escrever um romance o narrador vai se descobrindo. Saber sobre Buell Quain se transforma num mecanismo para que ele possa saber sobre si mesmo. A narrativa parece propor que é através do olhar e da vida dos outros que podemos nos reconhecer como sujeitos.

São as cartas que encadeiam e revelam os fatos, a palavra “carta” dá peso ao mistério, nunca sabemos se o conteúdo de uma carta é verdadeiro ou fictício, “ vou lhe contar uma história cuja a veracidade talvez nunca se possa comprovar”( p. 34) Isso acontece por que não temos o contato direto com o interlocutor, não temos o olhar, temos apenas o documento. As cartas são portadoras de uma verdade individual. A memória e o segredo que elas contem “é também a única herança que se deixa aos que ficam como você e eu.” (p.07), ou seja, nunca saberemos se o conteúdo das cartas que o narrador encontrou são verdadeiros ou não.

O segredo, e o jogo com o leitor são feitos a partir das cartas, e por isso, por não termos certeza da veracidade dos fatos estamos mergulhados em um universo que oscila entre a verdade e a mentira. “A verdade esta perdida entre todas as contradições e disparates”.(p.07). Segundo Rancière “O próprio da literatura é a ausência de regra fixando uma dupla relação: a relação entre enunciador e seu enunciado, a relação entre enunciado e aquele que o recebe. É isto o que significa a aventura da letra sem corpo[...]”( RANCIÈRE,1995 p.38). Essa ambivalência é o que preside a presença da carta de Manoel Perna no livro Nove noites.

Outro fator relevante na narrativa é o discurso em 1º pessoa do narrador, que aproxima o leitor da investigação e ao mesmo tempo instala a dúvida perante a veracidade dos fatos, assim:

O relato na primeira pessoa é valorizado porque nele o narrador se mostra “fazendo de conta que está fazendo asserções”. Isto quer dizer, em suma, que o eu da narração nela instala um pai, um acompanhador que estabelece uma convenção e faz consistir os referentes do relato na esfera própria da narração. O narrador se auto-designa como diferente do autor, ao mesmo tempo em que anuncia a ficcionalidade dos personagens do relato. Para isto é preciso somente a escolha de um tipo de narração em primeira pessoa bem definido, o do narrador que se apresenta, apresenta seu mundo e conduz a ação. Mas será que a literatura não se afirma como tal onde essa posição ideal do narrador se desfaz: quando o “eu” ou o “ nós” que começa a narração logo abandona; quando o “eu” não se apresenta e nos deixa na indecisão quanto as partes do autor, do narrador e do personagem; quando ele conta até a história que ele não pôde; ou que já não pode mais contar. (RANCIÈRE,1995,p.39)

E como continua o Rancière, “ A literatura, de fato, começa onde essa “ realidade da ficção” é posta em questão”( Idem, p.40)

O outro e eu

“Atento ao que sou e vejo torno-me eles e não eu”

Fernando Pessoa

Manuel Perna espera, o narrador procura, e do encontro destas duas vidas uma terceira se forma: Buell Quain ganha forma e imagem para o leitor através da memória das vozes narrativas. As experiências vividas pelo antropólogo vão se transformando em elementos que são incorporados pelos narradores.

O que lhe marcou os olhos pra sempre, deixando-lhe aquela expressão que ele tentava disfarçar em vão e que eu aprendi quando chegou a Carolina na distração do seu cansaço, os olhos que traziam o que ele tinha visto pelo mundo, a morte de um ladrão a chibatadas numa cidade da Arábia, o terror de um menino operado pelo próprio pai [...] e eu imaginei.

(p.42)

Curiosa é a forma como, em NOVE NOITES, o outro torna-se, numa escala de prioridades, o elemento principal da vida dos personagens, tanto para o antropólogo, como posteriormente para os narradores. Não temos informações sobre estes, aparências físicas e psicológicas, todas as informações são descritas a partir da vida do outro, no caso, Buell Quain.

Se o outro é o centro – no caso do antropólogo - ao mesmo tempo em que este “outro” instiga o olhar, ele também provoca repulsa. Parece que o “outro” teria que continuar sempre a ser algo de distante, algo somente para ser observado: “ele estava cansado de observar, mas nada podia lhe causar maior repulsa do que ter que viver como os índios, comer a sua comida, participar da vida cotidiana e dos rituais, fingindo ser um deles. Tentava manter-se afastado e, num círculo vicioso, voltava a ser observador.” (p.55) Perceber a transformação em um “outro” era para Buell Quain um tormento. O encontro com outra cultura e a constante observação, vai se transformando em perseguição, o antropólogo passa a se sentir ameaçado, passa a se sentir observado, se sente como o outro que é alvo de seu olhar e assim procura: “ Um ponto de vista onde eu já não esteja no campo de visão” A memória, a lembrança de ter visto várias coisas, de se sentir sempre perseguido por tudo que já havia visto dos outros: “ Ás vezes me dava a impressão de que, a despeito de ter visto muitas coisas, não via o óbvio, e por isso acreditava que os outros também não o vissem, que pudesse se esconder.” (p.112) Talvez esta possa ser uma das explicações para o surpreendente suicídio. Seria a única maneira de sumir do campo de visão, de deixar de observar e ser observado. A vida do outro, se transforma em algo insuportável “ via a si mesmo como a um outro de quem tentava se livrar” (p. 112)

O antropólogo encontra no suicídio uma maneira de sumir de seu campo de visão e livrar-se do “outro imaginário” que o persegue, o jornalista encontra no Antropólogo uma maneira de dar sentido a sua vida. É sempre através do outro que em Nove noites, a narrativa se constrói.

Passar-se pelo outro

A construção do eu por um outro, também é um fato recorrente em NOVE NOITES. Parece que os personagens, e especialmente o narrador, precisam chegar até o outro para chegarem a sí próprios (para chegar até o outro é preciso também tornar-se outro), É o que ele faz para conseguir entrevistar o filho do fotógrafo americano que teria fotografado Buell Quaim: “ pensei em tocar e ficar mudo, nem que fosse só para ouvir a sua voz.[...] e foi quando me ocorreu inventar uma história qualquer, que tinha uma encomenda para lhe entregar, por exemplo. Precisava vê-lo, nem que para isso tivesse que fazê-lo descer.”(p.159). A busca pela verdade do antropólogo e por informações novas e surpreendentes que o levassem a um novo rumo em suas pesquisas, o fazem criar novas identidades, tanto na visita ao americano, quanto no asilo em que vai pedir informações para conseguir chegar até ele. O narrador inventa situações para estar nos lugares certos e conseguir informações com as pessoas certas. Ele diz também que pretende escrever um romance: “Supôs que eu quisesse escrever um romance, que meu interesse fosse literário, e eu não a contrariei. A história realmente era incrível. Aos poucos conforme me embrenhava naquele caso com as minhas perguntas, passou a achar natural a curiosidade que eu demonstrava pelo etnólogo suicida” (p.14). Ser um escritor interessado em escrever uma ficção lhe parecia a única razão para uma pessoa preocupar-se tanto com a morte de alguém de quem não era nem ao menos conhecido, e ainda mais, 62 anos depois do fato acontecido.

O próprio antropólogo nos revê-la este desejo de não ser o seu eu e ser um outro, quando tenta esconder de seus amigos sua real posição social, vivendo humildemente enquanto era possuidor de um alto poder aquisitivo: “Essa era uma marca dele, segundo se dizia, era muito rico. Era filho de médicos. Tinha muito dinheiro. Mas detestava usar dinheiro. Era uma obsessão. Essa preocupação de não deixar transparecer que tinha recursos, e de viver sempre em condições que escondessem a sua verdadeira condição.” (p.34). Ele era um, a procura de ser outro, e como os índios que conhecera, acreditava que poderia transformar sua identidade.

O outro e a literatura

Não podemos deixar de falar, da estreita relação existente com o ato da escrita, tanto através das cartas, quanto pela vontade do narrador de escrever um romance, sobre os fatos que foram compilados sobre o antropólogo. Durante toda obra de Bernardo Carvalho encontramos referências à literatura. Encontramos também o que poderia ser entendido como um meta-romance ( um romance escrito para falar da invenção de um outro romance). Toda a narrativa nos apresenta referências a obras e escritores da literatura. Já no inicio, encontramos a referência ao poeta Humberto de Campos: “ Os intelectuais são os que usam ternos brancos e gravatas e pertencem a uma sociedade literária. Me juntei a eles numa reunião para homenagear Humberto de Campos, grande poeta do Maranhão. Havia dez oradores: a vida do poeta em dez partes.”(p.30). Outro poeta citado em Nove Noites é Carlos Drummond de Andrade:

Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica o sentido dos versos á sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê. Num fim de semana na praia, durante uma noite de insônia, semanas depois de começar a investigar a morte de Quaim, e o mistério que a meu ver tinha ficado adormecido por sessenta e dois anos, abri ao acaso uma antologia do Drummond na pagina da “Elegia 1938”: “ trabalhas sem alegria para um mundo caduco, /onde as formas e as ações não enceram nenhum exemplo. / praticas laboriosamente os gestos universais, /sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. / [...] Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva. / aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattam” (p.114)

Parece que a narrativa busca na própria literatura elementos para contextualizar a veracidade dos fatos. Os personagens se aproximam de nós, por terem atitudes semelhantes ao nosso cotidiano. A escrita, a literatura e as cenas de leitura nos aproximam durante a leitura do romance dos fatos por ele narrados.

No mesmo sentido em que as cenas de leitura e as referências a literatura aparecem em Nove noites, também podemos identificar as cenas de escrita; o próprio antropólogo Buell Quain tinha a intenção de escrever um livro sobre os índios que estudava: “O livro que escreveria sobre eles seria uma forma de mantê-los vivos e a si mesmo.” (p.58) Assim a literatura seria a maneira de manter viva a história de alguém, e no caso do antropólogo: a ele próprio. A escrita seria o espólio de vida e de morte.

Podemos fazer também uma relação entre a figura de Manuel Perna e a literatura. A obra literária é sempre detentora de um enigma. A literatura nos coloca em contato com a vida do outro, assim como Manuel Perna nos possibilita conhecer parte da história deste outro. Mas, é somente a partir do gesto do narrador de escrever a história que podemos ter contato com ela. E talvez esta seja a cena de escrita mais representativa de Nove noites, justamente quando o narrador, depois de reunir todas as informações sobre a vida de Buell Quain, sente-se preparado para escrever o romance que contaria a história do antropólogo: “Tomei o Avião para Nova York com pelo menos uma certeza: a de que, não encontrando mais nada, poderia por fim começar a escrever o romance”(p.158)

A escrita das cartas, tanto de Manuel Perna, quanto das cartas escritas pelo narrador colocam em movimento o gesto, a cena, e o fazer literário.Neste contexto de escrita e leitura, podemos citar as cenas de leitura no hospital: “Lá pelas dez da manhã, um rapaz entrou no quarto, me deu bom-dia, cumprimentou o velho, puxou uma cadeira, sentou-se ao pé do leito, tirou um livro de uma sacola e começou a ler. [...] Logo reconheci as primeiras linhas de “O companheiro secreto” de Joseph Conrad, um dos meus contos preferidos na adolescência. [...]No dia seguinte, lá estava ele, pontualmente as dez. Abriu o mesmo livro e dessa vez começou a ler o prefácio de Lord Jim:” (p.143)

No hospital, os estudantes voluntários que liam para os doentes próximos da morte, lhes possibilitavam horas a mais de vida enquanto os transportavam para outro espaço através da leitura e da literatura.

É também no hospital que o enigma começa a ser revelado, o narrador se depara com o companheiro do quarto de seu pai:

“Ele não se mexia, mas, chegou a balbuciar algum som, como se quisesse dizer que estava bem, ou pelo menos foi assim que eu o entendi ou quis entender no início: “Well”. Quando fechei a cortina, no entanto, ouvi um nome às minhas costas. Ele me chamava por outro nome.[...]ele apertou a minha mão com a força que lhe restava e começou a falar em inglês, com esforço, mas ao mesmo tempo num tom de voz de quem está feliz e admirado de rever um amigo: “ Quem diria? Bill Cohen! Até que enfim! Rapaz, você não sabe há quanto tempo estou esperando [...] Eu sabia que você não estava morto.[...]. Mas foi só ao ler o artigo da antropóloga há oito meses, e ao repetir em voz alta aquela nome que eu não conhecia e ainda assim me parecia familiar: “Buell Quain, Buell Quain”,que de repente me lembrei de onde o tinha ouvido antes e, fazendo a devida correção ortográfica na minha cabeça, descobri de quem falava o velho americano no hospital, quem era a pessoa a que ele se referia e que havia esperado por tanto tempo.”(p.146)

Temos a impressão que o enigma se revela, mas, algo de mais surpreendente nos aborda: o narrador confessa ter inventado a voz de Manuel Perna. O narrador inventa um outro, para que de certa forma ele lhe auxilie no percurso da narrativa. Esta revelação aparece quando o narrador nos relata a morte de Manuel Perna: “Quem conta a história são os dois filhos mais velhos, que me garantiam que ele não deixou nenhum papel ou testamento, nenhuma palavra sobre Buell Quain.”(p.134). E mais adiante admite: “ Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a oitava carta.” Esta ultima carta que supostamente seria aquela escrita por Manuel Perna:

Desde então eu o esperei, seja você quem for. Sabia que viria em busca do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar e que por segurança, me desculpe, guardei comigo, desconfiado, já que não podia compreender o que ali estava escrito[...] guardei comigo esta única carta, para protegê-lo, e aos índios. Jurei que ninguém além de você poria os olhos nela. mandei-lhe um bilhete no lugar da carta, um bilhete cifrado, é verdade, em código que o professor Pessoa me ajudou a redigir em inglês. (p.12)

Se ele não deixou testamento algum, e a narrativa nos apresenta este testamento, ele só pode ser inventado, e este é o grande jogo da literatura em NOVE NOITES. Vozes inventadas para dar sentido ao outro, que acaba sendo nós mesmos: EU SOU O OUTRO VOCÊ! Este parece ser o grande trunfo da escrita, transportar o leitor através da imagem de um outro até a imagem de nós mesmos. Assim, a literatura é como o outro, enigmático e que pouco a pouco se desvenda diante do leitor. E instaura a possibilidade de conhecimento e reconhecimento de si na imagem do outro.

Referências

CARVALHO, Bernardo. Nove Noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

RANCIÈRE, Jacques, Políticas da escrita.; tradução de Raquel Ramalhete - Rio de Janeiro: Ed. 34,1995.

SCRAMIM, Suzana. Literatura do presente: história e anacronismo dos textos. Chapecó: Argos, 2007.

Obs: Este artigo fora escrito sob orientação do Profº Doutor Valdir Prigol, na Universidade Comunitária Regional de Chapecó - Grupo de

Pesquisa Leituras do presente, 2008.

Josiane Geroldi
Enviado por Josiane Geroldi em 21/02/2010
Reeditado em 21/02/2010
Código do texto: T2100372
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