A RECONSTRUÇÃO DO PASSADO EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM

A (RE) CONSTRUÇÃO DO PASSADO EM

“RELATO DE UM CERTO ORIENTE”, DE MILTON HATOUM

AUTOR: Lenilson Vidal de Souza

Resumo

Este artigo tem por objetivo primordial fazer uma leitura analítica e concisa do livro Relato de um certo oriente, do escritor Milton Hatoum. Essa leitura levará em conta, fundamentalmente, o fato do resgate do passado por meio da memória voluntária, isto é, não é o passado que vem de forma súbita ao indivíduo, mas sim este que vai de encontro a ele, utilizando-se para isto certos artifícios tais como odores, sons, etc. O romance apresenta uma narradora anônima que quer de toda forma resgatar o tempo perdido, a vida em família que já não existe mais, num intuito de dar sentido à sua vida presente.

“A vida começa verdadeiramente com a memória.”

(Milton Hatoum)

O romance Relato de um certo oriente, publicado em 1989, é o primeiro livro da carreira literária do escritor Milton Hatoum. Muito bem recebido pelos leitores e críticos especializados, a obra foi traduzida para muitas línguas e editada em países como Estados Unidos, Itália, Grécia, Portugal e Espanha, fazendo grande sucesso em todos eles.

Em Relato de um certo Oriente, uma mulher, após ter passado vinte anos fora, retorna à cidade onde viveu os anos de sua infância, e a partir daí todos os acontecimentos que se desenrolam após sua chegada, vão fazendo com que ela relembre e vá descobrindo histórias do seu passado e da família que a criou.

Essa mulher, que irá ser a narradora dos relatos, regressa à cidade de Manaus justamente na noite que precede a morte de sua mãe adotiva: Emile. Não tendo, portanto, oportunidade de ver a mãe pela última vez, a narradora decide resgatar a mesma por meio da memória, não apenas a sua, mas também a de outros personagens.

Foi doloroso não ter visto Emilie, aceitar com resignação a impossibilidade de um encontro, eu que adiei tantas vezes essa viagem, presa na armadilha do dia-a-dia, ao fim de cada ano pensando: já é tempo de ir vê-la, de saciar essa ânsia, de enfronhar-me com ela no fundo da rede.(HATOUM, 1989, p. 136).

Esse artigo, portanto, terá por objetivo principal falar acerca da importância da memória para a construção da narrativa de Relato de um certo oriente.

Tendo chegado à cidade onde passara a infância e tendo também sabido da morte da mulher que a acolhera e se tornara sua mãe adotiva, a narradora decide enviar uma carta ao irmão, que se encontra na Espanha, para lhe contar sobre a morte de Emilie. A partir daí começará a ser feito um relato, no qual há vários outros depoimentos, seja de membros da família ou de amigos próximos. Todos esses testemunhos irão proporcionar uma verdadeira e grande viagem à memória, que possibilitará o regresso aos tempos de infância e aos fatos que marcaram a vida em família.

Assim o faz a narradora, vasculhando, ativamente, presente e passado, como um repórter à procura de informações preciosas e, como um bom investigador, ela sai em busca de outras fontes, outras vozes que a conduzam por entre os labirintos de um espaço e de um tempo à primeira vista distantes. (FRANCISCO, 2007, p. 62).

Toda a narrativa de Relatos é composta de outros relatos, formando os chamados metarrelatos, que estão distribuídos em 8 capítulos, os quais se assemelham ou resgatam a forma oral do narrar, do contar, em que uma história é evocada no intuito de completar outras à medida que é um ou outro narrador quem detém a posse de certa informação que vai ajudar a esclarecer uma outra apontada anteriormente, ou outra que ainda virá. Fala-se, portanto, em narrativa de encaixe, uma vez em que se vão reunindo pequenos relatos para que o todo seja formado.

A busca empreendida pelo passado feita pela narradora anônima desse romance hatouniano, realiza-se, fundamentalmente, como uma busca voluntária, ou seja, uma busca intencional e desejada, em que as lembranças da vida em família não afloram de forma súbita e inesperada, mas sim através da vontade do sujeito de resgatar e relatar tudo o que se passou no tempo pretérito.

Desta forma, pode-se afirmar que toda a narração remonta ao passado por lances retrospectivos, pela voz de uma narradora que se quer é nomeada. Mas não se pode deixar de ressaltar que o tempo faz com que as lembranças sofram alterações, lacunas.

As histórias ou fragmentos de histórias de Relato de um certo Oriente são, quase sempre, narradas em meio a hesitações e titubeios, apreensões características do relembrar, lacunas que fazem do gesto rememorativo um gesto de antemão arruinado e que apontam para uma certa abertura essencial dessas histórias. Ao permitir que cada um dos narradores-personagens (re)conte trechos do seu passado, a narradora anônima permite também que cada uma dessas personagens introduza um conselho, relate um pequeno trecho de uma narrativa, apresente uma proposta de continuidade possível à sua história que se desenvolve no agora. (FRANCISCO, 2007, p. 54)

Para que o passado seja resgatado ao máximo possível, certos artifícios são usados para se tentar conseguir tal feito, seja um odor, ou uma voz, seja um lugar, seja uma música. Todos esses e mais outros serão os recursos utilizados como modos de recuperar a memória perdida.

Relato tenta mostrar que o refúgio da memória é a interioridade do sujeito, quase sempre reduzido e isolado em sua própria história, quase sempre incomunicável com outro mundo que não seja o dele próprio.

O romance é todo arquitetado de forma a fazer com que a casa que já foi desfeita seja resgatada, e por meio disso seja também resgatado tudo o que lá se passou, os acontecimentos mais marcantes, seja eles felizes ou não.

(...) é este o relato de uma volta à casa já desfeita, reconstruída pelo esforço ascético de um observador de olhar penetrante, mas pudoroso, que recorda e imagina. História de uma busca impossível, o romance é ainda uma vez aqui a aventura do conhecimento que empreende o espírito quando se acabam os caminhos. É aí que começam as viagens da memória. (FRANCISCO, 2007, p. 45).

De acordo com Francisco (2007) o romance Relato de um certo oriente pode ser entendido como uma verdadeira Odisséia sem deuses ou maravilhas mitológicas de uma pobre heroína desgarrada, cujo destino problemático tem seus fios no enredo de um romance, tramado pelas mãos de um escritor que estava iniciando sua carreira.

(...) prosa evocativa, traçada com raro senso plástico e pendor lírico: viagem encantatória por meandros de frases longas e límpidas, num ritmo de recorrências e remansos, de regresso à cidade ilhada pelo rio e a floresta amazônica, onde uma família de imigrantes libaneses, há muito ali radicada, vive seu drama de paixões contraditórias, de culpas e franjas de luto ao redor de mortes trágicas. A essa ilha familiar retorna a narrativa como a um ponto de recordações. (FRANCISCO, 2007, p. 61).

Em Relato de um certo Oriente as histórias falam das possibilidades e das dificuldades do trabalho com a memória, das tensões e dos sentimentos e sentidos diferentes das personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família na narrativa em questão, é um microcosmo onde todas estas tensões aparecem e são vividas .

A memória, a reconstituição de lembranças é o tema deste romance. A personagem protagonista de Relato de um certo Oriente consegue, por meio da rememoração de seu passado e com a ajuda das lembranças de outros, enriquecer sua vida, dar sentido e valor à sua origem.

Referências Bibliográficas

FRANCISCO, Denis Leandro. A ficção em ruínas: Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Lenilson Vidal
Enviado por Lenilson Vidal em 21/02/2010
Código do texto: T2099175