UMA LEITURA DE DOIS IRMÃOS: o passado revivido trinta anos depois

UMA LEITURA DE DOIS IRMÃOS

o passado revivido trinta anos depois

Autor: Lenilson Vidal de Souza

Resumo

Nael, o menino cuja infância foi marcada pelo signo da exclusão, é o narrador de Dois irmãos. Tentando, depois de adulto, encontrar um sentido para a própria vida, ele percorre, por meio das reminiscências, um passado cheio de acontecimentos um tanto traumáticos, mas que contém em si as supostas respostas para suas várias dúvidas. Voltando ao passado, Nael pretende constituir não somente a identidade do pai, que ele não sabia quem era, mas também a sua própria. Esta obra, portanto, é aqui analisada a partir da perspectiva de que toda a estruturação de seu enredo se dá por meio de lances da memória, num fluxo contínuo e veloz, onde os acontecimentos são apresentados à medida que vem à mente do narrador.

Palavras-chave: Família, memória, identidade.

1.Introdução

O romance Dois irmãos1, publicado no ano 2000, tem como cerne de seu enredo as relações de identidade e diferença numa família em crise. Essa família, de origem libanesa, têm como membros o patriarca Halim, a matriarca Zana, a filha Rânia e os gêmeos Omar e Yaqub. Além deles, há os agregados Domingas, a cunhatã dedicada, e seu filho, o mestiço Nael. Aliás, é por meio do ponto de vista de Nael que todos os fatos são apresentados ao leitor.

O menino que teve a infância relegada à condição de filho de uma empregada, “que morava no quartinho dos fundos”2, conta muitos anos depois os acontecimentos que testemunhou calado, durante o tempo em que viveu junto da família. E é por meio dos lances restropectivos da sua memória que o leitor entra em contato com a história de ódio dos gêmeos Omar e Yaqub. Iguais na aparência, mas diferentes em seus interiores, estes dois irmãos travam uma disputa férrea pela posição de filho preferido da casa.

Ao eleger como temas centrais de sua obra a memória, a identidade, a rivalidade entre irmãos e os demais conflitos que ocorrem no dia-a-dia de uma família, com seus segredos e comportamentos, Hatoum procurou fazer deste um grande enredo.

Com base nas informações acima, se fará neste artigo uma abordagem dos pontos mais relevantes do livro Dois irmãos, de Milton Hatoum, pondo sempre como referência principal a memória do narrador-personagem Nael.

2.O desmoronamento familiar

Lendo as obras hatounianas, percebe-se que o clã familiar, com seus conflitos e desencontros, é tema recorrente. Isso ocorre, segundo o próprio autor, porque a família é uma representação (mesmo que micro) da sociedade. Os dramas, os sentimentos e as crises vividas por estas famílias são um verdadeiro tratado sobre o desmoronamento das relações familiares.

Dois irmãos retrata um período que vai dos anos vinte até a década de sessenta, em uma cidade que vai se industrializando, modernizando social e tecnologicamente, ao passo em que a família vai se desfacelando, num processo contínuo de decadência, sem um caminho de retorno, tal qual é impossível deter o progresso que toma conta de Manaus.

Valendo-se de uma das paisagens mais exotizadas do país – a Amazônia – Hatoum, constrói um romance sobre a ruína de uma estrutura familiar patriarcal que ocorre sobre as ruínas de uma Manaus antes exuberante, mas agora vítima da dura face do espólio do ciclo da borracha e do pólo de importações. (NUNES, 2007, p. 5).

Esse jogo de contradições se mostra uma boa forma de relatar os conflitos de uma família em crise. Conflitos esses que são narrados por um narrador-testemunha, que aliás, está mesmo é à procura da identidade de seu pai. Dessa forma, ele apresenta ao leitor, sem titubear, ainda que sob o viés comprometido do seu olhar, os personagens de tal drama.

Apesar de serem gêmeos, os irmãos tiveram tratamentos diferenciados. Enquanto o 'caçula' Omar era envolvido numa teia de mimos tecida pela mãe, Yaqub era excluído da família.

Omar, o gêmeo mimado, levava uma vida desmesurada, cheia de prazeres e irresponsabilidades, e se mostrava capaz de cometer as maiores atrocidades, devido ao egoísmo e ao ciúme que nutria por Yaqub. Este, por sua vez, apresentava características totalmente contrárias às do irmão. Introvertido e passivo, relegado pela mãe por não ter nascido “tão necessitado de cuidados”3 quanto seu irmão, o 'primogênito' foi enviado para uma cidade nos confins do Líbano, para que as desavenças acabasse entre ele e Omar. Mas após anos vivendo em uma terra que não era a sua, Yaqub retorna e se mostra o único a alçar vôos tão altos quanto o progresso que se instala na cidade amazonense.

Depois da (re) adaptação à terra natal, é dada a Yaqub a possiblidade de se ver livre da família e seguir para São Paulo, tentando, assim, se desamarrar dos laços de ódio que o prendiam ao irmão.

Em outro pólo está Rânia, solteira por convicção, dá sinais de que o homem ideal para a sua vida seria aquele que fosse um híbrido dos irmãos, apresentando uma relação estranha e até mesmo incestuosa com eles. Rânia pode ser comparada a uma das personagens de Machado de Assis, a Flora de Esaú e Jacó4. Porém, na obra hatouniana, Rânia não é o objeto de disputa entre os dois irmãos, como Flora é no livro machadiano. É só que, da mesma forma que Flora, Rânia por vezes parece ter devaneios de que os gêmeos possam se fundir em um único ser, aquele que seria 'perfeito' para a concretização de seus desejos.

Outra personagem é a empregada Domingas, mulher cabloca, que não pôde fazer escolhas na vida, vivendo sempre como uma agregada da família.

O universo familiar de Dois Irmãos vai se desintegrando e, como é próprio dos desmoronamentos, a partir de um momento vê-se que tudo aquilo é inevitável. A grande derrocada se dá com a venda da casa em que vivia a família.

3.A memória como forma de configurar a identidade

Aparentemente, a narrativa de Dois irmãos se centra exclusivamente na rivalidade entre os gêmeos Yaqub e Omar, mas com o desenrolar dos acontecimentos, mostra-se como uma história um tanto complexa.

Na verdade, os fatos narrados são uma tentativa desenfreada do já adulto Nael descobrir a sua verdadeira origem, fato este que o atormentou a vida inteira. Nael quer descobrir a identidade de seu pai, que está entre os gêmeos. Durante toda a narrativa somos expostos, mesmo que indiretamente, a fatos que nos induzem a ter certas suposições, mas nenhuma conclusão. A cabocla Domingas nutria uma paixão por Yaqub, mas num certo dia fora abusada pelo inconsequente Omar, que chegara bêbado em casa e se dirigira até o seu quarto. Esta, por sua vez, não se sabe se por medo ou covardia, privou seu filho da certeza de suas origens, ficando Nael sempre à procura de respostas para suas várias dúvidas.

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvidas, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela. (HATOUM, 2006, p. 54, grifo pessoal).

A questão da busca por uma identidade é o tema central deste romance de Milton Hatoum. “Mais do que tentar descobrir quem é seu pai, Nael busca descobrir-se, encontrar seu lugar no mundo”. (SPALDING, 2009, on line). E a estratégia para (re) construir essa identidade é a memória.

Pela memória o ser humano se configura como um ser passível de constituir o mundo, ou melhor, mundos, na medida que é pela memória que se estabelece a possibidade da vigência da unidade. A memória é um modo privilegiado de consolidação de toda a possibidade de relacionamento entre o que foi e o que é. (CASTRO, 1997, p. 149).

A memória permite a relação do presente com o passado, e reviver o passado significa para o personagem-narrador de Dois irmãos uma maneira de configurar a própria identidade, dando, assim, sentido a uma existência até então marcada pelo vazio e pelas incertezas.

História de um regresso à vida em família e ao mais íntimo, no fundo é uma complexa viagem da memória a uma ilha do passado, onde o destino do indivíduo se enlaça ao do grupo familiar na busca de si mesmo e do outro. (LEVINO, 2009, on line).

Toda a narrativa estrutura-se por meio de reminiscências, de manchas de recordação que afloram da memória do narrador-personagem Nael.

Num jogo de interditos e incertezas, tentando juntar os cacos dispersos de um passado já distante, Nael se empenha em descobrir a verdade sobre suas origens, mas só decide fazer isso quando praticamente todos já morreram.

Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio. (HATOUM, 2006, p. 67).

A necessidade em desenterrar o passado para se tentar compreender os porquês de uma existência, possibilita ao narrador a transformar os estilhaços da memória em palavras

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras. (HATOUM, 2006, p. 183).

O livro Dois irmãos é um relato, onde por meio da massa de recordações de um observador, que se fez presente em tudo o que se passou ali, há a reconstrução da casa já desfeita e da família destruída.

[...] o fluxo dessa prosa da memória prenhe de lirismo melancólico, capaz de restituir a poética do espaço de cada canto da casa, de cada pedaço arruinado da bela Manaus amada, a singularidade de cada paisagem humana. (HARDMAN, 2000, p. 8-9).

4.Considerações finais

Dois irmãos debruça-se sobre um tema um tanto comum, que é o conflito familiar, mas o modo como esse conflito é desenvolvido por Hatoum faz deste um grande livro. Toda a narrativa, no fim das contas, é uma verdadeira odisséia da memória, uma última tentativa de Nael encontrar respostas acerca das inúmeras dúvidas sobre sua verdadeira origem.

O romance mostra que o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido e isolado em sua própria história.

O narrador de Dois irmãos é um agregado de uma família de ascendência árabe-libanesa, e filho de uma cunhatã. Por sua condição de testemunha ocular é o único capaz de olhar para o passado e reconstruir, por meio de suas lembranças, todo aquele conflito. Sendo assim, ele resgata também lembraças acerca de sua mãe, Domingas, que esconde dele a verdadeira identidade do pai, que pode ser tanto Yaqub como Omar. Outra que sofre entre os gêmeos é Rânia, numa relação um tanto incestuosa, que a faz pensar que o homem ideal seria aquele que fosse um híbrido dos irmãos. Halim e Zana, cada um ligado mais a um filho têm seu destinos ainda mais marcados pelo conflito fraternal.

Com a passagem do tempo a memória é desfocada, mas com a ajuda da imaginação ela é recuperada. Segundo o próprio Hatoum (2003, p. 21) “[...] quando acabam todos os caminhos, começam as viagens da memória.”

Referências bibliográficas

CASTRO, Antônio Jardim. Os caminhos da memória. In: ______. Música: vigência do pensar poético. 1997. Tese (Doutorado em Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

HARDMAN, Francisco Foot. Morrer em Manaus: os avatares da memória em Milton Hatoum. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n° 141, p. 5-16, abr. - jun. 2000.

HATOUM, Milton. Treze perguntas para Milton Hatoum. Magma / Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. FFLCH/USP. São Paulo: Editora da USP, 2003.

______. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

LEÃO, Ademar. Dois irmãos: um romance às margens do negro. 2005. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade federal de Santa Maria, Rio Grande do sul.

LEVINO, Rodrigo. Dois irmãos em pauta. Artigo disponível em: <http://www.nominuto.com>. Acesso em: 10 abr. 2009.

NUNES, Anderson Luís. Poéticas de transição: formação, sistema e nação na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Ed. USP, 2007.

SPALDING, Marcelo. Dois irmãos no vestibular. Disponível em: <http://www. google.com>. Acesso em: 11 abr. 2009.

Lenilson Vidal
Enviado por Lenilson Vidal em 20/02/2010
Código do texto: T2097674