RAÍZES DA VIOLÊNCIA BRASILEIRA

No ensino da história do Brasil, geralmente, se canta louvores aos bandeirantes e pioneiros, que tão valentemente dilataram as fronteiras de nossa pátria para além dos limites do Tratado de Tordesilhas. Nos livros históricos tradicinais, poucas referências os autores fazem às barbáries cometidas por estes "heróis" nacionais. Devido a esta memória reprimida, muita "gente-de-bem" se escandaliza hoje diante das múltiplas violências que estarrecem o nosso dia-a-dia. Os massacres, sequestros, homicídios e barbáries de hoje não são gratuitos. Fazem parte de nossa história. Anchieta, Vieira, e muitos outros do período colonial, em alusões dramáticas, denunciam o genocídio do povo indígena. A história nos conta também que já os primeiros governos gerais decretaram "guerra justa" ao indígena. Mas não consta que a política colonial alguma vez tenha decretado o fim desta guerra, firmando um tratado de paz com os indígenas. Será que os massacres continuados de toda ordem, pelo Brasil a fora, não são simplesmente a continuidade caótica desta escandalosa "guerra justa", nunca encerrada?

Para exemplificar as barbáries do período colonial, apenas gostaria de mencionar algumas impressões deixadas por M. Muratori em seu livro "Relation des missions du Paraguai", originalmente publicado em italiano, mas traduzido para o francês em 1754.

Segundo os relatos de Muratori, em São Paulo admitia-se indistintamente o rebotalho de todas as nações. A Vila transformou-se, assim, em asilo e valhacouto de todos os criminosos portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, italianos que fugiam dos merecidos suplícios por seus crimes na Europa, ou que queriam viver impunemente uma vida dissoluta por aqui. Os habitantes desta Vila de São Paulo, que não tinham mulheres europeias, as tomavam (sequestravam) dos índios. Sempre segundo Muratori, os filhos nascidos destas uniões chegaram a um grau tão baixo de valores morais que as vilas vizinhas julgavam perder sua reputação se continuassem em comunicação com os moradores de São Paulo. Depois que os mamelucos de São Paulo se conseguiram subtrair à autoridade do vice-rei do Brasil, formaram uma espécie de brigada, digna das nações mais bárbaras. Anualmente invadiam as terras indígenas, e transformavam os índios em escravos. Depois de terem despovoado as regiões vizinhas, jogaram-se sobre as mais distantes.

No relato de Muratori, as brigadas (bandeiras!) dos mamelucos destruíram 14 reduções cristãs de indígenas. E num espaço de 130 anos escravizaram mais de dois milhões de índios. A maior parte deles morreu de miséria antes de chegar a São Paulo. E grande parte dos que chegaram morreu depois nos trabalhos excessivos nas minas e nas plantações. Num documento autêntico, segundo Muratori, dos 300 mil índios aprisionados pelos mamelucos em apenas cinco anos, sobreviveram somente cerca de 20 mil.

Continua Muratori narrando como, muitas vezes, se apelou para a piedade dos reis de Portugal. E os reis emitiram diversos editos contra as barbáries dos mamemlucos, mas que praticamente permaneceram sem efeito. Faltaram as medidas concretas para desbaratar este asilo de todos os crimes. A impunidade alimentava mais crimes.

Ao hoje lamentarmos a barbárie da violência brasileira não nos lembramos devidamente das atrocidades do período colonial. Milhões de índios mortos e escravizados barbaramente. Milhões de negros sequestrados nas costas africanas, e trazidos acorrentados para o Brasil, nos porões infestos dos navios negreiros. A chaga social e histórica que toda esta desumanidade criou em terras brasileiras ainda não está sarada. E grande parte da violência que nos rodeia hoje é o pus desta ferida que explode.

Quais seriam os remédios? Certamente, o resgate da dívida social e humanitária. Primeiramente é preciso assumir a história escabrosa da formação de nossa pátria, com todo realismo, e dar continuidade a um verdadeiro processo civilizatório. Não basta que o presidente, ministros, alguns políticos e parte da sociedade se declarem indignados, e proponham leis draconianas contra o crime. Isto já os reis de Portugal propunham em seus editos. Para não perdermos mais 500 anos com práticas de violências desumanas, é preciso proporcionar oportunidades de vida digna para todos os cidadãos, com distribuição de renda mais justa, salários adequados, política agrária que fixe o homem ao campo, educação para todos... Enfim, que se cultive no Brasil, e a política induza os cidadãos a isto, uma consciência humanitária, que busque efetivamente a dignidade, o respeito e a cidadania para todos os brasileiros. Que se iniba o ciclo da corrupção, especialmente nas elites políticas deste país; que se pratique uma verdadeira democracia de igualdade de todos perante a Lei e a Justiça.

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