Pensando sobre "Realidade", a "Linguagem", e o cerne abstrato da natureza.
Pensando sobre "Realidade", a "Linguagem", e o cerne abstrato da natureza.
Vejamos, entre tantos possíveis, três modelos para a transferência dos elétrons de um ponto A (de um nível de energia A) para um ponto B (para um nível de energia B). O princípio da incerteza de Heisenberg nos impede de pensarmos em um simples deslocamento, bem definido, pelo tecido do espaço-tempo. É impossível sabermos com precisão a trajetória do elétron, sem tornarmos completamente incerta a sua velocidade.
Uma trajetória tão bem conhecida implica em uma indeterminação total quanto ao momentum do elétron. Além disto, tal esquema, não leva em conta a dualidade onda-partícula, pois ao traçar uma trajetória definida, considera apenas o caráter corpuscular eletrônico. Entretanto, o caráter ondulatório da matéria considera que, entre as duas posições, há toda uma região de probabilidades, onde podemos encontrar o elétron, pois a onda eletrônica se espalha entre A e B. Então, o que ocorre entre os pontos A e B?
Os Três modelos que veremos, são tentativas de resolver este impasse, ou, em outras palavras são modelos de descrição do que ocorre entre os pontos A e B.
O Primeiro modelo que apresentaremos brevemente é o de Richard Feynman, segundo o qual, entre A e B, os elétrons percorrem todas as trajetórias possíveis. Não é o caso que podem percorrer uma dentre tantas trajetórias prováveis, mas que de fato percorrem todas, ou seja; todas as trajetórias são igualmente reais, como enfatiza Stephen Hawking:
"Neste enfoque, não se parte da premissa que a partícula tem uma única história ou caminho no espaço-tempo, como ocorreria na teoria clássica não quântica. Pelo contrário, supõe-se que ela vá do ponto A ao ponto B por todos os caminhos possíveis. (...) A probabilidade da partícula ir de A a B é encontrada pela adição das ondas de todos os caminhos que conectam A e B." (Stephen Hawking e Leonard Mlodinow – Uma Nova historia do tempo – Rio de Janeiro, 2005 –pg. 103,104).
"Feynman desafiou o pressuposto clássico básico de que a partícula possui uma historia particular. Em vez disso, ele propôs que as partículas se deslocassem de um local para o outro ao longo de todas as trajetórias possíveis no espaço-tempo (...) Contudo, no dia-a-dia, parece-nos que os objetos seguem uma única trajetória entre sua origem e seu destino final. Isso está de acordo com a idéia das historias múltiplas de Feynman, porque para objetos grandes, sua regra de atribuir números a cada trajetória, assegura que todas as trajetórias, exceto uma, anulam-se quando suas contribuições se combinam". (Stephen Hawking – O Universo numa casca de noz – São Paulo, 2001 – pg. 83).
Cada trajetória é uma onda. Quando duas cristas se encontram ( duas ondas na mesma fase) essas ondas se reforçam, gerando uma única onda que é a soma das duas ondas iniciais. Quando uma crista e um vale se encontram (duas ondas em fases diferentes) elas se extinguem reciprocamente.No modelo de Feynman, todas as trajetórias são reais e de fato percorridas, mas como a grande maioria das trajetórias é percorrida por ondas em fases muito diferentes, a maior parte delas anula-se mutuamente. As trajetórias que sobram, correspondem às órbitas estacionárias permitidas no modelo atômico de Bohr. (Hawking 2005).
Temos aqui um problema sério de compreensão e linguagem: Como uma partícula se ramifica, não em uma, mas em incontáveis ondas, que percorrem todas as trajetórias possíveis entre dois pontos? Qual o sentido de unidade para uma partícula quântica? Como a unidade da partícula, durante os dois pontos, se transforma em multiplicidade de ondas? Se os conceitos de unidade e multiplicidade não podem ser precisamente empregados aos fenômenos quânticos, então toda vez que dizemos "a" partícula, estamos elaborando um enunciado impreciso. Se o modelo de Feynman está correto, então a trajetória múltipla das partículas é o limite daprecisão de nossa linguagem, a partir daí, qualquer tentativa de descrever os fenômenos da natureza por meio de enunciados precisos, rigorosos, sem ambigüidades, será em vão, pois se dizemos "a" partícula, enunciamos a unidade do que é múltiplo, e quando dizemos "as" trajetórias, enunciamos a multiplicidade do que é uno. A confusão vem do fato de que, no nível quântico, tanto a idéia de multiplicidade absoluta quanto a de unidade absoluta não fazem sentido. Nosso espanto vem do fato de que não encontramos paralelos disto no mundo clássico em que vivemos. Quando quero ir de um ponto ao outro, percorro um único caminho, e não os dez, ou "dez mil" caminhos possíveis, ora, isto acontece porque, enquanto objeto macro-espacial, meu corpo é uma unidade e não uma multiplicidade. Nas escalas clássicas, portanto, a fronteira entre unidade e multiplicidade é bem clara, e os objetos não oscilam de um lado para o outro. Como enunciar com exatidão o mundo quântico? "A" ou "As"? O problemada identidade é bem mais sério, é um problema ontológico, existencial: O que existe, deve ser igual a si mesmo, ora, assim como não existe um "animal-vegetal", um "homem-não-homem", um "círculo-quadrado", não existe algo como um "um-dois", "um-muitos", uma "unidade múltipla", ou seja, quando olhamos para o vaso em cima da mesa, dizemos "o" vaso e "a" mesa, e apesar de sabermos que existem bilhões de outros vasos e mesas, sabemos que cada qual é um único objeto particular, com existência própria, eque todos os vasos e mesas possíveis não são o mesmo vaso e mesa que vemos. Logo, o que é, é igual somente a si, e é somente si. Assim pensamos por séculos, mas a unidade da partícula nos instantes A e B não é, a rigor, nada igual à multiplicidade das ondas, cuja totalidade é a partícula, durante a passagem da mesma, de A para B. Novamente, se o modelo de Feynman estiver correto, então temos vários e contundentes problemas de linguagem, que nos deixam com a idéia de que a precisão lógica da linguagem termina onde o fervilhar misterioso do mundo quântico começa.
Haverá um modelo quântico de descrição da passagem eletrônica entre duas regiões, que nos deixe livre de tais ambigüidades em termos de linguagem?
Penso que o modelo mais conservador e aceito seja o seguinte: Tanto pelo princípio de incerteza quanto pelo caráter estatístico da mecânica quântica, não faz sentido falar de uma trajetória específica e precisa, mas sim de uma gama de trajetórias prováveis dentro de uma determinada região, que é a função de onda de uma partícula.
"Uma medida exata da posição de um elétron, por exemplo, supõe uma perturbação tal de sua velocidade que torna impossível conhecer o seu valor. O mesmo sucede com a posição quando o que se mede é a velocidade. Daíse segue a impossibilidade de se falar de trajetórias: uma trajetória significa o conhecimento simultâneo da posição de uma partícula, a cada instante, e da velocidade correspondente a cada posição.(...) O estado de uma partícula ou de um sistema subatômico é descrito mediante a chamada função de onda que obedece à equação de Schrödinger.(...) A informação contida na função de onda é de caráter estatístico; para cada nível de energia, a única coisa que se pode medir é a probabilidade de que os elétrons estejam em uma determinada posição." (Amadeo Montoto – Biblioteca Salvat de grandes temas – Os Átomos – Rio de Janeiro, 1979 – pg. 96-99).
Sendo assim, o mundo quântico impõe limites, não só à coerência de nossos enunciados, mas às possibilidades do nosso conhecimento. Se o princípio da incerteza, além de um princípio físico (que descreve como a natureza é) é também um princípio epistemológico (que descreve e demarca os limites do nosso conhecimento) desta forma, então, novamente o mundo quântico se revela a fronteira além da qual nossa linguagem se torna imprecisa, cheia de ambigüidades. Ora, isto acontece porque Linguagem e Razão são indissociáveis, e uma vez que não podemos racionalizar com absoluta precisão os fenômenos quânticos, naturalmente não poderemos enunciá-los com exatidão. Não podemos saber determinadas coisas, logo, não as podemos descrever, a não ser de um modo vago, tão impreciso quanto nosso conhecimento. Se não podemos saber exatamente o estado de um elétron, o máximo que podemos falar sobre ele, é que é provável que se encontre dentro de uma região, e dentro da própria região, é mais provável que se localize em algumas áreas e menos em outras, mas não podemos ter certeza quanto a posição e a velocidade exatas.
Estes dois modelos que apresentamos acarretam em vermos as limitações da linguagem. Será diferente o terceiro modelo que nos propusemos analisar?
O modelo atômico pioneiro da física contemporânea é o de Niels Bohr. Segundo ele, deveríamos considerar a possibilidade de haver órbitas estacionárias concêntricas ao redor do núcleo atômico.Enquanto permanecem nestas órbitas, segundo Bohr, os elétrons não emitem luz. Os elétrons só emitem luz e liberam energia quando saltam de uma órbita para outra ao redor do núcleo, sempre de uma órbita mais afastada para outra mais próxima do núcleo, mas nunca caindo no núcleo. Assim, quando saltam, os elétrons liberam energia, emitindo luz na forma de fótons. Tal modelo foi muito bem sucedido em explicar a estrutura do átomo de hidrogênio, que é o mais simples (o núcleo formado por um próton, com um elétron descrevendo uma órbita em torno do mesmo), mas não foi suficiente para dar conta de descrever os átomos mais complexos.
Contudo, tal modelo é como uma base, um alicerce, ponto, a partir do qual, refinando cada vez mais tal compreensão, toda a mecânica quântica desenvolveu seu empreendimento.
De acordo com o modelo de Bohr, o elétron nunca poderá ocupar um espaço intermediário entre duas órbitas, mesmo durante o salto quântico. Uma da interpretações deste modelo é o de que o elétron se transfere instantaneamente de uma para outra órbita. Ele desaparece em uma órbita e reaparece em outra, dando um salto descontínuo.
Aqui temos um golpe violento na física clássica. Se ela postulava que todos os fenômenos ocorrem no espaço tempo, então a transferência de um elétron, de uma órbita para outra, deveria ser um deslocamento de um corpo entre duas posições no espaço, e tal deslocamento deveria demorar um determinado tempo, mas precisamente o tempo de deslocamento de um corpo, viajando numa velocidade inferior à da luz, cobrindo a distância entre as duas órbitas. Entretanto, os elétrons desaparecem em uma órbita e reaparecem descontinuamente em outra, como se viajassem em uma realidade além (ou fora) do espaço tempo. Vejamos a posição do físico Amiti Goswami, doutor em física pela Universidade de Calcutá, pesquisador e professor titular, por trinta anos, da Universidade do Oregon:
"O elétron segundo Bohr, jamais pode ocupar qualquer posição entre as órbitas. Dessa maneira, quando salta, deve de alguma forma, transferir-se diretamente para a outra órbita. (...) o elétron dá o salto sem jamais passar pelo espaço entre eles* (*Nota do Autor: Entre as duas posições.)(...)Em vez disso, parece que desaparece em um degrau e reaparece no outro – de forma inteiramente descontínua." (Amiti Goswami, Richard E.Reed, Maggie Goswami – O Universo Autoconsciente – São Paulo, 2007 – pg. 48).
Como veremos mais à frente, o modelo de salto descontínuo revela-se muito problemático para a linguagem. Entretanto, mesmo se não for descontínuo, o salto em si, traz diversos problemas, e por isso mesmo, é matéria de muitas interpretações, e algumas confusões.
"Uma partícula muda de órbita dentro do átomo, cruzando regiões em que o espaço nem poderia existir. Esse paradoxo da Mecânica Quântica passa pela prova da experiência com instrumentos cada vez mais precisos. A Mecânica Quântica tornou-se famosa por suas idéias heterodoxas, mas poucas causaram tanta confusão, historicamente, como o conceito de salto quântico." (Gerd Leuchs- O Incrível salto do elétron – Super Interessante, Brasil, 1990).
Contudo, muito do que parece fantástico no salto quântico, é estatisticamente possível (embora a probabilidade de ocorrência seja extremamente baixa). Graduado em Harvard, com doutorado em Berkeley, e professor do City College of New York Universty, Michio Kaku discorre sobre o tema em seu livro "Hiperespaço":
"Há uma probabilidade finita de que partículas possam cavar túneis através de barreiras impenetráveis ou dar saltos quânticos. O tunelamento, ou saltos quânticos através de barreiras, sobreviveu a todos os desafios experimentais. Isso significa também que há uma probabilidade finita, calculável, de que eventos impossíveis ocorram. Por exemplo, posso calcular a possibilidade de eu vir desaparecer e abrir um túnel através da terra e reaparecer no Havaí". (Michio Kaku – Hiperespaço – Rio de Janeiro, 2000 – pg. 136,137).
Todavia, a massa do corpo humano, ou de qualquer outro objeto macroscópico, (como a décima parte de um grau de sal, ou um vírus, por exemplo) é uma massa de valor tão elevado, que embora tais objetos tenham suas funções de onda, e estejam sujeitos ao fenômeno quântico do tunelamento, a probabilidade de que ocorra é tão exageradamente pequena, que essa é uma possibilidade apenas matemática(com probabilidade superior à zero) mas é uma possibilidade física insignificante.
Muitos postulam que está implícito, e até explicito, na obra de Bohr, que o salto quântico, além de ser descontínuo(passagem de um ponto ao outro sem atravessar a distância que os separa) é também instantâneo(tal passagem não demoraria tempo algum, o que contraria a relatividade, que prevê que não há nada que possa se mover, ou ocorrer, numa velocidade superior à velocidade da luz). Gerd Leuchs, pesquisador do Max Planck Institute, tenta expor as razoes pelas quais se acredita que um salto instantâneo é impossível. Abaixo ele trata do conceito de salto quântico:
"Criado pelo dinamarquês Niels Bohr, em 1913, sustenta que dentro de um átomo existem regiões proibidas - onde os elétrons não podem permanecer e, segundo algumas interpretações, nem mesmo atravessar. Os territórios proibidos pareciam simplesmente não existir, criando grande desconforto intelectual para os físicos da época. O paradoxo persiste, mas as revolucionárias descobertas tecnológicas das últimas décadas abriram uma nova perspectiva de pesquisa, pois com a sua ajuda tornou-se possível observar um único átomo no insondável momento em que um elétron realiza o salto quântico. (...) Por meio das novas experiências, os físicos procuram eliminar as dúvidas que no passado atormentaram os próprios criadores da Mecânica Quântica. Uma delas perguntava quanto tempo um elétron leva para dar o salto quântico - se ele não atravessa espaço algum, não deveria gastar tempo algum. Parece lógico, mas uma coisa não assegura a outra. O fato é que há uma demora, como se pode verificar observando a emissão de luz pelo elétron toda vez que este dá um salto quântico. (...) Como esse tempo não é zero, parece claro que o salto quântico não é instantâneo" (Gerd Leuchs- O Incrível salto do elétron – Super Interessante, Brasil, 1990)
Entretanto, no mesmo artigo, Leuchs nos informa que recentes experimentos (1990) sugeriram fortemente que o salto quântico em si, realmente não demoraria tempo algum para realizar-se. Nós é que não poderíamos observá-lo instantaneamente, uma vez que somente podemos observar captando o fóton emitido pelo elétron durante o salto, de modo que haveria sempre um lapso de tempo entre o salto e nossa observação, pois o fóton emitido, viajando na velocidade da luz, demoraria sempre alguns instantes para nos trazer a informação de que houve o salto. A luz percorre 1 metro por bilionésimo de segundo. Leuchs nos conta de dois experimentos realizados, um pelo alemão Wolfgang Paul, da Universidade de Bonn. Prêmio Nobel (Contribuições em Ótica Quântica). (Não confundir Wolfgang Paul com Wolfgang Pauli, da Áustria. Prêmio Nobel de Física em 1945) o outro por Hans Dehmelt e sua equipe, da Universidade de Seattle, Estados Unidos (Hans também ganhou o Nobel de 1989, junto com Wolfgang Paul). Tais experimentos, entre outras coisas, provocando saltos quânticos, visaram medir o lapso de tempo entre o salto do elétron, e a emissão de um fóton por parte do mesmo. Ou seja, quanto tempo o elétron demora em emitir um fóton quando realiza o salto. Constatou-se que os elétrons demoram 10 bilionésimos de segundo para emitir a luz(o fóton). Ora, se a luz percorre 1 metro por bilionésimo de segundo, em dez bilionésimos ela vence a distância de 10 metros. Acontece que a distancia entre as órbitas é bilhões de vezes menor do que 10 metros, logo o salto demora muito menos do que 10 bilionésimos de segundo para ocorrer, mas ainda assim, entre o início do salto e a emissão do fóton, passam-se 10 bilionésimos de segundo, mesmo sendo a observação efetuada a uma distância muito menor do que 10 metros. Antes de a luz ser emitida, o salto já ocorreu. Em outras palavras, o salto ocorreria 10 bilionésimos de segundo antes da emissão dos fótons. Isto, dito de outro modo, não significa outra coisa senão que a velocidade do salto é superior à velocidade da luz, ou, que o salto não ocorre no tempo. Como tempo e espaço formam um único tecido, logo, o salto não ocorreria no espaço-tempo.
"Portanto, a experiência fornece uma medida moderna do antigo paradoxo, em que o salto em si não toma tempo real, mas a emissão de luz demora a ocorrer. Parece certo que em qualquer caso a emissão de fótons sempre demora algum tempo e nunca é imediata, como seria de esperar de acordo com o conceito tradicional dos saltos quânticos".(Gerd Leuchs- O Incrível salto do elétron – Super Interessante, Brasil, 1990)
Partindo da suposição que o sentido de "salto quântico" descrito por esse modelo seja correto, surgem inquietantes implicações filosóficas.
Em Física e Filosofia, Heisenberg pergunta: Pode a Linguagem descrever a Natureza? Podem modelos matemáticos, baseados nos conceitos do entendimento humano, de nossa linguagem, nos esclarecer quanto aos processos subatômicos?No mundo do átomo acontecem fenômenos tão estranhos, incomuns e misteriosos, que parecem não poder ser descritos pelos conceitos que dispomos em todos os nossos idiomas, fenômenos que necessitam de novas palavras, novas idéias, novos paradigmas para serem comunicados. ( ou, de novas experimentações conceituais, novos usos, novos significados...) Um exemplo é o salto quântico. Todo objeto que existe, no nosso entendimento, ocupa um lugar qualquer no espaço-tempo, não conseguimos pensar, e, portanto não conseguimos falar de um corpo que realmente exista, mas que não possa ser encontrado em nenhum lugar e em momento algum. Para a Linguagem que governa nosso entendimento, aquilo que não está em nenhuma parte, simplesmente não existe. Mas o elétron se transfere de uma órbita atômica para outra, sem jamais estar "entre" ambas. Durante a transferência entre as órbitas, o elétron é tão real quanto você (partindo da convicção de que a dúvida quanto à nossa existência objetiva, já tenha sido superada desde Descartes), mas simplesmente não está em nenhum lugar do Universo! O elétron existe aonde?O elétron, entre as duas órbitas, deixa de ser tão real quanto um objeto singular ( que tem existência física objetiva)e se torna tão real quanto um conceito (que podem ter existência proposicional, lógico-semântica, sem que haja objetos singulares factuais que lhes correspondam)? O verbo ser se aplica ao elétron durante o salto quântico? Mas, se o "ser" dos objetos físicos é "ser" no espaço-tempo, e se durante o salto quântico o elétron não está em espaço algum, se durante o salto quântico, o tempo do elétron é tempo nenhum, então, onde está, ou, o que é, o "ser" do elétron, neste caso? Se existir fora do espaço-tempo é impensável, poderá ser dito? Que espécie de enunciado pode descrever este processo? Por exemplo, se dissermos :"Durante o salto quântico o elétron "é" um objeto fora do espaço-tempo", logo nos lembramos que este "é"refere-se ao "ser" do elétron, e que ser, neste caso é estatuto de tudo que existe no espaço-tempo, não havendo "fora" dele. Sendo assim, esse enunciado é vazio. È óbvio que é um enunciado possível, o que não é possível é a sua veracidade. Alias, é um enunciado possível na medida em que qualquer enunciado é possível desde que seja formulado, mas é um enunciado sem sentido, ou seja, não faz sentido formulá-lo, assim como não faz sentido perguntar pela casada moça solteira. Não é que uma ou outra resposta seja a mais adequada, a questão é que a pergunta não faz sentido.
Podemos ir por outro caminho se dissermos: "Durante o salto, o elétron, que "é", deixa de "ser" ao sair da órbita A e volta a "ser" quando aparece na órbita B". Parece que resolvemos a questão. Temos um enunciado engenhoso. Mas logo somos tomados por nova vertigem, pois deslocamos o problema da Linguagem para a Ontologia. Se a frase que elaboramos é clara, o processo descrito não o é. Como um objeto oscila assim entre o ser e o não ser? Como podemos aplicar-lhe um verbo, que num piscar de olhos já não lhe diz respeito, para logo em seguida voltarmos a colar o verbo sobre o ente, e transformarmos o virtual em real? O elétron não é um sentimento para que "seja" sem materialidade. Ou o elétron (1)não existe (o que é falso, caso contrário não existiria mundo físico), ou (2) existe por um lapso de tempo despido completamente de todas as propriedades das coisas físicas existentes. Se por esse lapso de tempo, não podemos negar que o elétron "seja",mesmo que este "ser" seja um ser desprovido de tudo aquilo que é característica dos objetos físicos que "são", então, talvez esse não seja um problema para a Linguagem, e sim, e somente, para a Física e a Filosofia. Entretanto, a atividade da Física e da Filosofia é uma atividade do pensamento, e pensamos pelo logos, ou seja, pensamos na linguagem, pela linguagem e com linguagem. Pensar é falar, dialogar, significar internamente, então, mesmo que o problema do salto quântico esteja resolvido quanto à possibilidade de expressá-lo por meio da linguagem, a problemática permanece sendo absurdamente inquietante e sutil, porque mesmo expressado, a expressão permanece sem sentido, o enunciado permanece absurdo. Em "Física eFilosofia", Heisenberg recorre ao conceito aristotélico de potentia para lançar luz sobre a questão da tensão entre os conceitos clássicos e a natureza quântica. Para Aristóteles algo poderia existir enquanto ato, ou potência. Uma semente, por exemplo, é ato enquanto semente, mas é árvore enquanto potentia. O ato, portanto, é a existência concreta, a concordância ontológica, daquilo que é como de fato é, e a potência é também uma existência tão real quanto o ato, mas é existência daquilo que está presente no ato enquanto suas possibilidades. Ou seja, a existência da árvore, na semente, é uma existência real, porque a árvore é uma potência real da semente, um desdobramento natural da mesma, seu fim, sua conseqüência. A árvore já está "contida" na semente, e, portanto não existe enquanto ato, mas é real, na medida em que existe enquanto potentia. Analogamente, os objetos quânticos, mesmo que não possam ser medidos e localizados, mesmo que pareçam não existir concretamente, são reais porque existem enquanto possibilidades, probabilidades, potências elementares da natureza. Assim, durante o salto quântico o elétron existe enquanto possibilidade de ser, potentia de vir a ser.
"Na teoria quântica, analogamente, todos os conceitos clássicos - quando aplicados ao átomo - encontram-se tão bem ou tão mal definidos como o de "temperatura de um átomo": eles estão correlacionados com certas expectativas estatísticas acerca das propriedades atômicas; somente as instâncias raras, a expectativa, isto é, a probabilidade correspondente, equivalerá à certeza. E, de novo, como no caso da termodinâmica estatística clássica, é difícil considerar-se essa expectativa como algo objetivo. Talvez se possa chamá-la de tendência ou possibilidade objetiva, uma potencialidade, a potentia no sentido da física aristotélica. De fato, eu pessoalmente acredito que a linguagem que os físicos utilizam, ao falar sobre fenômenos atômicos, sugere em suas mentes algo semelhante ao conceito de "potentia". E os físicos, assim, foram gradualmente se habituando a falar, por exemplo, de órbitas eletrônicas, não como uma realidade, mas sim como uma potentia". (Werner Heisenberg – Física e Filosofia)
O físico John Bell, toma caminho diverso, e reflete de modo diferente de Heisenberg. Para Bell, o problema está em querer colocar o Universo dentro dos limites do espaço-tempo, e por isso achar que se o elétron não está no espaço-tempo, logo não está no universo, e como o universo é tudo que existe, logo o elétron não existe durante o salto quântico. É isso que traz toda a confusão. Como "universo" é tudo que existe, ao identificar o universo com o espaço-tempo, e verificarmos que os elétrons não se encontram no espaço-tempo durante o salto, chegamos ao absurdo de formularmos, ou que alguma coisa existe fora daquilo que contêm todas as coisas, ou que algo desaparece da existência, e a ela retorna, vindo de lugar algum e indo para um nada absoluto. Como vimos anteriormente, Bell elaborou um teorema para elucidar a questão. Segundo Bell, as partículas correlacionadas estão para além do espaço-tempo. Um enunciado "belliano" para o salto quântico seria: "Durante o salto quântico o elétron existe (S é P) em um outro nível de realidade que transcende os limites físicos do espaço-tempo".Reparamos que o enunciado S é P, ou seja: "O elétron é existente", ou simplesmente, "O elétron é"pode aplicar-se mesmo ao seu estado durante o salto, desde que sejamos cuidadosos o suficiente para enunciarmos algo como: "Durante o salto quântico o elétron (S) existe (é) em um nível "belliano" de realidade (P)". Agora a sentença "O elétron existe" pode ser aplicada sem embaraço tanto para falarmos do elétron no espaço-tempo, quanto para falarmos do elétron fora (ou além) do espaço-tempo. O teorema de Bell resolve a questão, acrescentando o conceito de "realidade não local", nos fazendo abandonar a idéia de "localidade", segundo a qual, toda a realidade se dispõe sobre o tecido do espaço-tempo.
"O teorema de Bell arrasa o dogma de causa local, efeito local da física clássica". (Amiti Goswami, Richard E.Reed, Maggie Goswami – O Universo Autoconsciente – São Paulo, 2007 – pg. 153).
"O teorema de Bell nos força a abandonar pelo menos uma de três teses fundamentais aceitas na Física Clássica: Realismo, Localidade, Indução". B. d'Espagnat, Sc. Amer. 241(nov. 1979) 128-40.
Se antes a situação era tão embaraçosa que postulávamos precisar de duas linguagens para uma realidade, agora com uma única linguagem explicamos duas realidades! Mas não estaremos fazendo uma ginástica muito grande em termos de Física, só para nos livramos de embaraços em termos de enunciados? Ou pensarmos em uma outra realidade é o caminho natural para entendermos os saltos quânticos? No fundo, talvez Bell e Heisenberg se encontrem, ou seja, talvez o nível das possibilidades, de Heisenberg, onde os elétrons existem enquanto potentias, e o nível de realidade não espaço-temporal postulado por Bell, apontem para uma mesma realidade quântica ainda desconhecida.
Sendo assim, o que está em cheque não é nem bem a nossa linguagem, mas nossa visão de mundo, a nossa crença de que toda a realidade se resume a um universo constituído pelo tecido do espaço-tempo, a matéria que se dispõe sobre tal tecido, bem como as leis, os campos e as forças que moldam tal matéria.
Nas palavras de Grichka Bogdanov, formado pelo Institut de Sciences Politiques de Paris e doutor em Física Teórica e Semiologia:
"É por isso que há algo louco nesta teoria, algo que doravante ultrapassa a ciência. Sem que o saibamos ainda claramente, é nossa representação do mundo que está em jogo e começa a balançar irreversivelmente". (Jean Guitton, Igor Bogdanov, Grichka Bogdanov – Deus e a Ciência – Rio de Janeiro 1992 – pg. 99)
Na conferência internacional de física, publicada em livro junto com as conferências de Abdus Salam e Paul M Dirac, Heisenberg palestrou sobre a história da física contemporânea, seus métodos, suas expectativas e sua filosofia. Novamente, nos narra sobre a relação entre Linguagem e Realidade. Obviamente, é pelo Logos, pela linguagem, que outorgamos significado ao mundo, e que, portanto, um mundo racional, e racionável, emerge. Não entremos em extensas reflexões sobre os processos cognitivo, cultural e histórico, deformação dos conceitos, mas ressaltemos, contudo, que toda a nossa experiência sensorial, todo o nosso senso comum, nos leva a ver o mundo de um modo que não corresponde à natureza da realidade em escalas subatômicas. A tese de Heisenberg é bem clara e simples: os conceitos não foram desenvolvidos para descrever a natureza em escalas quânticas, porque nunca, em todos os milhares de anos da história da humanidade, isso havia sido necessário ou possível. Sendo assim, segundo o autor, nossos conceitos são úteis na descrição dos fenômenos pesquisados pela física clássica, mas são insuficientes para descrever fenômenos completamente estranhos à experiência sensorial humana, à vida cotidiana, ao senso comum.
"Trata-se aqui de problema realmente fundamental: o progresso da técnica experimental de nossos tempos coloca, ao alcance da ciência, novos aspectos da Natureza que não podem ser descritos em termos de conceitos da vida diária. (...) Um problema bem mais complexo ocorre, na teoria quântica, no que diz respeito à utilização da linguagem. Aqui não se tem de começo, nenhum critério simples para se correlacionar os símbolos matemáticos aos conceitos da linguagem quotidiana; e a única coisa que sabemos como ponto de partida, é que os conceitos comuns não são aplicáveis ao estudo das estruturas atômicas". (Werner Heisenberg – Física e Filosofia)
Neste sentido, Heisenberg foi predominantemente influenciado por outro fundador da mecânica quântica, o físico dinamarquês Niels Bohr. Para Bohr, a linguagem bem sucedida na descrição da representação da realidade pela ciência moderna, estava tão alicerçada em estruturas de pensamento que haviam sido desenvolvidas por uma experiência humana que nunca, outrora, havia experimentado os estranhíssimos fenômenos quânticos, que a natureza dos mesmos estava para além do que tais estruturas poderiam abarcar, enfim, a linguagem que tão bem fundamentava a física clássica, era limitada e imprecisa para descrever a física quântica, mas ainda assim, deveria e teria de ser utilizada, pois afinal, trata-se da única linguagem que temos.
"Pretendemos dizer algo sobre a estrutura do átomo, mas falta-nos uma linguagem em que possamos nos fazer entender. Estamos na mesma situação de um marinheiro abandonado numa ilha remota, onde as condições diferem radicalmente de tudo o que ele jamais conheceu e onde, para piorar as coisas, os nativos falam uma língua desconhecida. Ele tem que se fazer entender, mas não dispõe de meios para isso. Nesse tipo de situação, uma teoria não pode 'esclarecer' nada, no sentido científico estrito habitual da palavra. Tudo o que ela tem a esperança de fazer é revelar ligações. Quanto ao mais, ficamos tateando da melhor maneira possível... Fazer mais do que isso está muito além dos recursos atuais." (Niels Bohr, Física atômica e conhecimento humano – Rio de Janeiro, 1995)
"Nossa lavagem da louça é como nossa linguagem, disse Niels. Temos água suja e panos de prato sujos e, no entanto, conseguimos deixar limpos os pratos e os copos. Também na linguagem, temos de trabalhar com conceitos pouco claros e com um tipo de lógica cujo alcance é restrito e desconhecido. No entanto, nós a usamos para introduzir clareza em nossa compreensão da natureza". (Werner Heisenberg, A Parte e o Todo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1996, p. 158-162.)
Quando predicamos algo, por exemplo, dizendo que todo p é s, que x é não s, e que x é p, parece que estamos fazendo uma grande confusão, e concebendo algo impossível, algo que a lógica de nossa linguagem não pode admitir. Estamos dizendo que todo elétron é partícula, que ondas não são partículas, e que elétrons são ondas? Os pré-conceitos de nossa racionalidade se voltam contra uma afirmação deste tipo, mas trata-se de um dos princípios mais básicos e seguros da nova física: que partículas não são ondas, mas que elétrons são tão ondas quanto partículas. Amit Goswami nos lembra que não poderemos dizer que o elétron é uma onda, por que também é uma partícula, e ondas e partículas não compartilham do mesmo significado, então diremos que o elétron é uma "ondicula" – exemplo da necessidade da criação de um "léxico quântico" – ondicula: objeto físico cuja realidade é uma fusão; sobreposição ou alternância, entre as configurações de onda e partícula.
"Temos de dizer, por exemplo, que o elétron não é onda (...) nem partícula(porque ele aparece na tela em locais proibidos às partículas). Em seguida, se formos cautelosos em nossa lógica, teremos de dizer que o fóton não é não-onda nem não-partícula, para que não haja mal entendido sobre a maneira como usamos as palavras onda e partícula." (Amiti Goswami – O universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 93)
"Os elétrons não são onda nem partículas, poderíamos chamá-los de ondiculas, porquanto sua natureza transcende as duas descrições." (Amiti Goswami – O universo autoconsciente – Rio de Janeiro, 2007 – pg. 64)
Para Werner Heisenberg, a dualidade onda-partícula impõe limites não só à linguagem, masà lógica clássica. Como um único objeto, pode ser de dois modos, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto,a mecânica quântica exige também uma nova lógica.
"O resultado dessas tentativas, da autoria de Birkhoff e Neumann, e mais recentemente por parte de Weizsäcker, podem ser descritas dizendo-se que o esquema matemático da teoria quântica pode ser interpretado como uma extensão ou modificação da lógica clássica. É, em especial, um dos princípios fundamentais da lógica clássica que parece requerer uma nova concepção, como discutiremos a seguir. Na Lógica clássica, supôe-se que, se uma afirmação tiver sentido, há então somente duas possibilidades a considerar, a saber, ela é correta, ou caso contrário, sua negação o será. Nas duas seguintes asserções, "nesta mansarda há uma mesa" e "não há uma mesa nesta mansarda", uma delas é verdadeira e, a outra, falsa. Aqui vigora o princípio do "terço excluído", tertium non datur: uma terceira possibilidade inexiste. Pode ocorrer pela fragilidade de nosso conhecimento, que não saibamos decidir qual das duas assertivas, a afirmativa ou sua negativa, seja a correta; mas, de fato, somente uma delas é verdadeira.
Na teoria quântica, "o princípio do terço excluído precisa ser modificado". (Werner Heisenberg – Física e Filosofia)
É este tipo de conflito, de tensão, entre a lógica de nossa linguagem e os fenômenos quânticos, que faz Heisenberg refletir e sugerir que a nova ciência necessita também de novas experimentações com a linguagemque possam descrever coerentemente estas faces tão profundas e misteriosas da natureza ontológica do ser.
É neste sentido que o físico visa utilizar a matemática, uma outra ordem de "discurso" e "significação", em detrimento da linguagem verbal, para descrever os fenômenos da natureza, a fim de tentar driblar estas ambigüidades e paradoxos, que surgem quando queremos descrever a realidade física por meio de estruturas frasais, de predicações.