A Economia da Guerra

A Economia da Guerra

Economia, Ideologia e Cultura na Segunda Guerra Mundial.

"É preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e insurreições, e eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro."

( Jean Paul Sartre - in prefácio dos Condenados da Terra de Frantz Fanon)

“Pensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroshima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa, sem nada”.

(Vinicius de Morais – Rosa de Hiroshima)

Os custos financeiros de uma Grande Guerra

Quanto custa uma guerra mundial? Nem sempre podemos de fato fazer um cálculo preciso que responda tal questão. Devemos calcular o volume de capital investido para empreender a guerra, a soma dos recursos gastos na tentativa de assegurar um mínimo de condições de vida para a população dos paises envolvidos, o valor real de toda infra-estrutura destruída pela guerra, como estradas, portos, fabricas, pontes e indústrias. Entretanto, existem outras variáveis bem mais complexas: em uma grande guerra, bens materiais de valor artístico e histórico são destruídos. Quanto custa a destruição de um edifício histórico, de grandes obras de arte, de objetos raros, de valiosos símbolos da cultura humana, legados `as gerações futuras por nossos antepassados? Certos objetos, destruídos para todo o sempre em uma guerra, possuem um valor muito mais “espiritual” do que material, por serem representações da “Cultura”, prenhes de uma sacralidade a eles outorgada pela “Estética do Belo”, ou pela História. Calcular o quanto se perde, com a destruição de bens deste tipo, emperra no fato do valor destes objetos serem inestimáveis. Sendo assim, em uma guerra, tratados são firmados a fim de que determinadas cidades sejam privadas de bombardeios e ataques, mas isto não se faz suficiente para impedir a destruição de bens culturais universais.

Lembro-me perfeitamente da noite de inauguração da exposição “Guerra e Paz” no Museu Imperial de Petrópolis. Junto com outros colegas, passei o dia preparando o salão principal da exposição e adornando com fios metálicos dourados a estrutura de ferro que abrigaria uma ikebana do estilo Sanguetsu Quadros e arquivos sobre os conflitos imperiais luso-brasileiros, cuja curadoria era pertinente ao Museu Imperial, representavam a Guerra, e Ikebanas Sanguetsu, estilo de arranjo floral desenvolvido pelo pensador japonês Mokiti Okada no primeiro quarto do século XX, e confeccionadas pela Academia Sanguetsu de Ikebana, representariam a Paz. O objetivo daquela exposição era duplo: explorar a estética da relação dialética entre Guerra e Paz, e protestar contra o saque norte-americano do Museu Nacional de Bagdá, quando da invasão do Iraque pelos EUA. Naquela noite, o Museu recebeu o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, que palestrou brevemente sobre tamanho crime cultural, e depois dele, todos os presentes assinaram um livro de protestos. No salão onde o ministro falava de paz, um imenso quadro, peça do acervo do Museu Imperial, servia como pano de fundo do seu discurso. A obra, de imensa beleza plástica, e um precioso trabalho da “estética da guerra”: “A Batalha de Campo Grande”, de Pedro Américo. A Reflexão que feita no evento era que o saque ao Museu Iraquiano era, na verdade, um saque ao patrimônio espiritual da humanidade... Um roubo de um valor inestimável. Bagdá, e seu Museu Nacional, eram dos mais importantes bens culturais universais, cuja sacralidade estava tanto no seu valor estético quanto no seu valor histórico.

Mas há ainda, um outro bem ainda mais inestimável, que a guerra degrada para prejuízo universal: a vida. Milhões de vidas são ceifadas em um conflito, e como já dissemos, não há perda maior do que esta. Mas, embora uma vida possua um valor inestimável, a força de trabalho de um ser vivo pode ser monetarizada, de modo que podemos calcular, muito por alto, o quanto perdemos, tanto em força de produção quanto em mercado consumidor, com cada morte de um ser humano adulto, apto para o trabalho e para o consumo de produtos e serviços. Com os milhões de pessoas mortas na segunda Guerra Mundial, podemos projetar que o prejuízo com tantas mortes foi realmente gigantesco para o processo econômico global. Segundo Enrique Serra Padros em O Século XX em seu texto Capitalismo, prosperidade e estado de bem estar social, algo em torno de 55 milhões de pessoas, e, portanto, um universo de 55 milhões de produtores e consumidores, deixou de nascer na Europa, por conta do conflito.

Entretanto, e infelizmente, a partir de uma analítica econômica, quando sob uma ótica estadounidense, não se faz plenamente correto falarmos em prejuízos e sim em “custos”. A diferença conceitual que proponho entre custos e prejuízos se fundamenta no fato de que, embora os custos da guerra tenham sido tão elevados, a Segunda Guerra Mundial foi o melhor negócio do século XX para os Estados Unidos da América, que se utilizaram da dinâmica econômica do conflito para asseguraram sua posição hegemônica no cenário geopolítico global. Mas antes de explorarmos a economia da guerra por este prisma, fixemos-nos brevemente sobre os gastos materiais, passiveis de monetarização, propriamente ditos, de um grande conflito mundial. Ou seja, retomemos a pergunta inicial: Quanto custa uma guerra mundial?

Nicholas Murray Bluter, educador e filósofo norte americano, ganhador do Nobel da Paz de 1931 procurou responder a esta pergunta em um relatório feito a pedido da Carnegie Foundation, em 1934. O objetivo do relatório e saber o que poderia ser feito com tos os recursos gastos no primeiro grande conflito, caso tivessem sido investidos em educação. Tal relatório tornou-se referência para os estudos dos custos da primeira grande guerra, sendo citado em diversos artigos e trabalhos, como as obras Uma Enciclopédia do pacfismo de Aldous Huxley, e mais recentemente em O Caminho do Meio do filósofo canadense Lou Marinoff, do qual extraímos o seguinte trecho do texto de Huxley sobre o relatório de Butler.

“O custo da Grande Guerra foi avaliado em cerca de quarenta bilhões de dólares, ou oitenta bilhões de libras. De acordo com os números mostrados pelo Dr. Nicholas Murray Butler em seu relatório de 1934 a Carnegie Foudation, esta soma teria bastado para dar a cada família na América, no Canadá, na Austrália, na Grã Bretanha e Irlanda, na França, na Bélgica, na Alemanha e na Rússia, uma casa de quinhentas libras, duzentas libras em moveis e cem libras em terras. Cada cidade de vinte mil habitantes ou mais em todos os paises mencionados poderia receber uma biblioteca no valor de um milhão de libras e uma universidade no valor de dois milhões. Depois disso teria sido possível comprar toda a França e toda a Bélgica, ou seja, todas as terras, as casas , as fabricas, as ferrovias, as igrejas, os portos etc., dos dois paises.”

(MARINOFF. p 421-422. 2008)

Marinoff nos lembra, na mesma obra, que os gastos da Segunda Guerra foram imensamente maiores que os da primeira. De acordo com o autor, com uma fração dos custos de todas as guerras do século XX, poderíamos ter alimentado, educado, vestido e abrigado todas as pessoas do planeta, várias vezes ( MARINOFF.p 422.2008).

Novamente, Enrique Serra Padros em O Século XX em seu texto Capitalismo, prosperidade e estado de bem estar social, aponta para o fato de que a Europa do pos guerra encontrava-se em grande destruição material. O arrojo industrial de outrora reduziu-se a sonhos de antanho, e a produção européia havia perdido muito de seu vigor. Se compararmos a produção de cereais do fim da guerra, com a produção dos anos 30, salienta o autor, constataremos que esta caiu 70%, bem como a de carne 66%, e 75% a de outros produtos agrícolas. Outro fator merece destaque quanto aos custos de uma grande guerra: o endividamento, financeiro, moral e político dos paises envolvidos, ao término do conflito. Sublinhamos dois motores básicos de tais dívidas: (i) as contraídas pelos paises envolvidos, durante o conflito, para levarem-no a cabo e (ii) as sanções indenizatórias impostas a diversos paises, como no caso do tratado de Paz de Paris, na Primeira Guerra. Ocorrido em Paris, em Janeiro de 1919, o tratado de Paris revelou-se um instrumento de direito internacional por meio do qual os paises vencedores impuseram duras sanções ao paises vencidos, que desde 1918 já vinham sendo defendidas pelo presidente Wilson, dos EUA.

Notamos, acima, a importância do tratado de paz de Paris para a nova configuração geopolítica da Europa do após Primeira Guerra. Outros tratados foram igualmente relevantes neste mesmo sentido, como o Tratado de Versalhes, ratificado pela Alemanha em 28 de Junho de 1919, composto por 440 artigos. Um dos capítulos do tratado deliberava sobre aspectos puramente financeiros, cujo conteúdo determinava que a Alemanha, como reparação por suas ações de Guerra, devia entregar `a França, parte de sua Marinha Mercante, cabeças de gado, produtos químicos, locomotivas, bem como assegurar ao governo francês o direito de explorar jazidas carboníferas na região de Sane, pelos próximos quinze anos, e ainda outras sanções. Tais tratados foram modos pelos quais os paises vencidos, por meio de instrumentos de direito internacional, encontraram para reordenarem o quadro macro econômico internacional ao final do conflito. Richard Veddar, professor de economia da Ohio University, EUA, em seu recente artigo O Sistema Financeiro Global em Transformação saliente este fato :

“A Primeira Guerra Mundial envolveu enormes fluxos de capital internacional de forma nunca antes vista à medida que nações europeias como a Grã-Bretanha e a Alemanha se afundavam em dívidas, tomando grandes empréstimos de outros países, especialmente dos Estados Unidos. O Tratado de Versalhes (1919) estipulou o pagamento de taxas de indenização punitiva pela Alemanha, o que levou a políticas hiperinflacionárias que causaram graves prejuízos econômicos a essa nação.

(VEDDAR. 2009)

E quanto ao custo da Segunda Guerra, acrescenta:

“Não obstante, a volta à normalidade nas finanças internacionais foi interrompida pela deflagração da Segunda Guerra Mundial em 1939, a guerra mais cara de todos os tempos, que desorganizou o comércio mundial e levou a acordos de cooperação internacional para facilitar a estabilidade e o crescimento da economia”.

(VEDDAR. 2009)

A dinâmica do processo macro econômico, durante e após a Segunda Guerra Mundial

Falávamos acima, dos custos de uma grande Guerra, e claro ficou ao longo do corpo discursivo que desenvolvemos, que os custos financeiros foram aterradoramente imensos. Salientamos também que, se para o ambiente europeu, podemos falar de grandes prejuízos financeiros, a mesma noção não nos parece plausível quando nosso foco analítico se volta para os Estados Unidos da América. Se os paises europeus se endividaram brutalmente com o conflito, se suas moedas se desvalorizaram, se seus parques industriais sofreram danos materiais, se sua infra-estrutura fabril e de transporte se desmantelaram sob o implacável peso da guerra, o oposto pode ser dito dos EUA. Precisamos salientar, por exemplo, um fator geográfico sem o qual não apreendemos mesmo o óbvio do porque de tal blindagem norte americana em face de tamanha destruição: ora, um motivo simples se revela o fato de que os EUA lutaram uma guerra em território quase sempre estrangeiro, não sofrendo danos em seu próprio território, com exceção do ataque a Peal Harbor, que de qualquer maneira, se localiza longe do lar comum dos norte americanos. Dissemos acima que a produção de diversos bens agricultáveis sofreu uma absurda queda de 75%, na Europa, em comparação aos anos 30, bem como a produção industrial européia sofreu quedas avassaladoras. Enquanto isso, nos Estados Unidos, a produção industrial triplicou durante o conflito, chegando a produzir metade de toda a produção mundial, em 1946. Enquanto na Europa legiões urbanas e imensos blocos de campônios degradavam de fome, sede, frio e perseguição, o norte americano comum vivia épocas de bem estar e conforto – durante a guerra a renda per capita dos EUA teve um aumento superior a 100%, saindo de 550 dólares para 1.260. Toda moeda, enfim, tem duas faces, e às vezes uma sofre erosão ferrugênica enquanto outra aumenta seu brilho.

Na verdade, antes das duas grandes guerras, a Europa mantinha-se como a força política e bélica mais arrojada do mundo. A Inglaterra engendrava um Império Britânico colonialista e Industrial, chegando a dominar relevante extensão do globo, ocupando posições estratégicas no Caribe, como nas Antilhas, na África, principalmente no Sul, e na Ásia, como o caso da Índia. As duas grandes guerras, ou, na visão de Eric Hobsbawm, a grande guerra do século XX, que se estende do início do conflito que chamamos de Primeira Guerra Mundial, ao término do conflito que chamamos de Segunda Guerra Mundial, enfim, a dinâmica do processo histórico geopolítico e macro-econômico das grandes guerras da primeira metade do século XX, marca a ascensão dos EUA a uma posição hegemônica global. A Guerra, portanto, pode ser vista também como um processo macro-econômico, e sempre querida pelos que sabem lucrar com ela. Jose Ângelo Nicácio, da Universidade Federal de Santa Catarina ressalta em seu texto Alianças estratégicas entre agroindústrias integradas em cooperativas essa ascensão norte-americana com a Segunda Guerra Mundial, como vemos no texto abaixo:

“ As causas comuns das duas grandes guerras foram as rivalidades financeiras e comerciais entre as grandes potências que objetivavam dominação econômica, e para isso adotavam medidas que visavam à desestruturação econômica de seus concorrentes. Como na época os instrumentos de políticas internacionais não garantiam o avanço econômico das grandes potências e conseqüentemente o seu domínio, as nações optavam pelo conflito armado, para garantir a supremacia econômica, produtiva, tecnológica, comercial, monetária e financeira.Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos assumem a posição de potência mundial e estabelecem a ordem política internacional com a constituição da ONU, e domínio econômico com a Conferência de Bretton Woods, em 1944. Com isso, de acordo com Grassi & Canziani (1996), aliando o poder econômico ao poder militar, os Estados Unidos passaram a construir sua supremacia industrial e tecnológica, potência financeira e grande produtor agrícola, bem como ditar a política mundial, criando sérias dificuldades para a recuperação dos países destruídos pela guerra. O avanço soviético no Leste Europeu fez com que os EUA flexibilizassem as duras regras estabelecidas em Bretton Woods, e aprovassem o Plano Marshal, destinando recursos para a reconstrução da Europa. Isto fez com que os países Europeus e o Japão recuperassem e desenvolvessem suas economias ao ponto de competir com os EUA através do aumento da produtividade, da participação no comércio exterior e das reservas internacionais. A recuperação da Europa e o extraordinário desenvolvimento da economia japonesa levaram os EUA a constantes déficits no balanço de pagamento, o que se constituiu num dos fatores de liberação da saída dos bancos norte-americanos para o exterior, iniciando o processo de internacionalização do capital financeiro e o fortalecimento da multinacionalização das empresas. Em resumo, o desempenho da economia mundial depende significativamente do desempenho da economia norte-americana, pois as decisões políticas pós-guerra atribuíram aos EUA a condição de forte influenciador da economia mundial”

( NICACIO . 1997)

Em relação à citação acima, notamos relevantes considerações sobre a dinâmica macro-econômica da Guerra, haja a necessidade de salientar que a importância que o autor confere ao aspecto econômico como causa da Guerra parece-me um tanto quanto excessiva. Obviamente, o interesse econômico foi um dos motores importantes que desencadearam o conflito, entretanto outros fatores, ideológicos, políticos e culturais, concorreram com imensa importância para a instabilidade da região européia, e por fim, para o conflito propriamente dito.

Ao mesmo tempo em que o enfraquecimento do bloco europeu favoreceu o fortalecimento dos EUA, para este, protagonizar a recuperação européia e nipônica era estratégico, no mínimo, por três importantes motivos. Primeiro, ao recuperar o ambiente econômico europeu e japonês, os EUA assegurava a existência de um amplo mercado consumidor para sua indústria. Segundo, ao emprestar dinheiro para os paises necessitados, assumia a posição de credor internacional, o que o fortalecia geopoliticamente. Terceiro, ao recuperar o ambiente econômico da Europa e do Japão, os EUA exportavam para estes o seu modelo capitalista, produzindo aliados capitalistas contra o avanço do socialismo soviético. Ao recuperar a Europa ocidental, garantia que o socialismo do Leste europeu não se alastrasse para além das searas soviéticas, e ao patrocinar o ressurgimento da um Japão forte, o blindava de quaisquer pretensões da China comunista, mantendo um mercado capitalista e por conseqüência, anticomunista, no extremo oriente. Sendo assim, evitar a falência da Europa e do Japão era fundamental para escoar a produção norte-americana, evitando um quadro de superprodução como o que houve na crise de 1929. Deste modo, os EUA injetou 30 bilhões de dólares na Europa, de 1948 a 1961. Em resposta, as economias européias se viam comprometidas a seguir as diretrizes norte-americanas.

Em julho de 1944, delegações de quarenta e quatro países, reunidos nos Estados Unidos, aprovaram o acordo de Bretton Woods, que definia a nova configuração macro-econômica internacional. O Acordo estabeleceu (i) a conversibilidade entre o dólar e ouro (cada 35 dólares correspondendo a uma onça de ouro) e o estabelecimento do dólar como moeda internacional (ii) a conversibilidade das diferentes moedas entre si, tendo o dólar-ouro como marco cambial (iii) a criação tanto do Fundo Monetário Internacional, com a missão de fiscalizar a normatividade das novas regras monetárias, assegurar a funcionalidade do sistema cambial internacional et caetera, quanto do Banco Mundial, que deveria fomentar a recuperação das economias degradadas pela Guerra.

A Conversibilidade dólar-ouro foi extramente estratégica para os EUA, e fundamental, naquele momento, para assegurar sua posição hegemônica, uma vez que, os EUA contavam com 80% das reservas de ouro do mundo. O valor do ouro estava congelado, obedecendo ao valor de 1934. Valor que variou somente em 1939.

Os EUA acumulou tanto ouro, trocando produtos industrializados norte-americanos cujos preços aumentavam sempre, por ouro europeu, cujo valor estava congelando desde 1934. Deste modo, como bem já o dissemos, os EUA conseguiu obter 80% do ouro mundial, e após a Guerra, com o acordo de Bretton Woods, e a conversibilidade entre dólar e ouro, assegurou um poder financeiro inigualável.

Ora, os fatos não se dão puramente, descolados dos pensamentos. A história humana e a história dos processos civilizatórios empreendidos por seres dotados de cognição, logo toda história e também história do pensamento, seja do pensamento reflexivo, criativo e analítico, e, portanto história da Filosofia, da Ciência e da Arte, seja do pensamento enquanto visão de mundo do homem comum, pensamento enquanto crenças e pressupostos culturais, e, portanto história das ideologias e das percepções culturais, e enfim história dos fatos. Portanto, quando estamos a narrar acontecimentos do mundo, estamos a narrar como os homens de uma época entendiam o mundo, qual valor eles atribuíam as suas culturas, quais pensamentos concorreram para que os fatos se configurassem como se configuraram. Como pano de fundo cultural de todo este processo que ora narramos, encontravam-se filosofias, doutrinas e ideologias, que convergiam para um lugar comum: a percepção americana de que sua cultura, seu modelo capitalista, seu estilo de vida, deviam ser internacionalizados, que o mundo, enfim, deveria ser americanizado. No tocante a Economia, o ideal americano era fazer de seu modelo capitalista, o modelo econômico global. Fundamentado nisto, os EUA elaborou a Doutrina Truman da qual, de certo modo, derivou o Plano Marshal.

O desenvolvimento da Doutrina Truman destinava-se a conter a difusão do socialismo em paises externos `a União Soviética tendo início formal em 12 de Março de 1947, quando o presidente norte-americano Truman, discursou sobre a necessidade de defender o mundo do comunismo soviético salvaguardando as sadias estruturas do capitalismo, liberando créditos para a Europa, incluindo a Grécia e a Turquia, já no oriente. Obviamente, a Doutrina Truman não nasceu somente da ideologia. Ideologia e Interesses estratégicos se interpenetraram, se fundiram e se retro-alimentaram. A ideologia concorreu para respaldar a estratégia, e a estratégia para assegurar o sucesso da ideologia. Deste modo, tento a ideologia norte-americana, quanto o interesse americano tanto em querer continuar lucrando com um clima de guerra, quanto em asseguarar sua influencia sobre áreas estratégicas do globo, concorreram para o estabelecimento da Doutrina Truman. Contudo, se empreendemos uma “analítica do discurso” do texto de Truman, as tonalidades ideológicas aparecem bem realçadas. Vemos claramente que, por meio de seu discurso, Truman pretendeu convencer o mundo de que ele tinha duas filosofias concorrentes, cada qual com amplas conseqüências culturais, políticas e econômicas peculiares, e que entre as duas, uma era salubre, o capitalismo, e a outra nociva, o comunismo. A seguinte passagem, do discurso de Truman realça este aspecto:

“Uma forma de vida é baseada na vontade da maioria e distingue-se por instituições livres, governos representativos, eleições livres, garantias à liberdade individual, liberdade de expressão e eleição, e ausência de opressão política. Uma segunda forma de vida é baseada na vontade de uma minoria, imposta pela força à maioria.Recorre ao terror e à opressão, a um rádio e a uma imprensa controlados, a eleições decididas de antemão e a supressão das liberdades individuais (...)Os povos livres do mundo olham para nós esperando apoio na manutenção de sua liberdade. Se fracassarmos na nossa missão de liderança, talvez ponhamos em perigo a paz e o mundo – e certamente poremos em perigo a segurança da nossa própria nação. O curso rápido dos acontecimentos colocou sobre nossos ombros grandes responsabilidades. Tenho fé que o Congresso enfrentará com firmeza”.

(MARTINS. 2006)

Luis Carlos dos Passos Martins em A Doutrina Truman: imaginário anticomunista no início da Guerra Fria e sua repercussão na grande imprensa de Porto Alegre considera que esta passagem do discurso de Truman revela-se fundamental para apreendermos o espírito ideológico e estratégico norte americano. Diz o autor:

“Vemos, nessa passagem, como a forma, a partir da qual Truman enquadra as diferenças entre os dois sistemas, é bastante drástica: são duas totalidades fechadas e sem intercâmbio possível, cuja convivência pacífica é completamente inviável. Nesse raciocínio, a existência de uma implica necessariamente a extinção da outra. A expansão constante e inerente ao comunismo implica o extermínio da sociedade Ocidental, capitalista, cristã e democrática. Disso segue uma conclusão inevitável: a sobrevivência dessa sociedade exige a defesa das instituições que a definem em qualquer parte do mundo, num jogo de soma zero em que qualquer ganho do adversário pode ser o prenúncio de nosso fim. Não podemos, portanto, repetir os erros do passado e esperar o inimigo crescer. Sair preventivamente na defesa da sociedade Ocidental é a tarefa da qual os norte-americanos não podem se omitir”.

(MARTINS. 2006)

Da Doutrina Truman, derivou-se o Plano Marshal, apresentado a comunidade acadêmica, política e militar, na Universidade de Harvard, por George Marshal, secretário de Estado dos EUA. Na ocasião Marshal traçou as bases de um vigoroso processo de investimentos na Europa, com os objetivos de reconstruir e dinamizar uma sociedade capitalista global, recuperar a economia européia, criando um mercado produtor e consumidor nos moldes doutrinários da economia capitalista norte americana, fortalecendo a Europa, livrando-a da pobreza e blindando-a contra o comunismo soviético, estabelecendo frutífera relação econômica entre EUA e Europa, por meio de um processo de fluxos e refluxos de capitais, produtos e serviços. Em troca do precioso volume de investimentos, os paises europeus deveriam dar pleno acesso aos Estados Unidos, as matérias primas européias de interesse norte americano, bem como importarem preferencialmente os produtos norte americanos. Havia, na verdade, um cerceamento da liberdade econômica européia e portanto da plena soberania política de seus Estados, uma vez que equipes técnicas americanas tinham poder fiscal sobre a utilização dos investimentos concedidos, impedindo a abertura de empresas concorrentes dos EUA bem como a importação de produtos considerados estratégicos para o Leste europeu. Por meio do Plano Marshal, a indústria norte americana manteve um nível de produtividade semelhante aos tempos de Guerra.

Outra conseqüência importante da Guerra que provocou uma mudança no tecido econômico global, foi a expansão do fordismo, ate então restrito aos EUA, para todo o mundo industrializado, com exceção obvia da união Soviética. Alessandro Bonano, do Departamento de Sociologia da Universidade de San Houstoun, em seu artigo Globalização da Economia e da Sociedade: Fordismo e Pos – Fordismo no setor agroalimentar, ressalta bem o que podemos entender por modelo fordista:

“O capitalismo Fordista combinou empresas com alta racionalização, centralização e integração vertical com sindicatos nacionais e com uma substancial expansão do Estado, além disso, usava-se a elevada especialização e mecanização da produção, a burocratização das empresas, o planejamento extensivo e o controle burocrático de “cima para baixo”. “Fordismo Alto” é o termo que define o capitalismo do pós-guerra, ou do tipo maduro e hiperracionalizado de Fordismo (Antonio e Bonanno, 1996). Ele tinha uma força de trabalho segmentada, uma ampla e complexa organização do corpo profissional, gerencial e técnico e meios de comunicação, informação, transporte e comtrole extremamente sofisticados. Apesar da existência de diferenças significativas entre os setores econômicos e as regiões geográficas, o processo centralizado nos altos níveis de intervenção do Estado e na inclusão de grupos de trabalho subordinados na administração da sociedade, foram as características principais deste período. O “Alto Estado Fordista” adotou políticas Keynesianas avançadas no âmbito do controle fiscal muito abrangentes e de regulação dos planos socioeconômicos, na saúde, na educação e na área do bem-estar social”.

(BONANO. 2010)

Como vimos na citação acima, a adoção da teoria econômica keynesiana também marca o cenário macro econômico global desta época. O fundamento teórico desta economia posterior a Guerra foi, portanto, pensado pelo economista John Maynard Keynes, britânico, autor de A Teoria geral do emprego, do juro e da moeda publicado em 1936. O cerne de seu postulado teórico e a necessidade do estimulo ao aumento da demanda e da produção, e a responsabilização do Estado pelo provimento de condições econômicas propícias para o pleno emprego e bem estar social. A Teoria de Keynes estimula fortemente o consumo como dínamo do processo macro econômico. Para Keynes, a classe trabalhadora deveria ser bem remunerada, de modo que se tornaria em uma classe consumidora, tendo acesso a bens e serviços antes restritos aos mais abastados. Este cenário era como um circulo virtuoso: O capital remuneraria melhor o trabalho, a classe trabalhadora passaria a ser também uma classe consumidora, o que era bom para o capital, a população se sentiria mais próspera, e a sensação de bem estar social poderia ser sentida por todos. Segundo Enrique Serra Padros em O Século XX em seu texto Capitalismo, prosperidade e estado de bem estar social, fortemente influenciados pela teoria de Keynes, os estados europeus, a partir de 1946, passaram a incentivar vigorosamente o aumentando na taxa de natalidade de seus respectivos países, como modo de assegurarem uma futura e vasta classe produtora-consumidora. Esta tendência ao aumento da natalidade estacionaria e mesmo retroagiria na década de 60, com o crescimento da consciência da relação entre famílias menores e maior bem estar social. A adoção do Keynesianismo revela ainda uma outra faceta: a busca dos intelectuais de esquerda por formas alternativas de pensar os processos econômicos que não o comunismo radical e mesmo o marxismo.

Fernando J.Cardim de Carvalho, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu artigo Keynes e o Brasil, na revista The Scientific Electronic Library Online, pode nos ajuda a melhor entendermos a peculiaridade do pensamento keynesiano. Diz ele:

“O keynesianismo é uma doutrina ativista, que preconiza a ação do Estado na promoção e sustentação do pleno emprego em economias empresariais. Ele dialoga, mas não se confunde com outras doutrinas, que se apóiam em princípios teóricos e prioridades políticas diferentes. Por outro lado, a teoria keynesiana, em parte como herança do seu próprio criador, tem como objeto o mundo real, de modo a ter bem claro que a construção de conceitos e modelos não é, de modo algum, um fim em si mesmo, mas um instrumento de pesquisa empírica e derivação de políticas de ação. Como todo instrumento, conceitos e modelos tendem a tornar-se obsoletos com o tempo, e têm de ser modernizados para que sua eficiência deva ser mantida. (...) O Keynesianismo (...) É algo mais do que a visão, no sentido schumpeteriano, porque envolve não apenas as intuições fundamentais a respeito de como funciona uma economia empresarial, incluindo também um posicionamento político e uma abordagem estratégica. Keynes, no último capítulo de sua obra magna, A Teoria Geral do Emprego, Juros e Moeda, propôs que economias modernas enfrentam dois grandes problemas. O primeiro é a concentração excessiva de renda e riqueza, que não se justifica nem mesmo pelas regras éticas do capitalismo, segundo as quais diferenças de renda atribuíveis a disposição a risco, animal spirits ou qualquer outro argumento desta natureza, são justificáveis e mesmo socialmente úteis. Para este mal, os remédios de Keynes são relativamente simples: taxar progressivamente as rendas mais elevadas e gastar na provisão de bens públicos.O outro problema central é a incapacidade dessas economias de manter o pleno emprego, mesmo quando o alcançam eventualmente. No caso, o diagnóstico central é o da insuficiência de demanda privada agregada, isto é a falta de disposição de consumidores e investidores privados em gastar o necessário em bens de consumo e capital que justifique, aos olhos das empresas, produzir no limite de sua capacidade.

(CARVALHO. 2008)

Tamanha digressão sobre o Keynesianismo não e' uma trivialidade, tampouco uma prolixidade, dada sua importância para o processo macro econômico sobre o qual se vão estas linhas. Somente entendendo a base teórica que configurou a dinâmica econômica deste período, e que fazemos um real esboço, embora breve, da história econômica da Guerra e de seu período imediatamente posterior.

Conclusão

Vimos que por meio da dinâmica econômica das grandes guerras da primeira metade do século XX, com foco na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América ascenderam ao posto de grande investidor, credor e regulador do mercado financeiro mundial, posto outrora ocupado pela Europa, sendo marcas deste momento, o acordo de Bretton Woods, a Doutrina Truman seguida dos planos Marshal e Dodge, a difusão mundial do modelo fordista e da teoria keynesiana. Tal configuração, desencadeada pela Segunda Guerra Mundial alterou completamente a tessitura da macro economia global, alçando os EUA em uma oposição hegemônica, que somente na primeira metade do século XX, com a ascensão da China como super potência financeira, e dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) se vê ameaçada de certo modo, uma vez que, ao passo que estes paises, especialmente a China, vem aumentando sua importância econômica global, os EUA enfrentam um período de estagnação econômica, após os desastrosos anos da era Bush, e as crises da bolha imobiliária e das companhias de Seguro que abalaram Wall Street recentemente. Entretanto, no tocante ao poderio bélico norte americano, os Estados Unidos continuam sendo a maior potência mundial, embora isto nem sempre lhe garanta, nem proteção domiciliar, como revelou o 11 de setembro de 2001, revelando a vulnerabilidade da defesa dos EUA (muito pior do que a queda das torres gêmeas, neste sentido, foi o pouco lembrado ataque ao pentágono, sede do exército norte americano) nem sucesso em território estrangeiro, como o revela a onerosa e atrapalhada presença norte americana em solo iraquiano e afegão, ao menos, ate a presente data.

Referências Bibliográficas

Livros:

HOBSBAWN, ERIC. Era dos extremos: O breve século XX, 1914-1991. Companhia das Letras. São Paulo, 2002.

MARINOFF, LOU. O Caminho do Meio. Record. Rio de Janeiro, 2007.

PADROS, E,S. O século XX: Capitalismo, prosperidade e Estado de bem estar social.

Sites:

(BONANO. www2.cddc.vt.edu. 2010)

(CARVALHO.www.scielo.br. 2008)

(MARTINS.www.fapa.com.br . 2006)

( NICACIO .eee.eps.ufsc . 1997)

(VEDDAR.www.embaixadaamericana.org.br. 2009)