“UM PAÍS SE FAZ COM HOMENS E LIVROS” (MONTEIRO LOBATO)
Vírgula. Sim, eu disse VÍRGULA. E antes que a ira de muita gente se volte na minha direção, deixo claro que também amo os livros e não é pouquinho. Eu nasci e cresci entre eles e com eles sempre à mão. E com eles continuo. Vírgula de novo.
O motivo deste texto foi uma reunião na qual o centro das atenções era um homem que virou livro. Sim, ele virou um livro de tanto que deles diz gostar. Essa criatura já foi até objeto de estudo de uma pesquisa e é reverenciado por onde passa pela sua atividade direcionada à divulgação e distribuição de livros.
Esse personagem público é um homem de origem humilde, mas dono de um belo tipo, um rosto e um sorriso bonitos. As histórias que ele conta de sua vida são mesmo interessantes, desde o início até o momento.
O paladino do livro de papel realiza todo tipo e sorte de atividades, objetivando despertar o gosto pela leitura, principalmente nas comunidades carentes. Lá vai ele na frente e a mídia em seu encalço pelas ruas, escolas, favelas e outros lugares, distribuindo vários exemplares. A mídia quando pega de jeito um tema, Deus me livre!
Até aí tudo muito bem. Mas fiquei matutando com meus botões e procurando entender até que ponto o homem-livro está verdadeiramente alcançando seus objetivos (nobres, sem dúvida), tendo em vista o desinteresse pela leitura e pela escrita mais que comprovado pelas estatísticas e pesquisas. Para dar um exemplo, tive a triste oportunidade de me encontrar nas ruas com duas crianças tentando vender por um real uma sacola fechada de livros que, segundo eles, foram jogados na calçada da escola onde estudam. Em Aracaju, há algum tempo, um senhor foi parar na cadeia por ter sido surpreendido vendendo como papel sem valor algumas caixas de livros didáticos. O fato foi divulgado, amplamente televisado.
Quem vive o cotidiano escolar sabe que as bibliotecas, mesmo as bem equipadas, não são frequentadas e salas de leitura funcionam precariamente ou são desativadas por vários motivos, inclusive falta de interesse de alunos e professores empenhados em cumprir seus planos e aplicar o sistema de avaliação. Quem entende de educação sabe que essas e outras obrigações afastam alunos e estudantes da leitura lúdica e também da orientada. Entretanto e contraditoriamente, na sala de aula, esses educadores se desesperam na aplicação de métodos e técnicas supostamente milagrosos que levariam os alunos a gostar de ler. Quanta inocência!
A verdade é que a maioria dos estudantes não quer ler e é capaz de abandonar o livro em qualquer lugar, mesmo porque não tem valor de mercado. Não se aceita trocar um livro por um pirulito, um chicles. Ou por coisas piores!
Chegamos a este ponto. Ainda me recordo das críticas, injúrias, pragas que rogaram ao advento da TV, ao sucesso das revistas em quadrinhos. Maldito seria e queimado no fogo do inferno quem se dedicasse aos feios hábitos de assistir à programação televisiva ou ler aquelas publicações. Tanto fazia a Revista Capricho ou a Luluzinha, tínhamos que inventar estratégias para boicotar a dupla vigilância família/escola. Ah, e na adolescência vinham os namorados também com semelhantes exigências, pois mocinhas de bom tom só deveriam ler o Adoremus e o Manual de Dona Benta. Conheci um casal que se desquitou porque o marido tinha ciúmes de Tarcísio Meira beijando Glória Menezes na tela da TV. E marido de respeito não admitia que a esposa ficasse na sala vibrando com a cena.
Mulher sair desacompanhada? Não pode! Fumar? Não, não pode! Sentar num bar? Jamais! Homem usar cremes? Depilar o corpo? Usar perfumes? Camisas coloridas? Tá louco?
Tantas coisas não podiam ser feitas ou sequer pensadas. O mundo virou a casaca e atualmente tudo é tolerado, democrático e permitido. É proibido proibir. Tem até campanha para liberar a maconha e perseguição fechada a quem fumar dos cigarros comuns, desses que a gente compra nos armazéns (para não pronunciar o nome da firma). Qual a coerência?
Voltando ao livro de papel, é bom frisar, tive livros e livros. Para onde me mudava o maior peso era o das caixas com os exemplares deles. Pesavam mais que o guarda roupa, mais que o carro e se tornaram motivo de reclamação dos funcionários de transportadoras. Certa vez as caixas foram “esquecidas”.
Limpei tanto meus queridos compêndios (gostou da palavra?), conservei-os, chorei quando algo lhes aconteceu, molhando ou rasgando suas folhas de pétalas do saber. É preciso ter saúde e não ser alérgico, além de se amar os livros.
Quando aconteceu o boom da informática, desenvolvi imediatamente uma antipatia ignorante pelo computador e pelo acesso a Internet. No fundo temia pelo destino do livro, envolvida nas ideias apresentadas em cursos e palestras tentando salvar o império das publicações escritas. Perdi muito tempo acreditando em conversas tolas como as crianças acreditam em Papai Noel, assombrações e etês daqui e d’além mar. Burra, burra e burra, tapada, toupeira! Como se pode criticar algo que não se conhece? Que sabia eu de computadores e virtualidade? Resposta: NADA.
Roda o mundo e o meu cunhado no meu pé me cativando e propagandeando a informática. E eu feito moça virgem fechando as pernas e dizendo não, não e não. Roda de novo o mundo e a dor é que ensina a gemer. Fui me ambientando com a informatização e descobri maravilhas, inclusive livros. Todo tipo de livros! Em diversas línguas. Li e leio textos na Internet aos quais não se tinha acesso fácil em Aracaju dos anos 70, como acontecia na Era Medieval. Dispúnhamos de apenas uma livraria. Comprávamos as novidades em Salvador ou em outras praças comerciais mais desenvolvidas. Os livros eram estrelas e os alunos eram os sapos.
Meu Deus, o que eu estava perdendo! Quanta beleza, movimento e praticidade! Quanta velocidade na Era Digital! Não precisava mais ter tanto trabalho e nem preocupação com os homens de macacão azul e letreiro nas costas. Na certa eles me xingaram na saída: PROFESSORA CHATA! PRA QUE TANTO LIVRO? Certa ocasião, um mais ousado perguntou: A SENHORA LÊ TODOS ESTES LIVROS?
Voltando ao homem-livro, eu fiquei me perguntando quais os resultados dessa distribuição farta por ele efetivada a partir de doações, se o governo já tem programas de milhões de reais e o que a gente vê é livro menosprezado. Vale lembrar que a distribuição dos livros à rede pública conta com acompanhamento didático-pedagógico.
Ocorre-me agora que, outro dia, a mídia veiculou uma matéria sobre um brasileiro inventor de um pequeno computador que seria distribuído a mãos cheias nas escolas públicas de todo o país. Depois veio o silêncio, Que fim levou o projeto de inclusão digital?
E ainda gostaria de perguntar: Não é para cuidar da Natureza? Será que as famílias de classe média alta querem mesmo seus filhos somente abraçados aos livros? Será? Sejamos sinceros. Que aconteceria em uma lan house se alguém chegasse oferecendo livros aos jovens, pedindo-lhes para saírem dos pcs e ler livros de papel? O que será das editoras se o governo parar de comprar carretas e carretas de livros?
Li uma afirmação de Bill Gates dizendo que seus filhos teriam computadores e livros também. Aí sim, falou a voz da inteligência. Precisamos democratizar os dois: livros de papel e e-livros. Agora, como é que alguém vai conseguir a proeza de fazer os jovens dividirem o amor ao computador (o que não lhes foi ensinado, mas aconteceu por encanto) com os livros? Eu mesma não sei. Eu sei que o livro era o computador da minha infância.
Meu senhor dos livros, vamos pedir a Deus e aos governantes para providenciarem imediatamente computadores para a garotada. E vamos mudar um pouco a frase: “Um país se faz com homens, livros”... E acrescentar: e computadores com acesso à Internet.
Quem fizer de conta que não entende o que digo, pode me torrar na fogueira da Inquisição. Serve também a de São João. Morrerei como Jeanne D’Arc.