PÓS-MODERNIDADE E REPRESENTATIVIDADE: o Hip Hop como expressão sociocultural das periferias

RESUMO

Este artigo pretende analisar sob a temática do pós-moderno na comunicação e sociedade contemporânea, as manifestações socioculturais das periferias das grandes cidades como modo de reflexão da realidade em que se vive. Para tanto, torna-se importante a análise do Hip Hop dentro desse contexto que evidencia a pós-modernidade como abertura para novas formas de expressões artísticas, culturais e identitárias.

Palavras-chave: Pós-modernidade, periferia, hip hop, representatividade.

INTRODUÇÃO

O conceito de pós-modernidade está diretamente relacionado ao surgimento de novas expressões sociais e culturais na contemporaneidade, sentidas num primeiro momento nas artes e na arquitetura, que motivaram mudanças significativas na percepção e na sensibilidade do indivíduo. Dessa forma, ao se mapear o pós-moderno (HUYSSEN, 1992), observa-se que o conceito de pós-modernidade não é fechado, mas constituído de várias posições e possibilidades.

Registra-se, contudo, em importante setor de nossa cultura, uma mudança nas formações de sensibilidade, das práticas e de discurso que torna um conjunto pós-moderno de posições, experiências e propostas distinguível do que marcava um período precedente (HUYSSEN, 1992, p. 20).

Foi a partir da década de 60 que essas mudanças começaram a ocorrer. Surgiram movimentos de ruptura e de contestação das formas tradicionais e canonizadas de cultura e arte. Huyssen aponta como exemplo disso a Documenta, movimento artístico caracterizado como antimodernista, apesar de, em sua sétima edição, em 1982, apresentar resquícios de uma velha noção de arte. A Documenta 7 “representa o tipo de restauração pós-moderna de um modernismo domesticado” (HUYSSEN, 1992, p.19). Apesar disso, ela é um exemplo importante para pensarmos e questionarmos a trajetória do pós-moderno na sociedade e as concepções de alta e baixa cultura, pregada pelo status quo.

A arte, enquanto produto do conhecimento humano, sempre sofreu mediações para ser compreendida. A sacralização artística não permitia novas interpretações, assim, era instituído um lugar de poder entre o artista e o apreciador da arte. Além disso, era rebaixada toda produção artística ou cultural que não seguisse aos padrões estabelecidos socialmente e politicamente.

Entre as manifestações culturais e as instâncias propriamente políticas existem portanto mediações. Sem elas corre-se o risco de indevidamente politizar a compreensão analítica, deixando-se de lado aspectos importantes, às vezes definitivos, da constituição de alguns fenômenos sociais (estética, religião, etc.). De qualquer maneira, conceber a esfera da cultura como um lugar de poder significa dizer que a produção e a reprodução da sociedade passa necessariamente por sua compreensão (ORTIZ, 2006, p. 181).

No entanto, a pós-modernidade proporciona outras leituras, diminuindo-se a distância entre alto e baixo, entre criador e espectador, dando a possibilidade deste último fazer parte também do exercício de poder da obra de arte. Mas, se na Documenta 7 ainda era evidente o desconforto modernista: “Não toque! Isso é arte!” (HUYSSEN, 1991) deve-se ao diálogo existente entre a modernidade e a pós-modernidade, realidade dicotômica que ora marginaliza um termo, ora acirra ainda mais o debate entre ambos.

Em quase todo o debate sobre o pós-modernismo, um modo de pensar muito convencional tem se afirmado. Ou se diz que o pós-modernismo está em continuidade com o modernismo, caso em que todo debate que oponha os dois fenômenos passa a ser ilusório, ou se sustenta que há uma ruptura radical, um corte em relação ao modernismo, que é então avaliado em termos positivos ou negativos (HUYSSEN, 1992, p. 22).

É nesse contexto que artefatos culturais não canônicos adquirirão características plurais na contemporaneidade e ganharão espaço fora de uma lógica estrutural. Paralelamente, “as velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno” (HALL, 1999, p. 7). Torna-se possível, então, a análise da pós-modernidade como campo de estudo em que é possível repensar as estruturas, ocupando-se do “pós” como tudo que se opõe do que fora construído historicamente e socialmente como “centro”.

HIP HOP: O GRITO DAS PERIFERIAS

Pensar a periferia das grandes cidades e sua relação com a pós- modernidade é também pensar a relação que há entre as minorias e os grupos de poder estruturados ao longo dos anos na sociedade. O modo de representação da periferia como “pós-centro”, dentro da perspectiva “pós-estrutural”, considerando-se ainda o cenário brasileiro, de certa forma, tenta mostrar o lado da cidade que muitas pessoas não visualizam: a mulher que lamenta pelo marido outrora vivo, o filho que chora pela mãe que não mais voltará, os jovens que buscam formas para expressar sua revolta.

A violência, o desrespeito, o sofrimento, a indiferença, a impunidade e, principalmente o preconceito fazem parte da vida de quem mora nos bairros mais pobres e esquecidos pelo poder público. De que maneira, então, essas pessoas, em especial os jovens excluídos pelos padrões do cânone podem mostrar e expressar a indignação contra essa exclusão? Em se tratando de periferia muitos pensariam nas piores atitudes em resposta a essa pergunta, mas, em meio a tantas armas das quais esses jovens poderiam utilizar, muitos deles escolhem a mais eficaz: a cultura hip hop, afinal, a cultura pertence àquele que é capaz de produzi-la (ROCHA et al., 2001).

Vem em ondas concêntricas e vai tomando as zonas centrais, as circunvizinhanças dos ricos condomínios, as universidades – um brado que fede, que arde, que sangra, que dói –, carregado de miséria, de fome, de desemprego, desabrigo, de violência, de crueldade, de álcool, de drogas, de estampidos e de carências (de oportunidades, de educação, de saúde, de respeito, de direitos, de futuro) (ROCHA et al., 2001, p. 9).

O hip hop é uma cultura de rua nascida nas favelas. Dos bairros periféricos norte-americanos às favelas brasileiras, foi ganhando forma e conteúdo, com ritmo e sonoridade. Semelhante a maioria das manifestações que nascem do sofrimento humano, fazendo-se revelar os problemas sociais, ajudando muitas pessoas a encontrar sua identidade e a elevar sua auto-estima, o hip hop é fruto da junção de quatro manifestações artísticas que agregam principalmente afrodescendentes e excluídos, agrupados nas zonas urbanas. O break, o grafite, a discotecagem e o rap são as vertentes que compõem essa expressão cultural de caráter contestatório e reflexivo.

Na década de 70, em protesto contra os constantes conflitos armados pelo mundo surge o break, do inglês “quebrar”. Suas primeiras manifestações foram em Porto Rico, caracterizadas pela expressividade corporal. Os primeiros breaks que surgiram nas ruas de Bronx, bairro de Nova York, faziam uma espécie de protesto contra a guerra do Vietnã, por meio de passos de dança que simulavam os movimentos dos feridos da guerra:

“cada movimento do break possui como base o reflexo do corpo debilitado dos soldados norte-americanos ou demonstra a lembrança de um objeto utilizado no confronto com os vietinamitas, como o próprio giro de cabeça” (ANDRADE, 1996). Nesse movimento, o dançarino fica com a cabeça no chão e, com as pernas para cima, procura girar todo o corpo. O movimento das pernas no giro de cabeça também alude às hélices dos helicópteros, largamente utilizados na guerra do Vietnã (ROCHA et al, 2001, p. 47).

Um dos precursores do break no Brasil foi Nelson Triunfo, nos anos 80. Quando começou no país, os jovens dançavam apenas para se divertir, sem saber a importância do significado dos movimentos.

O grafite “é a arte plástica genuinamente urbana”. Também de cunho contestatório, cores e formas imaginárias surgem nos muros das cidades, que além de telas imensas expostas aos olhares urbanos, são demarcações territoriais das “gangues”. A matéria-prima do grafite são basicamente as paredes e o spray, este último, possibilita um acabamento estético inovador para as artes plásticas contemporânea. Ao contrário de uma galeria de arte moderna, o grafite dos muros da cidade, agrega espectadores que vão da alta sociedade ao simples favelado, além de dispensar mediações para a compreensão da obra. Dessa forma, podemos considerar o grafite como uma expressão essencialmente pós-moderna, uma vez que é uma obra de arte aberta a todos os olhares, sujeita a interpretações variadas, sem promover a exclusão nem a seleção de pessoas. Por conseguinte, a arte de grafitar ajuda na dissolução das fronteiras que existiam ainda na modernidade, no que tange às concepções de arte e cultura.

Chamar a atenção da sociedade para problemas sociais, sempre foi um dos objetivos do grafite. Sua origem é imprecisa. Uma das versões mais aceitas é a de que o grafite teria surgido no final dos anos 60, nos Estados Unidos, como uma forma de protesto contra as condições precárias do gueto (ROCHA et al., 2001, p. 97).

A discotecagem, terceira vertente do hip hop, é a função exercida pelos Djs (disc jóqueis). Causou uma revolução no meio musical ao utilizar pequenos trechos de composições conhecidas, repetindo-os em seqüência através de aparatos eletrônicos.

O Dj Grandmaster Flash, entretanto, foi quem aprimorou muitas técnicas da discotecagem do estilo hip hop, como a colagem, a sincronização e a mixagem de trechos de diferentes vinis. Alem disso, criou a primeira bateria eletrônica do hip hop, que batizou de beat box (ROCHA et al., 2001, p. 128).

A quarta e mais popularizada vertente do hip hop é o rap, trazendo consigo uma responsabilidade muito grande: a de proferir o discurso que fala diretamente aos seus adeptos. Ou seja, o rap é um tipo de linguagem que fala a mesma linguagem disseminada no mundo do hip hop. Essa expressão vocálica do movimento é desempenhada com desenvoltura e malemolência rítmica pelos chamados MCs, os “Mestres de Cerimônia” (ou “microphone controller”). Por cima das bases tocadas pelos Djs, os rappers, proferem rimas que incitam seus ouvintes ao questionamento político e à reflexões acerca das injustiças e desigualdades sociais. Desse modo, o rap representa tanto uma opção de lazer, quanto uma forma de expressar a revolta provocada pela exclusão.

As letras do rap procuram mostrar o dia-a-dia da favela, as histórias e as injustiças sofridas em meio à periferia. Retratam a violência, a miséria, o abandono e a tristeza de uma juventude que não tem muito o que sonhar. Não há dúvida de que o rap é uma válvula de escape artística daqueles que sofrem preconceitos variados e que são obrigados a viverem à margem da sociedade. Contudo,

é nos anos 90 que, pela narrativa das letras de rap, os desajustados, favelados, ladrões, meninos de rua, detentos, ex-detentos, toda uma legião de deserdados da cidade [...], deixaram de aparecer apenas como vítima [...] tais personagens passaram a mostrar que “têm humanidade” nas letras e que podem ser protagonistas de suas histórias e memórias (ROCHA et al., 2001, p. 75-76).

Além disso, os jovens da periferia sentem verdadeira admiração e fascínio pelos rappers, vendo neles um modelo a ser seguido. Ser um rapper é o sonho de grande parte das crianças e adolescentes da favela que convivem desde cedo com a criminalidade, presenciam constantemente o tráfico de drogas, são platéias do abuso de poder dos policiais e que de certa forma são mutilados quando perdem seus parentes e amigos, vítimas de bala perdida. Neste caso, a música é maneira mais pacífica e direta que esses jovens têm para protestar, mostrar sua cara e contar suas histórias de vida, como no trecho da música “Gueto” de Marcelo D2:

Eu to na rua e vejo a vida como um vídeo clipe/ Problemas passam como um clipe/ Armas e brinquedos/ Se confundem nas mãos de uma criança/ Eu até entendo quem não tem mais esperança/ É que eu vim da zona norte/ Um lugar pobre/ De gente honesta e humilde/ Mais gente nobre [...] Ta na hora de levantar e lutar/ Revolução a qualquer custo [...] E não preciso abaixar minha cabeça/ E nem preciso falar mal de ninguém/ O que eu preciso é me focar no meu trabalho/ Me focar na minha família/ Que aí o meu sucesso vem [...]. (“Gueto”, Marcelo D2).

PERIFERIA, REPRESENTATIVIDADE E MÍDIA

A periferia em toda sua diversidade e representatividade nesse universo do pós-moderno, apropia-se também dos meios de comunicação, que estão ao seu alcance, como instrumentos de inclusão e participação da comunidade, no que diz respeito ao exercício da cidadania, à reivindicação dos direitos, ao combate da violência e à divulgação dos trabalhos sociais e culturais desenvolvidos na própria comunidade. É nesse espaço também que o Hip Hop e suas variadas expressões, principalmente o rap, dotado de musicalidade e expressividade, ganham os ares através das rádios comunitárias.

As rádios comunitárias possuem uma programação voltada para os problemas e a realidade do bairro ou região, valorizando a cultura local. Um exemplo de rádio que desempenha esse papel importante é a Favela FM (104, 5 MHz), considerada a rádio comunitária de maior audiência no Brasil, atuando principalmente na periferia de Belo Horizonte. Com programação também na internet (www.radiofavelafm.com.br), “a Favela FM tem uma história marcada pelo protesto, pela resistência e defesa da cidadania” (ROCHA et al., 2001). Em decorrência, a história da Favela FM está relacionada com a divulgação do hip hop pelo país: “Desprezado pelos meios de comunicação o hip hop encontrou nas rádios comunitárias um microfone aberto”, afirma Rocha et al (2001).

Por outro lado, até 1997, antes do lançamento do CD “Sobrevivendo ao inferno” do grupo Racionais MCs, não havia uma notável divulgação do hip hop na mídia oficial. Esse distanciamento, a princípio, entre a mídia e os rappers deve-se ao fato de o hip hop ter sido muitas vezes associado à violência, pelos meios de comunicação, em especial a TV. Certamente isso resultou na aversão que muitos happers têm à mídia de massa até hoje, como é o caso dos Racionais MCs. Mas isso tem mudado nos últimos anos. Na sociedade em rede (CASTELLS, 1999) em que vivemos, marcada por um contínuo fluxo de informação e pela popularização da cultura, a mídia se vê obrigada a abrir espaço para movimentos como o hip hop. Da mesma forma, “o rap também se apropria dela para garantir espaço para as denúncias e propiciar que outros grupos sociais [...] possam fazer parte desse mundo rapper” (GUIMARÃES, 1999). É importante ressaltar que a TV, no Brasil, foi o último meio de comunicação a abrir espaço para o rap.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até aqui foi possível compreender aspectos da pós-modernidade dentro de uma perspectiva sociocultural, no que diz respeito ao estudo de grupos minoritários que ocupam o cenário das periferias das grandes cidades. Percebe-se que esses grupos constituídos essencialmente por negros, pobres e marginalizados, vítimas até hoje do sistema excludente da sociedade, são produtores de cultura, de música e de arte como qualquer outro e expressam-se conforme a necessidade de sentir-se ouvidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

GUIMARÃES, Maria Eduarda Araújo. Rap: transpondo as fronteiras da periferia. In: ANDRADE, Eliane Nunes de (org). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Sammus, 1999.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 1999. 102 p.

HUYSSEN, Andreas. Mapeando o Pós-Moderno. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Pós-Modernismo e Política. 2a edição, Rio de Janeiro, Rocco, 1992.

ORTIZ, Renato. Sobre os estudos culturais. In: _______ Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Brasil, 2006.

ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella; CASSEANO, Patrícia. Hip Hop: a periferia grita. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. 157 p.

Música: “Gueto”, Marcelo D2. Disponível em: <http://vagalume.uol.com.br/marcelo-d2/gueto.html>.

Rádio Favela FM. Disponível em: <www.radiofavelafm.com.br>.

Pedro Díaz
Enviado por Pedro Díaz em 05/02/2010
Código do texto: T2071679