UMA BIOGRAFIA DE DEUS
Deus não tem pai, nem mãe, nem irmãos, nem esposa; não tem história, nem pátria... Um ser assim pode ter biografia? Parece que não. Mas o americano Jack Miles, jornalista e Doutor em línguas do Oriente Próximo pela Universidade de Harvard, publicou o volumoso livro: Deus - uma biografia (traduzido pela Companhia das Letras). A originalidade deste livro consiste em tomar a Bíblia como uma obra literária, cujo personagem principal não é o ser humano, a criatura, mas Deus, o criador. Não se trata de provar se Deus existe ou não existe, mas apresentar Deus como personagem literária real, que, queiramos ou não, vem moldando a cultura e a civilização ocidental há milênios.
Em sua abordagem "biográfica", Jack Miles não discute a ortodoxia ou heresia de representações religiosas de Deus, mas mostra como o Deus bíblico, que hoje conhecemos, foi desenvolvendo sua rica personalidade gradativamente, absorvendo em si aspectos do caráter de outros deuses do mundo antigo. Desta forma foi atendendo às necessidades da evolução social e psicológica de sua "imagem e semelhança", a espécie humana. A obra de Miles, sob certos aspectos, é mais esclarecedora sobre o conceito de Deus do que muitos compêndios teológicos.
Também nos nossos dias a Bíblia continua sendo bestseller literário (e religioso), cujo personagem principal, Deus, é o mais conhecido e influente personagem de todas as obras literárias. Independentemente de nossa fé, ou nossa descrença. Deus está presente no imaginário e nas expressões culturais de bilhões de homens, no Ocidente e no Oriente. Mas, o que hoje somos capazes de articular mais adequadamente em nossas cabeças e em nossos corações sobre o processo de seu "nascimento" na história da humanidade?
Na cultura bíblica o homem é encontrado por Deus, enquanto nas culturas de outros povos o homem procura a Deus. E este Deus que encontra o homem, embora paradoxal em seus atributos, nunca é orgiástico, como a maioria dos deuses dos outros povos. É Criador, e não reprodutor. Não possui atividade sexual, mas mexe com a sexualidade humana, exigindo, inclusive, um pedacinho do pênis de Abraão e de seus descendentes. Intervém até na fertilidade dos animais, para enriquecer a Jacó. Mas isto são acidentes, pois o que de fato interessa é que o homem seja "sua imagem e semelhança". Embora criador da vida, em certo momento, se arrepende de sua criação e se transforma em exterminador (dilúvio, sodoma...).
Ele que é o grandioso criador do Universo não se acanha em aparecer a Abraão, se mostrar como o Deus de Abraão e de seu clã, oferecendo compulsoriamente sua aliança. Este mesmo Deus, quando liberta os judeus do Egito, se mostra um guerreiro cruel. No Monte Sinai amedronta o povo, e compactua com Moisés no extermínio de milhares de israelitas. A partir da legislação mosaica, Deus se torna moralizador, exigindo um culto e, posteriormente, uma casa para habitar (o templo). Em momentos posterioires propõe tolerância e, inclusive, usa de outros povos como seu flagelo para castigar o povo eleito infiel, pois é ciumento de sua propriedade. Entretanto, neste contexto paradoxal da "biografia" de Deus, surgem lances nos profetas em que este SER se torna misterioso, e se caracteriza como "aquele que é o que faz". Seus atributos vão adquirindo feitura mais adulta. E o "Deus de nossos pais" vai se mostrando miseriocordioso e amoroso.
Jack Miles, em seu livro de 500 páginas, naturalmente, se aprofunda muito mais na "biografia de Deus" do que nós, nesta curta análise. É evidente que é impossível escrever uma biografia de Deus, como são as biografias dos homens. E o atual Deus da cultura ocidental "biograficamente" se revestiu do cristianismo. Mesmo assim, verifica-se que as representações de Deus nas mentes de muitos homens de hoje se ancoram ainda na "infância de Deus": um deus antropomorfo, reduzido, mesquinho, que a toda hora se imiscui nas mesquinharias e fofocas dos homens. Na verdade, nosso Deus (o verdadeiro Deus) é mais grandioso do que o Universo maravilhoso que Ele criou. E o conhecimento deste Universo de Deus, hoje, se ampliou imensamente em relação ao Universo da Bíblia. Diz o Apóstolo Paulo, no primeiro capítulo de sua carta aos Romanos, que ao homem é possível conhecer os sinais do Deus invisível através do mundo visível. Desta forma, se o homem estuda e pesquisa a natureza ele é capaz de engrandecer Deus em sua mente, reconhecendo as maravilhas dos descobrimentos científicos. Assim podemos reconhecer que hoje Deus se revela no Universo naquilo que o homem é e faz de maravilhoso. Neste sentido, literária e espiritualmente, ainda hoje Deus continua enriquecendo sua "bibografia".
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