Morte às mulheres?
A morte parece menos terrível quando se está cansado (Simone de Beauvoir)
Lúcio Alves de Barros
É no mínimo um absurdo o que ocorreu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, com a cabeleireira Maria Islaine de Morais, 31 anos de idade, assassina com 09 tiros em pleno ambiente de trabalho. Se uma simples briga de marmanjões já é de causar ojeriza em pleno século XXI, imaginem o que não nos espera após um acontecimento destes, que, na certa é somente um dentre tantos que a mídia resolveu dar notoriedade devido aos requintes de sensacionalismo e espetáculo.
O acontecimento tomou o noticiário local e nacional e de quebra ainda foi filmado e jogado nos meios mais obscuros e menos obscuros de busca na internet. Na tela, é possível ver o borracheiro Fábio Willian da Silva Soares, 34 anos, (já detido no Centro de Remanejamento de Presos (Ceresp)), ex-marido de Maria Islaine, retirando uma arma, apontando e depois a descansando sobre o corpo da jovem mulher. O assassinato aconteceu no bairro Santa Mônica considerado calmo e tranquilo. Todavia, o problema não está neste cenário.
Em primeiro, é óbvio que o crime foi passional e tudo indica que foi motivado por ciúmes. Os advogados criminalistas vão se fartar desse episódio, haja vista que o “amor” que mata não tem voz, olhos, tampouco corpo e é um ótimo produtor de provas, bastando ver os requintes de crueldade e meditação do opressor. Dependendo do escritório, do poder de mando e de quem estiver atrás desse coitado, não deve ir muito longe o seu martírio.
Em segundo, e este talvez seja o mais importante, é que o relacionamento que não deu de certo do casal há muito já tinha chegado às barbas da polícia e, por ressonância, do judiciário. O caso de Maria Islaine é emblemático do caos que se transformou a violência doméstica. Não é preciso ser criminalista ou coisa parecida para perceber que neste campo estamos engatinhando há muito tempo. A Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340), provavelmente uma das únicas pedras de segurança das mulheres tem se mostrado falha e não passando de letras “para inglês ver”. De acordo com o noticiário e as entrevistas que pipocam aos montes, a cabeleireira já havia inúmeras vezes denunciado o ex-marido por violência e ameaça de morte. A despeito da segurança que a Lei Maria da Penha (a qual, por pouco não teve o mesmo destino) diz garantir Maria Islaine está morta e, no caso, é importante rever o que aconteceu para se chegar a esse desastre.
Já se tornou senso-comum afirmar que todo crime tem um histórico, logo, um início, meio e fim. Para economizar linhas, já era de conhecimento dos parentes e da vizinhança que Maria Islaine havia procurado a delegacia para processar o ex-marido espancador. O problema reside justamente aí. Delegados e juízes, polícia e promotores parecem que agora não falam a mesma língua. De acordo com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, não foi expedido nenhum mandado de prisão contra o borracheiro porque o tribunal não teria recebido o famigerado inquérito policial (o delegado tem 10 dias para enviá-lo ao tribunal) com as denúncias da cabeleireira Maria Islaine. Por outro lado, o advogado da vítima tem mostrado a todos os documentos enviados e protocolados a 13ª Vara Criminal, na qual pediu por nada menos que três vezes a prisão do recalcitrante. A última delas teria sido no mês de setembro do ano passado.
A questão vai ficando mais séria, porque no dia 09 de maio de 2009 Maria Islaine foi ao Ministério Público (MP) para solicitar a prisão preventiva do agressor. As informações daqui para frente devem ser motivo de investigações, porque agora segue o que é comum no Brasil, um “empurra-empurra” para todo lado no intuito de ninguém assumir a culpa e ficar por isso mesmo, ou seja, o inquérito chegou ou não chegou ao Tribunal. Ora, a Lei Maria da Penha afirma em alto e bom som para quem sabe ler na Sessão II (Das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor) que:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Parágrafo 1° - As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
Parágrafo 2o - Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
Parágrafo 3o - Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
Parágrafo 4o Aplica-se às hipótese previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos parágrafos 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).
Não é preciso nem ser adulto para entender o que diz com clareza a Lei Maria da Penha. Dito de outra forma, se a lei fosse efetivamente seguida o pior não teria acontecido. No caso de Islaine o episódio se reveste de complexidade, pois, pelo que consta ela tomou os devidos cuidados. O problema – e poucos vão querer ver – está no processo judicial e, por conseqüência, nos homens e mulheres que são pagos pelo erário público para cuidar dele. Onde parou o tal inquérito? O assassinato poderia ser evitado?
Os discursos psicológicos ou psiquiátricos podem até defender que não. O que seria uma boa defesa para o assassino o qual teria tomado a decisão em plena irracionalidade ou loucura. Todavia, o fato é que o acontecimento, agora midiático, revela uma complicada, fedida e séria ferida no sistema judiciário. Na verdade, ele não funciona, não está aparelhado para combater e tampouco controlar a violência doméstica, bastando ver a realidade das delegacias que estão longe do cenário que apregoa a Lei n° 11.340. Na realidade a lei no Brasil historicamente é para poucos e a legalidade está longe de se tornar direito, especialmente, para a camada mais pobre da sociedade. Talvez mais que isso, a polícia e o judiciário - com raras exceções - ainda não concedeu o valor necessário para os casos que envolvem passionalidade, e, por fim, sendo muito cruel com as palavras, a sociedade machista autoritária, hierárquica e excludente como é a nossa está pouco se lixando para o que acontece com as mulheres. A favor do meu argumento peço que observem os dados veiculados pelo Jornal O Tempo (22/01/2009). Nele ficamos sabendo que no último semestre o número de processos referentes à violência contra a mulher mais que dobrou na capital mineira: de 11 mil processos (dados de junho de 2009) passamos para 24 mil em dezembro no mesmo ano. Se este fato não revela uma crise não sei o que está mostrando, embora seja incontestável que não existe o mínimo de articulação entre os órgãos envolvidos: polícias Civil e Militar, Defensoria Pública, Ministério Público e o Poder Judiciário. O problema é que não pode restar à população computar a próxima vítima ou a próxima morte, porque de acordo com os dados são 20 os casos de agressões - na média diária - registrados em BH. Que as luzes não se apaguem em tais acontecimentos, pois é provável que após o primeiro silêncio noturno venha uma enxurrada de gritos de terror do que há tempos Schopenhauer e Simone de Beauvoir chamaram de “segundo sexo”.