OBRIGADO, DRA. WANDA!
(I n m e m o r i a m)
Não me lembro de tê-la visto antes, na Auditoria Militar, durante as nossas audiências preliminares. Sei apenas que a vi, com toda a sua pujança de advogada (e não chicaneira forense), no dia D do nosso julgamento. Aliás, uma farsa em que o regime de então tentava qualificar como “subversivo” um punhado de pessoas inofensivas e trabalhadoras. Decorria, ali, o ano gris de 1974.
Com a batuta da defesa dos “doze apóstolos”, o Dr. Pádua Barroso – não menos brilhante advogado – precedeu a dama intrépida com uma elocução irônica e, como se costumava dizer, em assuntos de Retórica, em estilo grandiloquente. De fato, trata-se de um excelso causídico que sabe utilizar com maestria as armas da ironia e da eloquência. Ele se deteve, com vagar, nas causas da irmã (Ester Barroso) e do cunhado dele (Gilvan Queiroz da Rocha), que se exilara em Portugal, carregando o pseudônimo de Clóvis Pinheiro Tavares.
O Dr. Pádua, como um demolidor de medíocres, não deixava por menos a fragilidade da ditadura institucionalizada, em 1964, e revigorada, com o AI-5, do ditador Costa e Silva, em dezembro de 1968. Ao atuar na defesa do grupo do MCI*, de vez em quando, o hábil advogado passava na rosca do nariz dos “juízes” das Forças Armadas que morria de pena de um regime que estava a morrer de medo daqueles “doze apóstolos”.
Sem dúvida que a cutucada ácida e sardônica do Dr. Pádua, com tanta insistência, devia arder como pimenta nas orelhas do postiço júri de oficiais. Um deles, médico da Aeronáutica, havia sido meu colega nos bancos do curso médio, atualmente ensino fundamental. Ironias à parte, com pose e verbo fácil de um Cícero a acusar Catilina, o nosso defensor nos apontava, com gesto teatral, exibindo mais picardia na voz e elegância nos movimentos pausados. Com efeito, lá no banco dos “réus”, nós – indiciados em processos de crime contra a “segurança nacional” – éramos apenas doze, a exemplo dos discípulos de Cristo.
Mas, feita a digressão necessária, de volta ao começo, retomemos a figura exponencial da Dra. Wanda Sidou, que a ela é que se deve a razão essencial deste simples artigo**, ‘in memoriam’. Absolvido todo o grupo da sigla de esquerda, já que não praticáramos crime algum, foi a partir daí – no dia da absolvição – que soube quem verdadeiramente era aquela briosa mulher que, em defesa de acusados de “crime político”, virava uma fera e declamava versos inflamados de Vinícius de Moraes, ao invés de pregar loas ao ‘status quo’, como soem fazer os finórios.
Valente, ao longo de toda a sua oração, a Dra. Wanda sapecava petardos veementes em cima dos homens de plantão, no Palácio do Planalto. A defesa dos “doze apóstolos” (o 13º, Gilvan, estava no exílio) era, na verdade, um bombástico libelo contra a ditadura. Num dado momento, fiquei meio cabreiro, desconfiado, se querem que fale com limpidez semântica. Pois até parecia que a nossa defensora jogava cartada decisiva, arremetendo seus “scuds” (bombas, petardos) contra o regime de exceção. Por instantes, confesso, temi que aquela danação de tática nos empurrasse involuntariamente à reclusão do Paulo Sarasate, tal era o belo espetáculo de esculacho, eloquência, picardia e coragem demonstrado pela Guerreira da Liberdade***.
Recordo-me, ainda, dos versos de “Os homens da terra”, do Vinícius, citados pela Guerreira da Liberdade, no bojo da Auditoria Militar. Ouço, ainda agora, bem à altura do final do poema, a voz firme e destemida da nossa benfeitora, sem dúvida alguma uma cearense de muita fibra: “Não a foice contra a espada, / Não o fogo contra a pedra, / Não o fuzil conta a enxada: / – Granada contra granada! / – Metralha contra metralha! // E a nossa guerra é sagrada, / A nossa guerra não falha!”
Há cerca de um mês faleceu dona Wanda Sidou, uma altruísta. Não fui diretamente seu constituinte. Mas, atuando nas lides do Direito, defendeu a gente simples e pobre. Sobretudo, como o jurisconsulto Pádua Barroso, ela defendeu acossados pelos regimes políticos. Advogada (e não chicaneira forense, eu repito), devotou-se bem mais, no tempo gris, à causa de presos e perseguidos pela ditadura. Não era raro que trabalhasse de graça – isto foi o que soube depois. O livro do meu ex-mestre, Ari Sidou, confirma tal verdade.
Uma valente mulher, discípula de Sobral Pinto, foi o que ela foi. Por certo, tal como o velho mestre carioca, não acumulou fortuna material. No entanto, sem contestação, deixou algo que não tem preço: a dignidade. Pelos seus honorários que os ex-presos políticos nunca lhe pagamos direito, Dra. Wanda Sidou, aceite, aí do Além, a nossa gratidão. Pelos seus préstimos, gratuitos ou não, a estudantes e operários, religiosos, professores e jornalistas, médicos, cidadãos do povo, enfim, a todos quantos procuraram sua ajuda profissional, como advogada, o nosso mais enternecido “muito obrigado!” Pelos seus versos de coragem, no caso do MCI, a desafiar o latifúndio..., também a ditadura.
Irmã de dois dos meus velhos mestres (dos melhores que conheci), dona Wanda Sidou foi um exemplo de mulher-heroína. Adeus, belo espécime de bom-caráter, porque a senhora nunca fez da nobre profissão que exerceu (como tantos) um balcão de chicanas e tramoias.
P. S.: Hein, Mirtes Alcântara Nogueira, nem deu tempo fazermos aquela visitinha que planejamos fazer à Dra. Wanda, ainda com plena saúde?! Ela se foi mais cedo que o esperado.
Setembro de 1993.
Fort., 14/01/2010.
- - - - - - - - - -
(*) Movimento Comunista Internacionalista.
(*) Este artigo eu o escrevi, em set., 1993, quase um mês após o falecimento da advogada Wanda Othon Sidou. Foi publicado no jornal O Povo, Fortaleza, caderno especial “Jornal do Leitor”, 31/10/1993, p. 28. A atual (jan., 2010) transcrição sofreu apenas leves revisões.
(***) O epíteto vem do livro “Wanda Sidou: Guerreira da Liberdade”, autoria do prof. Ari Othon Sidou, irmão da advogada; Expressão Gráfica Editora, Fortaleza, 2008.