SAUDADE BUCAL
Saúde. Saudade. Quem tem saudade altera a própria saúde. Quem tem saúde está em plenas condições de ter saudade. Bocas vão e vêm, tem tantas utilidades, padecem sobre tantas formas, tantos brilhos, maldições e máscaras as perseguem, no entanto sempre são bocas e todas fazem o que todas devem fazer. Algumas agem com mais naturalidade, outras mais sofreguidão. Cospem, sorvem, sorriem, beijam, falam, e chupam. Apoderam-se de atos tão comuns e inesperados, pois espera-se sempre que a comandemos, que sejam apenas, simples e eternamente somente bocas. Solitárias, na busca de salivas menos insípidas elas não agem sozinhas, são tão dependentes de antagonistas e coadjuvantes que a habitam. Morder, matar, jantar, ameaçar, a primeira impressão e simpatia, cabe isso aos dentes! Não podemos julgar, não devemos acusa-los, eles seguem o cérebro. São executores cegos e molhados de quem realmente manda. Trinta e poucas peças essenciais e tão maltratadas. Coitadas!
Eles nos falam tanto, mas não queremos ouvir, a menos que rinjam durante a noite. Não o sentimos, a menos que na infância nos contemple o efêmero mastigar, ou na juventude o sinal de juízo compareça. Não o desejamos nada, a menos que sejam perfeitos, que sejam como cavalos, ou que se morda os lábios.
Haverão sempre dúvidas: eles têm amigos? Eles são felizes? Eles são brancos? Eles estão limpos como deveriam? Um inimigo e salvação: o odontologista o trata com desdém pois sabe que eles estão nas suas mãos. O doutor discorda da língua, odeia sua cor querendo ser vermelha mesmo, sua incontrolável convulsão: mexer-se, mexer-se, mexer-se. É inexplicável, tão expressiva, e boba. Tão boa atriz e companheira. O doutor tem vontade de vestir de qualquer coisa as bochechas, e refazer toda gengiva. Elas trazem medo, insegurança. Na haveria outra maneira de suportar a arcada? Dura poucas horas, mas todo o branco de boca coberta e motor agitado é inesquecível!
Existem flores neste mundinho úmido deles, e mesmo que elas não sejam de comer, são deliciosas, pois fiscalizam, presenciam momentos marcantes, aconselham, estão juntos em qualquer situação, a noiva de toda boca. Idealizada no antigo Egito de pêlos de porco, hoje se constitui das mais exóticas cerdas, a escova de dentes ama consideravelmente os que zela, historia, flagela, limpa.
Não interrompemos nossas medíocres vidinhas calculadas de mega sena para parar um pouco e pensar, agradecer e homenagear este símbolo de emoção que é a escova de dentes.
A relacionamos, nos relacionamos e ela está lá, sempre presente a nos curra o mau hálito e podridão deste orifício que tudo enfiamos. Sim senhores, enfiamos sem nem pensar, pois confiamos que a boa e velha amiga inseparável escova de dentes nos trará de volta a decência da boca. Se é que algum dia foi decente esta pobre enferma vítima das que se acham escova de dentes, e são tão óbvias, são tão banais e charlatãs, como não nota-las? A começar peço absurdo preço, não mais que dos ou reais, não mais que um. Um mundo policromático infestado de dores e pigmentos ludibriados. A dança perdida fingindo higiene e semanas vindouras uma cárie será canonizada em um molar ou canino qualquer. Tuas glândulas salivares como juízes apenas ficarão de cara feia enquanto o tártaro é concreto que fecha as portas.
Numa escova solitária no armário sujo, se conjuga a tristeza de um usuário que nem mais tem vontade de escovar-se. As companheiras de um espelho organizado, nas suas capas placentas sonham conhecer-se, tocar-se, viver uma história de alegrias como vivem seus donos, que de tão felizes preocupam-se com elas pois preocupam-se consigo mesmos.
A vida real é uma boca tentado ser limpa, produtos de má qualidade, um fio dental rompendo barreiras, ligando esta família que em conjunto nos positiva a refeição. Os príncipes do pedaço em linhas brancas que corajosos penetram até o sangue escorrer e dali tirar quase outro almoço. Hipócritas! Vocês não irão salvar o mundo ok? Não irão! Só machucarão ainda mais estes que vivem em paz. Cala-se tudo quando chega o rei da boca. Curvem-se diante de vossa majestade o anti-séptico bucal! O dono de uma boca pode conhecer o mar, a maresia, as encostas gritando a pureza e suavidade da natureza, mas a boca só tem noção deste prazer, a adrenalina roçando-lhe as barreiras quando o anti-séptico, ou coisas do gênero lhe brindam internamente, o bom ,velho e popular: flúor! E bem tudo é calma, em tudo é aventura, pois os dentes são os trabalhadores mais competentes que conhecemos, esta equipe que só termina seu expediente quando outra parte do corpo bem repudiada é usada, não tem hora certa para entrar em ação. A paz os enforca na sua escuridão afável, e subitamente a luz penetra ao maxilar aberto, e no espaço vermelho de aconchego depositam vorazmente, sem dó nem dor, absurdos que chamam de alimentos, sem nem olha para dentro de suas pobres bocas: comem.
Como se nada mais tivesse a fazer, comem!
E sofrem as escovas pela inesperada tortura de terem que se despertar, afastarem-se de suas tão bem gozadas prateleiras. A felicidade se reflete numa escova dental: um amor, a paixão que eterniza e enfim o casamento, é hora de juntar as escovas, e coloridas elas ficam no mesmo lugar, se conhecem e também cruzam num romance. No entanto antes do total enlace, os pombinhos em passeios e loucuras chegam a dividir a mesma escova, confusa, esta se magoa na imensidão do seu ser, pois é do seu natural instinto que deve servir a um amo só. União maior nem existe quando na dúvida, em uma asa cheia cuja parentalha aquece seus rostos em beijos e até mesmo bocas, uma interrogação ecoa na sala de jantar, a porta entreaberta: “De quem é essa escova?”ou “onde tem pasta de dente”. Não amamos nem “desamamos” estas cerdas de nossa vida, a deixamos passar, a trocamos sem necessidade, pelo simples amassar, pela instabilidade do percurso de gengivas queremos logo uma nova e sabemos o que é bom, sabemos do que nossa boca precisa, mas não sabemos é aproveitar momentos... A escova vive, freneticamente, sensivelmente, dia após dia, pois ela não sabe quando exatamente irão querer larga-la, então aproveita seus dia como se dali a pouco fosse estar no cesto de lixo, como se fosse ser passado, o pior que isso... Se subencontrar na gaveta da pia, entre utensílios de cozinha, e descobrir que mamadeiras, cantos frisos a esperam enquanto alguém ri, enquanto uma faca exibida e cheia de fio faz piadas a seu respeito. Então elas aproveitam, depois das escovas elétricas e dos limpadores de língua então, elas aproveitam muito, pois sabem que a vida delas é curta. E soquem parece ainda não ter entendido isso somos nós seus donos. Não somente sobre a vida delas, mas sobre a nossa!