Falta de leitores críticos (ParteII - Definhamento da Erudição)
Em tempos remotos, parecia ser trivial escrever utilizando-se de técnicas – pontuação, palavras invertidas, figuras de linguagem – para produzir um texto digno de admiração. E mesmo a forma culta não sendo aplicável na linguagem ordinária, era muito admirada e perseguida por todos os aspirantes ao status de escritor renomado.
Com o decorrer dos anos e com a classe baixa da população desvalorizando qualquer arte elevada e erudita, coube ao autor rebaixar sua obra ao anseio da população que a consumia ou continuar nas alturas da criação e ser desprezado por não ser entendido. Como foi dito na primeira parte, uma única obra, por estar à mercê de diversos leitores, gera opiniões diversas.
O problema é que muitos não possuem cultura suficiente para julgar. Se alguém deparar-se com um poema de Keats e não ter em seu repertório nenhuma informação referente à mitologia grega, certamente que não entenderá por completo o conteúdo do poema e assim, talvez, o achará ruim. Aí está um detalhe interessante: muitos autores já esperam que os leitores de seus textos tenham conhecimento daquilo que tratam em seus versos, contos, romances, tratados etc. E é óbvio que muitos não possuem o conhecimento exigido; esses leitores neutros teimam formular críticas vazias sobre aquilo que não entendem.
Às vezes o preciosismo enjoa, ou o exagero de detalhes torna a leitura enfadonha. Será? Como o escritor passará ao leitor a imagem ou objeto, ambiente que pretende relatar? Esse é o motivo de muitos autores usarem em demasia as palavras para denotarem a realidade que vislumbram. Mas há leitores preguiçosos que querem apenas a ação, o desfecho da história e não se interessam pelas singularidades que compõe as cenas em que passa a ação, onde foi feito aquele diálogo inesquecível, saber o que escritor imaginava. O leitor atual apenas se importa com os fatos já consumados, com os personagens sem se preocupar com o espaço em que ele está. Leiamos um trecho do conto “O pescador e sua alma” do Oscar Wilde:
“Ficamos em Illel por uma lua; quando começou a minguante, cansado, vaguei pelas ruas da cidade e cheguei ao jardim do deus. Sacerdotes de túnicas amarelas movimentaram-se em silêncio por entre verdes árvores. O piso era de mármore negro, sobre ele o templo de uma rosa avermelhado onde habitava o deus. As portas laqueadas, touros e pavões de ouro polido nelas entalhados. O teto inclinado era de porcelana verde-mar, as abas ornamentadas com pequenos sinos. Quando pombas brancas sobrevoavam o templo, tocavam-nas com as asas, fazendo-os soar.
“Em frente do templo havia uma lago de águas cristalinas revestido de ônix. Deitei-me ali, meus pálidos dedos acariciavam a folhagem. Um dos sacerdotes veio até onde eu estava, permaneceu estanque às minhas costas. Calçava sandálias, uma delas de macia pele de serpente, a outra de plumagem de pássaros. Uma mitra de feltro negro ornada de meias-luas prateadas cobria-lhe a cabeça. Na túnica, sete pássaros bordados havia, e seus encacheados cabelos eram pintados de um branco azulado em tons metálicos.”
Magnífico! Os detalhes bem explicados, o estilo elegante, todo esse ar culto. Haveria como simplifica-lo. Sim poderia, porém perderia a beleza. Nem tudo do ele trata no trecho ou mesmo no conto do qual retirei o trecho é conhecido por nós, pois além dele ter vivido no séc.XIX na Inglaterra e França, conhecia a cultura e o comportamento de outros povos que mencionava em seus escritos. O motivo de o leitor ser ignorante ao assunto, por não entender as regras de pontuação, os artifícios poéticos jamais poderia tirar a grandeza do conto já mencionado.
Infelizmente, na atualidade, está acontecendo esse drama na literatura universal. O surgimento das tendências modernistas, rompendo com a cultura clássica, profanou a literatura. Os bons escritores estão agonizando, tentando permanecer nesse ambiente hostil. Qualquer um pode ser escritor agora.
Se a linguagem falada por todos fosse a que denominamos “culta”, duvido se o estilo moderno ganharia tantos adeptos e espaço no meio artístico. O estilo culto não só não faz sucesso porque existe a inaptidão do povo para utilizá-lo e compreendê-lo. E como são poucos os que estão em contato direto com a erudição ou que foram educados e preparados para encarar qualquer complexidade de leitura – até mesmo a alemã do século XVIII – as obras boas ficam nas margens do reconhecimento.
A tecnologia evolui tanto, mas o senso crítico da leitura diminui; a própria linguagem está se simplificando, as exigências com os escritores sumiram. Não há como restaurar a literatura, os leitores não esperam nada dela. Aqui generalizo porque os que concordam comigo são escassos.
Ninguém pretende ler um texto e saber se ele foi construído de acordo com as possibilidades permitidas pela gramática; se fugir disso fixará sua análise no conteúdo e a forma, por mais horrível que possa ser, não será nem percebida e vice-versa. Vejamos um soneto de Olavo Bilac:
Os fenícios
Ávida gente, ousada e moça! Ávida gente!
– Desse estéril torrão, desse areal marinho
Entre o Líbano e o mar da Síria, – que caminho
Busca, turva de febre, o vosso olhar ardente?
Tiro, do vivo azul do pélago marinho;
Branca, nadando em luz, surge resplandecente...
Na água aberta em clarões, chocam-se de repente
Os remos. Rangem no ar os velames de linho.
Hiram, com o cetro negro em que ardem pedrarias,
Conta as barcas de cedro, atupidas de fardos
De ouro, púrpura, ônix, sedas e especiarias.
Sus! Ao largo! Melcarte abençoe a partida
Dos que vão de Sídon, de Gebel e de Antardus
Dilatar o comércio e propagar a vida!
Que domínio das palavras! Tudo se encaixa em perfeita harmonia. O ritmo lento, pausado, as frases desconexas. Porém a compreensão do texto é complicada; quem não conhece algo da história do povo citado no soneto verá apenas um texto esquisito e sem sentido (embora tenha muito sentido). Por isso, muitos textos exigem pessoas inteligentes para avaliá-los. Aquele que percebe a grandeza da construção e não entende o significado deve ficar calado e não divagar opiniões preconceituosas e sem fundamento, a não ser que ressalte a forma do texto.
Hoje em dia, muitos escritores não procuram mais os caminhos belos e profundos da literatura elaborada, talvez por medo da crítica – que também deixou de ser exigente – e medo do esquecimento, e também não querem passar fome por não vender nenhum exemplar. Caio Fernando de Abreu estava certo em dizer que o escritor vive não de sua arte, mas de outras atividades. As boas obras não deveriam ficar limitadas àqueles que possuem um nível maior de entendimento, ao mesmo tempo não correto rebaixar a qualidade de um texto para que esse seja compreendido pelos demais. É preciso que todos tenham oportunidades de enriquecimento cultural, que haja bibliotecas públicas em todos os bairros, principalmente os da periferia e que os próprios leitores busquem aumentar o seu nível, para poder enveredar pelas sublimes linhas de uma obra clássica.
Entender um texto bem produzido é difícil, mas quem se esforça buscando entender a estrutura do mesmo e por fim perceber o seu valor para a sociedade é algo compensador. Então, tudo depende do leitor que precisa se esforçar mais em sua análise, não deve ser seduzido por bobagens que todo dia entra na moda.
Se uma pessoa que gosta, ou acha e diz gostar, de ler e faz isso para passar o tempo ou para fugir do fardo diário, busca uma representação (história) análoga ao seu estado atual – emotivo, financeiro – quer ver esse estado não em si, mas no outro, simplesmente está buscando a Kárthasis, termo grego que pode ser entendido como : projeção de sentimentos, angústias, temores, problemas individuais lançados nos papéis dos personagens e assim libertando-se naquele momento, o da leitura ou visualização estética, de todo gama psicológico reprimido e negado; a eles aconselho um cineminha (que também está decaindo de qualidade) pois lá conseguirá atingir os resultados proporcionados pela Kárthasis.
Já quem realmente se interessa em crescer como alguém apto a emitir argumentos sobre qualquer coisa, então deve buscar sempre melhorar sua leitura, ignorando os escritores baratos e retornando ao passado clássico; deve exigir mais de si mesmo e pensar bastante antes de sair por aí comprando o primeiro livro que vê.
Por várias razões é fácil afirmar que num texto, é válido observar o conteúdo somado a forma; ver sua utilidade para a humanidade, esperar que ele sobreviva por muito tempo, para que os futuros leitores (se é que existirão ainda) tenham idéia de como era a cultura e o costume de tempos atrás.