O que é o “Nada”?

Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o próprio ente — e nada mais. Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientação é o próprio ente — e além dele nada. Aquilo com que a discussão investigadora acontece na irrupção é o próprio ente — e além dele nada.

Mas o estranho é que precisamente, no modo como o cientista se assegura o que lhe é mais próprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas o ente e mais — nada; somente o ente e além dele — nada; unicamente o ente e além disso — nada.

Que acontece com este nada? E, por acaso, que espontaneamente falamos assim? E apenas um modo de falar — e mais nada?

Mas, por que nos preocupamos com este “nada”? O nada é justamente rejeitado pela ciência e abandonado como o elemento nadificante. E quando, assim, abandonamos o nada, não o admitimos precisamente então? Mas podemos nós falar de que admitimos algo, se nada admitimos? Talvez já se perca tal insegurança da linguagem numa vazia querela de palavras. Contra isto deve agora a ciência afirmar novamente sua seriedade e sobriedade: ela se

ocupa unicamente do ente. O nada — que outra coisa poderá ser para a ciência que horror e fantasmagoria? Se a ciência tem razão, então uma coisa é indiscutível: a ciência nada quer saber do nada. Esta é, afinal, a rigorosa concepção científica do nada. Dele sabemos, enquanto dele, do nada, nada queremos saber.

A ciência nada quer saber do “nada”. Mas não é menos certo também que, justamente, ali, onde ela procura expressar sua própria essência, ela recorre ao nada. Aquilo que ela rejeita, ela leva em consideração. Que essência ambivalente se revela ali? Ao refletirmos sobre nossa existência presente — enquanto uma existência determinada pela ciência —, desembocamos num paradoxo. Através deste paradoxo já se desenvolveu uma interrogação. A questão exige apenas uma formulação adequada: Que acontece com este nada?

Como podemos nós, pois, pretender rejeitar o entendimento na pergunta pelo nada e até na questão da possibilidade de sua formulação? Mas será que é tão seguro aquilo que aqui

pressupomos? Representa o “não”, a negatividade e com isto a negação, a determinação suprema a que se subordina o nada como uma espécie particular de negado? “Existe” o nada apenas porque existe o “não”, isto é, a negação? Ou não acontece o contrário? Existe a negação e o “não” apenas porque “existe” o nada? Isto não está decidido; nem mesmo chegou a ser formulado expressamente como questão. Nós afirmamos: o nada é mais originário que o “não” e a negação.

Onde procuramos “o nada”? Onde encontramos o nada? Para que algo encontremos não precisamos, por acaso, já saber que existe? Realmente!

Primeiramente e o mais das vezes o homem somente então é capaz de buscar se antecipou a presença do que busca. Agora, porém, aquilo que se busca é o nada. Existe afinal um buscar sem aquela antecipação, um buscar ao qual pertence um puro encontrar?

Seja como for, nós conhecemos o nada, mesmo que seja apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadvertidamente. Podemos até, sem hesitar, ordenar numa definição este nada vulgar, em toda palidez do óbvio, que tão discretamente ronda em nossa conversa: O nada é a plena negação da totalidade do ente. Não nos dará, por acaso, esta característica do nada uma indicação da direção na qual unicamente teremos possibilidade de encontrá-lo?

A totalidade do ente deve ser previamente dada para que possa ser submetida enquanto tal simplesmente à negação, na qual, então, o próprio nada se deverá manifestar.

Mesmo, porém, que prescindamos da problematicidade da relação entre a negação e o nada, como deveremos nós — enquanto seres finitos — tornar acessível para nós, em si e particularmente, a totalidade do ente em sua omnitude? Podemos, em todo caso, pensar a totalidade do ente imaginando-a, e então negar, em pensamento, o assim figurado e “pensá-lo” enquanto negado.

Por esta via obteremos, certamente, o conceito formal do nada figurado, mas jamais o próprio nada. Porém, entre o nada figurado e o nada “autêntico” não pode imperar uma diferença, caso o nada represente realmente a absoluta indistinção. Não é, entretanto, o próprio nada “autêntico” aquele conceito oculto, mas absurdo, de um nada com características de ente? Mas paremos aqui com as perguntas. Que tenha sido este o momento derradeiro em que as objeções do entendimento retiveram nossa busca que somente pode ser legitimada por uma experiência fundamental do nada.

Parece, sem dúvida, que, em nossa rotina cotidiana, estamos presos sempre apenas a este ou àquele ente, como se estivéssemos perdidos neste ou naquele domínio do ente. Mas, por mais disperso que possa parecer o cotidiano, ele retém, mesmo que vagamente, o ente numa unidade de “totalidade”. Mesmo então e justamente então, quando não estamos propriamente ocupados com as coisas e com nós mesmos, sobrevém-nos este em totalidade”, por exemplo, no tédio propriamente dito. Este tédio ainda está muito longe de nossa experiência quando nos entedia exclusivamente este livro ou aquele espetáculo, aquela

ocupação ou este ócio. Ele desabrocha se “a gente está entediado”. O profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da existência, nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferença. Esse tédio manifesta o ente em sua totalidade. Uma outra possibilidade de tal manifestação se revela na alegria pela presença — não da pura pessoa —, mas da existência de um ser querido.

Semelhante disposição de humor em que a gente se sente desta ou daquela maneira situa-nos — perpassados por esta disposição de humor — em meio ao ente em sua totalidade. O sentimento de situação da disposição de humor não revela apenas, sempre à sua maneira, o ente em sua totalidade. Mas este revelar é simultaneamente — longe de ser um simples episódio — um acontecimento fundamental de nosso ser-aí. O que assim chamamos ‘sentimentos não é um fenômeno secundário de nosso comportamento pensante e volitivo, nem um simples impulso causador dele nem um estado atual com o qual nos temos que haver de uma ou outra maneira.

Contudo, precisamente quando as disposições de humor nos levam, deste modo, diante do ente em sua totalidade, ocultam-nos o nada que buscamos. Muito menos seremos agora de opinião de que a negação do ente em sua totalidade, manifesta na disposição de humor, nos ponha diante do nada. Tal somente poderia acontecer, com a adequada originalidade, numa disposição de humor que revele o nada, de acordo com seu próprio sentido revelador. Acontece no ser-aí do homem semelhante disposição de humor na qual ele seja levado à presença do próprio nada?

Este acontecer é possível e também real — ainda que bastante raro — apenas por instantes, na disposição de humor fundamental da angústia. Por esta angústia não entendemos a assaz freqüente ansiedade que, em última análise, pertence aos fenômenos do temor que com tanta facilidade se mostram. A angústia é radicalmente diferente do temor. Nós nos atemorizamos sempre diante deste ou daquele ente determinado que, sob um ou outro aspecto determinado, nos ameaça. O temor de... sempre teme por algo determinado.

A angústia não deixa mais surgir uma tal confusão. Muito antes, perpassa-a uma estranha tranqüilidade. Sem dúvida, a angústia é sempre angústia diante de..., mas não angústia diante disto ou daquilo. A angústia diante de... é sempre angústia por..., mas não por isto ou aquilo. O caráter de indeterminação daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, não é apenas uma simples falta de determinação, mas a essencial impossibilidade de determinação. Um exemplo conhecido nos pode revelar esta impossibilidade.

Na angústia — dizemos nós — “a gente sente-se estranho”. O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime.

Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém — na fuga do ente — este nenhum’. A angústia manifesta o nada.

“Estamos suspensos” na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios — os homens que somos — refugiarmo-nos no seio dos entes. E por isso que, em última análise, não sou “eu” ou não és “tu” que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença, emudece qualquer dicção do “é”. O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos angustiávamos era “propriamente” — nada. Efetivamente: o nada mesmo — enquanto tal — estava aí.

Com a determinação da disposição de humor fundamental da angústia atingimos o acontecer do ser-aí no qual o nada está manifesto e a partir do qual deve ser questionado.

Que acontece com o nada?

O nada se revela na angústia — mas não enquanto ente. Tampouco nos é dado como objeto. A angústia não é uma apreensão do nada. Entretanto, o nada se torna manifesto por ela e nela, ainda que não da maneira como se o nada se mostrasse separado, “ao lado” do ente, em sua totalidade, o qual caiu na estranheza. Muito antes, e isto já o dissemos: na angústia deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totalidade. Que significa este “juntamente com”?

Na angústia o ente em sua totalidade se torna caduco. Em que sentido acontece isto? Pois, certamente, o ente não é destruído pela angústia para assim deixar como sobra o nada. Como é que ela poderia fazê-lo quando justamente a angústia se encontra na absoluta impotência em face do ente em sua totalidade? Bem antes, revela -se propriamente o nada com o e no ente como algo que foge em sua totalidade.

Na angústia não acontece nenhuma destruição de todo o ente em si mesmo, mas tampouco realizamos nós uma negação do ente em sua totalidade para, somente então, atingirmos o nada. Mesmo não considerando o fato de que é alheio à angústia enquanto tal, a formulação expressa de uma enunciação negativa, chegaríamos, mesmo com uma tal negação, que deveria ter por resultado o nada, sempre tarde. Já antes disto o nada nos visita. Dizíamos que

nos visitava juntamente com a fuga do ente em sua totalidade.

Na angústia se manifesta um retroceder diante de... que, sem dúvida, não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante de... recebe seu impulso inicial do nada. Este não atrai para si, mas se caracteriza fundamentalmente pela rejeição. Mas tal rejeição que afasta de si é, enquanto tal, um remeter (que faz fugir) ao ente em sua totalidade que desaparece. Esta remissão que rejeita em sua totalidade, remetendo ao ente em sua totalidade em fuga — tal é o modo de o nada assediar, na angústia, o ser-aí —, é a essência do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do ente, nem se origina de uma negação. A nadificação também não se deixa compensar com a destruição e a negação. O próprio nada nadifica.

A angústia do audaz não tolera nenhuma contraposição à alegria ou mesmo à agradável diversão do tranqüilo abandonar-se à deriva. Ela situa-se — aquém de tais posições — na secreta aliança da serenidade e doçura do anelo criador. A angústia originária pode despertar a qualquer momento no ser-aí. Para isto ela não necessita ser despertada por um acontecimento inusitado. À profundidade de seu imperar corresponde paradoxalmente a insignificância do elemento que pode provocá-la. Ela está continuamente à espreita e, contudo, apenas raramente salta sobre nós para arrastar-nos à situação em que nos sentimos suspensos.

O estar suspenso do ser-aí no nada originado pela angústia escondida transforma o homem no lugar-tenente do nada. Tão finitos somos nós que precisamente não somos capazes de nos colocarmos originaria mente diante do nada por decisão e vontade próprias. Tão insondavelmente a finitização escava as raízes do ser-aí que a mais genuína e profunda finitude escapa à nossa liberdade.

O estar suspenso do ser-aí dentro do nada originado pela angústia escondida é o ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendência.

As questões do ser e do nada enquanto tais não têm lugar. E por isso que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do nada, justamente precisa poder entrar em relação com o nada. Se, porém, Deus é Deus, não pode ele conhecer o nada, se é certo que o “absoluto” exclui de si tudo o que tem caráter de nada.

A aparente sobriedade e superioridade da ciência se transforma em ridículo, se não leva a sério o nada. Somente porque o nada se revelou, pode a ciência transformar o próprio ente em objeto de pesquisa. Somente se a ciência existe graças à metafísica, é ela capaz de

conquistar sempre novamente sua tarefa essencial que não consiste primeiramente em recolher e ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo o espaço da verdade da natureza e da história, cuja realização sempre se deve renovar.

A filosofia somente se põe em movimento por um peculiar salto da própria existência nas possibilidades fundamentais do ser-aí, em sua totalidade. Para este salto são decisivos: primeiro, o dar espaço para o ente em sua totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se sub-repticiamente; e, por último, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constantemente retorne à questão fundamental da metafísica que domina o próprio nada: “Por que existe afinal ente e não antes Nada?”

Eis a grande questão metafísica, teológica, filosófica, e científica que todos deveriam se empenhar em investigar com determinação.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 04/01/2010
Código do texto: T2010321
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