MOACYR SCLIAR: MATURIDADE, PLENITUDE E COSMOPOLITISMO LITERÁRIOS

Você já imaginou o quanto é difícil, complicado, complexo e extenuante escrever um livro? Inventar um enredo, criar personagens, escolher ambiente e período em que a história se passa, por qual ponto de observação (foco narrativo) optará? Quantas vezes terá de revisar capítulos, eliminar parágrafos e estruturar frases ainda correndo o risco de ter de fazer tudo de novo ou de alguns pontos exaustivamente corrigidos saírem errados?

Se um só livro nos traz um trabalho imenso, imagine escrever cerca de noventa preocupando-se ao mesmo tempo com colaborações em dois dos maiores jornais brasileiros, revistas semanais e especializadas, palestras, cursos no exterior, tradução de suas obras em outros continentes? Essa é a vida agitada de um dos maiores – senão o maior – escritores brasileiros dos últimos cinqüenta anos: Moacyr Scliar.

Membro de uma família de imigrantes judeus instalados em Porto Alegre, Scliar comenta em algumas crônicas a influência da mãe que, mesmo sabendo do orçamento deficitário, não lhe deixava faltar livros. O adolescente freqüentador da feira do livro da capital gaúcha voltaria anos mais tarde ao evento na condição de um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos.

O início da carreira se deu de maneira pouco pacífica. Embora escrevesse, como ele mesmo gosta de frisar, em papéis, guardanapos, folhas coloridas ou qualquer outro suporte que lhe caísse nas mãos, em qualquer lugar e em qualquer momento, o primeiro trabalho foi mal recebido pelos parentes e amigos que o leram e o criticaram duramente.

Diferentemente de muitos pretensos artistas (escritores, compositores, escultores, pintores etc) que desistem diante das primeiras críticas e se acomodam ante a possibilidade de trabalhos extenuantes que os levarão a gastar mais do que podem ou a se privar de situações rotineiras efemeramente prazerosas, o escritor gaúcho não desistiu e, quatro anos depois da estréia, encetou nova e exitosa tentativa.

Daí em diante, enveredou pelos ensaios, passeou pelos romances, deliciou-se em novelas, brincou nos contos, vivenciou a crônica, ganhou prêmios nacionais e internacionais (participando também de júris mundo afora), lecionou os meandros e as peculiaridades da arte da escrita para profissionais estrangeiros, elegeu-se membro da Academia Brasileira de Letras e, numa militância claramente literária, ajudou a fundar a Associação Gaúcha de Escritores na década de 1980.

Em uma de suas centenas de entrevistas, Scliar nos relata que – assim como Antônio Candido e Nelson Rodrigues – a colaboração em jornais o ajudou a aperfeiçoar a escrita na medida em que prazo e tamanho de textos amadureciam seu estilo. Estilo que o acompanha em grande parte de seus romances e novelas, caminhando tranquilamente entre seus livros de ensaios, entre os quais destacamos “Enigmas da culpa”.

Embora os estudiosos de sua extensa produção literária apontem as reinvenções e as reinterpretações das relações judaicas em enredos ou em alguns personagens, discordaria quase integralmente ao vislumbrá-la como uma leitura subjetiva do fato social que é a religião. Em “O exército de um homem só”, “Os deuses de Raquel”, “Max e os felinos” ou em “Os voluntários”, a busca pela salvação ou pela remissão de ações e de pecados são situações encontradas em todas as religiões cujos seguidores se julgam culpados diante da infração de normas. Assim é o cristianismo – e suas doutrinas heterodoxas – que, na concepção de Nietzsche, se deixou transformar numa religião de ódio, terror e medo.

O realce empreendido por Scliar repousa na capacidade de contar uma boa história que prende a atenção de seus leitores. Uma de suas qualidades: o ritmo que o romancista emprega em sua narrativa. Se, como supõe o ensaísta mexicano Carlos Fuentes, a Literatura se compõe de Linguagem e Imaginação, Scliar consegue reunir as duas características de maneira amadurecida e arrojada na medida em que, contando, inventando ou se inspirando em passagens ou extensos fragmentos bíblicos, consegue prender nossa atenção em uma história que dificilmente conseguiríamos contextualizar, como em alguns dos contos e crônicas de “Histórias para (quase) todos os gostos”.

Tamanha a maturidade exalada da pena do escritor gaúcho que lemos um romance com a mesma facilidade que passamos os olhos em suas crônicas publicadas semanalmente na “Folha de São Paulo” ou seus artigos bi-semanais no “Zero Hora” (Porto Alegre – RS). A linguagem límpida e corrente da crônica aplicada ao romance não redundaria em superficialidade? De nenhuma maneira. A profundidade não está na simplicidade de seu texto, mas no tratamento e na exteriorização de suas idéias. Nesse item, Scliar consegue gozar de plenitude, maturidade e cosmopolitismo invejáveis.

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 31 de dezembro de 2009.

Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.