Adorar em Espírito e Verdade
ADORAR EM ESPÍRITO E VERDADE
Deus é espírito, e quem o adora deve adorá-lo em espírito
e verdade (Jo 4,24).
O evangelho de João, de cujo bojo extraí a presente meditação, traz uma frase solta, que seria melhor se não estivesse lá. Ela nos inquieta e, ao mesmo tempo, bane qualquer especulação em termos de coincidência, ou alguma ação espontânea:
[...] Ele tinha de passar pela Samaria (4, 4).
Séculos afora, os estudiosos das Sagradas Escrituras, têm buscado compreender essa passagem. Seria indispensável passar pela Samaria? O fato de cruzar por Sicar seria decorrente de ser ali a única via de passagem para quem vai de Jerusalém para a Galiléia? Ou cruzar por aqueles sítios reservava, aos habitantes daquele tempo e a nós, hoje, uma pedagogia, uma lição edificante?
É magnífico ver a forma como Deus nos instrui. Seria mais difícil entender o mistério da graça de Deus sem o diálogo com a samaritana, à beira do poço de Jacó. Se Jesus não cruzasse por aquelas paragens, talvez o povo ainda estivesse entregue às suas idolatrias. O anúncio messiânico feito pela mulher teria, por certo, ficado prejudicado, se ela não tivesse conversado com Jesus. Portanto, creio, o fato de passar pela Samaria, não é um incidente isolado, circunstancial. Jesus precisava passava por lá, para mostrar àquela gente, o caminho da salvação, a misericórdia de Deus e a eqüidade do Reino.
Ali estava o poço de Jacó. Cansado da viagem, Jesus
sentou-se à beira do poço. Era quase meio-dia. Uma mulher
da Samaria veio tirar água (vv. 5-7).
É com esta mulher que ele inicia um diálogo que a princípio parece insólito, mas que no decorrer da conversa se revela uma das passagens mais densas do conjunto da boa notícia.
Ah! se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz
‘dá-me de beber’, serias tu que lhe pedirias, e ele te daria
a água viva (v. 10).
Estava se iniciando aí um bate-papo de duas pessoas falando como que línguas diferentes. Jesus referia-se às coisas espirituais e a mulher presa aos aspectos materiais da água do poço de Jacó e da vida humana. É o enfoque material da vida de muitos, ainda não iluminado pela luz de Deus. Ao pedir água, Jesus busca provocar uma reação na mulher. E a reação não se faz esperar.
Senhor, não tens com que tirar água e o poço é fundo, donde
tens, pois essa água viva? Por acaso és maior que nosso pai
Jacó que nos deu o poço do qual bebeu, junto com os filhos
e rebanhos (vv. 11-12).
Jesus lhe fala em uma água viva, uma fonte eterna (vv. 13-14), mas a pobre mulher continua a pensar na água física, aquela que se tira da fonte, do poço... Mesmo assim ela se entusiasma. Quem seria esse homem? Um feiticeiro? Alguém capaz de ter inventado uma água que imuniza as pessoas contra a sede?
Senhor, dá-me dessa água para que eu não sinta mais sede
nem precise vir aqui buscar água (v. 15).
Presa a aspectos culturais, sociais e de costume, a pessoa humana mesmo no limiar do sobrenatural, custa a libertar-se de tantos estímulos, demorando a enxergar algo que está ali, bem grande, à sua frente. A samaritana revelou estar imbuída de uma visão humana e materialista.
Se alguém tiver sede venha a mim e beba. Quem crê em mim,
como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água viva
(Jo 7, 37s).
Jesus não desdenha da água do poço (bens materiais). No entanto, afirma ser capaz de oferecer uma água melhor (bens espirituais). A primeira água mata momentaneamente a sede. A “água viva” arranca a secura de nossa vida, de nossa alma, para sempre. Jesus oferece essa troca. Sobre a vitalidade perene desse manancial, anunciou o profeta:
O Senhor te guiará continuamente e nas regiões áridas te
saciará; renovará teu vigor, e serás como um jardim bem
regado, um manancial, cujas águas jamais se estancam
(Is 58, 11).
Procurando uma utilidade prática, a mulher pede a água, desconhecendo ainda sua essência. Da ironia e da reserva ela passa à intimidade. Agora é ela que, passando por cima de sua animosidade contra os judeus, pede a água, embora ainda não alcance todo o seu significado.
Se conhecesses o dom de Deus... tu lhe pedirias e ele te
daria a água viva... (v. 10).
No Antigo Testamento, a água é símbolo de vida e salvação. Tanto no dilúvio como na passagem do Mar Vermelho, encontra-se a figura do resgate dos justos, através da água. No aspecto material é uma riqueza, comparável à salvação.
Senhor, dá-me dessa água... (v. 15).
A mulher elabora uma inversão no diálogo. Antes Jesus pediu água a ela. Agora é a samaritana que lhe pede a água viva. Antes ela era arrogante, agora humilde. Mesmo que ainda sob o enfoque material, ela agora pede a água,
para que eu não sinta mais sede nem precise vir buscar
água (v. 15b).
Acontece agora como que uma troca. Instauram-se os tempos do Messias. É a troca da água de Jacó, insuficiente (o Antigo Testamento) pela água de Jesus, abundante, (o Novo Testamento). O Reino dos céus, que Jesus veio instaurar, começava a se revelar. Ele começa aqui e acaba na eternidade. É Reino de Deus, que se instaura para a salvação dos homens. A água que brotou miraculosamente da rocha em Massa e Meriba (cf. Ex 17, 3-7) é sinal do dom de Deus, da água viva que Jesus oferece, gratuitamente, a todos.
O diálogo de Jesus com a samaritana revela, de forma implícita, a destinação universal da salvação que ele veio trazer aos homens. Embora estivesse estabelecendo um aprendizado progressivo, a mulher ainda não intuíra totalmente o sentido da água viva. Jesus precisava dar-lhe um sinal.
Atordoada pela presença de Jesus, a mulher tenta desconversar, buscando uma escapatória para fugir do conhecer-se. Como tantos de nós, hoje em dia, ela procura usar o recurso intelectual para não se render a Deus. Ela tem medo de entregar-se. As tentações de Deus, às vezes, são mais assustadoras que as do diabo, pois tornam descoberto todo o nosso íntimo. Ela tenta escapar pela tangente:
Nossos pais adoraram a Deus neste monte e vocês judeus
dizem que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar
(v. 20).
Era o que Jesus queria. A samaritana foi direto ao assunto. Agora ela começava a discutir teologia com ele. Ao dizer que “nossos pais adoraram...” ela reflete sobre a polêmica histórica entre judeus e samaritanos, onde o verdadeiro culto a Deus só podia ser feito no templo, em Jerusalém, conforme a reforma deuteronomista de Esdras, no século VII a.C. Nessa diferença existente entre judeus e samaritanos quanto ao local de culto, começava a grande revelação de Jesus:
Mulher, acredite em mim, vem a hora em que nem neste
monte e nem em Jerusalém adorarão o Pai. Vocês adoram
o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora, e já
chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o
Pai em espírito e verdade; estes são os adoradores que o Pai
deseja. Deus é espírito, e quem o adora deve adorá-lo em
espírito e verdade (vv. 21-24).
Trata-se de grande lição do cristianismo universal, que não mais ficará restrito a lugares de culto, mas a todo o universo, templo onde Deus reina. A expressão “vem a hora...” coloca toda a situação na iminência de um fato novo (morte e ressurreição de Jesus), real e escatológico, quando serão abolidos os locais fixos de culto, e o Filho de Deus será glorificado a partir do coração das pessoas. Esta reflexão encaminha aos versículos 23 e 24.
Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros
adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade...
Muitos cristãos pensam que para adorar a Deus é necessário estar nas liturgias de um templo cercado de pessoas em atitude reverente. Para elas é preciso um momento de concentração, reforçado com meditação, rezas e orações. É o que chamam de ambiente propício. Este ambiente geralmente surge de um envolvimento emocional promovido pela expectativa de milagres, profecias, manifestações, etc.
Não é assim que se adora Deus! Não são os gestos externos que caracterizam a verdadeira adoração. Os verdadeiros adoradores são os fiéis de todos os tempos, conscientes, que amam a Deus e seguem o seu Cordeiro. São aqueles que crêem e são batizados (cf. Mc 16, 16), e por essas duas atitudes obtêm a salvação.
Aqui nos deparamos no limiar da adoração cristã. Não é um ritual, a formalidade de uma cerimônia religiosa que vai glorificar a Deus. Não é assim que se adora a Deus! É somente através de um novo nascimento que entramos na “vida nova”. A adoração é espiritual, é segundo as atitudes do “homem novo”. Quem não está em comunhão com a verdade de Deus não é capaz de adorá-lo.
Adorar em espírito e verdade é ir além daquelas práticas crentes de todos os tempos, que professam uma fé superficial, dentro de uma religião alegórica, tradicional. Adorar em espírito é relacionar-se com Deus sob o eficaz influxo do Espírito Santo. Só o Espírito possibilita essa adoração. Nas Escrituras, vemos que o Espírito de Deus move as pessoas.
Adorar em espírito e verdade é, para nós cristãos de hoje, ir muito além das devoções piedosas, dos cultos superficiais, como missas de preceito, novenas, romarias, devoções das mais variadas, bem como pagamento de dízimos e generosas ofertas de vez em quando.
Na conversa com a samaritana Jesus anunciou, pela primeira vez, um tempo em que não seria mais em Jerusalém nem outro lugar qualquer onde se devia adorar a Deus. O culto em espírito e em verdade começa a ser celebrado a partir do coração do justo. Um fiel pode tentar uma adoração espiritual, mas se ela não estiver de acordo com a Palavra de Deus ele não estará adorando de fato, nem em espírito nem em verdade.
O Espírito Santo move os crentes, no sentido de adorar filialmente ao Pai. Os verdadeiros adoradores, aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito Santo, são os que, renascidos da água e do espírito (cf. Jo 3, 5) escutam a Palavra e a colocam em práticas. A verdade é associada à atividade do Espírito:
Então, eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Advogado,
para que permaneça com vocês para sempre. Ele é o Espírito
da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê,
nem o conhece. Vocês o conhecem, porque ele mora com
vocês, e estará com vocês (14,16ss).
Adorar em verdade é amar a Deus com pureza de espírito, atitude de busca filial, fraternidade e coerência de vida. Adoramos a Deus com o íntimo de nosso espírito, porque ele é espírito. Amando assim, aproximamos nosso espírito do dele. Igualmente amamos em verdade porque Deus é verdade. É a adoração sem fingimento, máscara nem interesse.
A presença de Deus a partir de agora alarga os limites dos templos e dos altos montes. O templo agora é o coração (cf. 1Cor 3, 17). Nossa adoração pode ser expressa através de cinco modos, como oferecimento a Deus:
• Louvor
Portanto, ofereçamos continuamente, por meio de Jesus,
um sacrifício de louvor a Deus, isto é, o fruto de lábios que
confessam o seu nome (Hb 13,15);
• Ação de graças
Não se inquietem com nada. Apresentem a Deus todas as
necessidades de vocês através da oração e da súplica, em
ação de graças (Fl 4,6);
Agradeçam sempre a Deus Pai por todas as coisas, em nome
de nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 5,20);
• Arrependimento
Se nós examinássemos a nós mesmos, não seríamos
julgados (1Co 11,31);
• Petições
Peçam e receberão (Jo 16,24);
• Alegria e paz
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará
os corações de vocês e seus sentimentos em Cristo Jesus
(Fl 4,7).
Os judeus adoravam a Deus no templo de Jerusalém; os samaritanos num templo improvisado no monte Garizin; os demais nas sinagogas espalhadas pelo mundo. Jesus ensina que o Pai deve ser adorado na plenitude da dimensão humana pela alma (em espírito) e pelo entendimento (pela verdade). A vida dedicada aos outros pelo amor de Deus reflete essa forma de adorar a Deus. Este é o verdadeiro culto em espírito e verdade.
A adoração em espírito e verdade é uma revolução na forma de crer do povo. Não se trata mais de reverenciar o YHWH, o temido Adonai que rugia por detrás das nuvens. Jesus nos revela que a divindade adorável é o abba, o paizinho, o Deus-amor, rico em misericórdia e perdão. O culto autêntico ao Deus que atende pelo nome de Pai, já não estará mais ligado ou circunscrito a um lugar, mas é celebrado em todo o universo, a partir do coração de quem crê.
Precisamos orar para que o Espírito Santo suscite em nós a comunhão com o Deus da vida, para que o adoremos sempre de uma forma profunda, amorosa e consciente, em espírito e verdade.
Pregação (homilia) realizada em Canoas (outubro de 2009).