AS BENZEDEIRAS

AS BENZEDEIRAS

No meu entender, tudo no mundo moderno, por motivos óbvios, é contra o mercado informal. No entanto, cada vez mais, a informalidade existe em todos os segmentos da sociedade mundial. O Brasil não escapa a esse investimento de força, talento, criatividade e trabalho, por vezes perigoso e árduo, mas que faz com que milhões de brasileiros sobrevivam. O mercado de trabalho formal ainda está longe de absorver em sua totalidade os homens e mulheres em idade laboriosamente ativa, carentes de trabalho no mercado tido como legal. Surge então esse mercado que é considerado à margem da lei por não ser regulamentado e, por isso mesmo, o Governo não poder explorá-lo em forma de impostos. É, muitas vezes, perseguido o trabalhador por esse motivo, mesmo porque a atividade produtiva que se conserva à margem dos investidores formais, é denunciada pelos defensores daquele mercado, no qual se julgam protegidos pelos governantes, imunes a qualquer sanção e com o direito de proibir e denunciar quaisquer atividades paralelas e correlatas à sua. Mas esses mesmos defensores nada fazem para serem úteis àqueles que, com nenhum poder aquisitivo, fazem desse mercado informal o seu ganha-pão e o de sua família. É lógico que alguns “espertinhos” avançam o sinal da ilegalidade do contrabando, mesclados à caravana dos mercadores da informalidade.

Quando a gente fala em mercado logo vêm à mente os artigos de consumo e os alimentos. Mas não só o mercado de consumo tem seu lado paralelo. Também a saúde o tem, haja vista a expansão das universidades de formação dos diferentes profissionais do ramo datarem, em mais ampla escala, de pouco mais de 50 anos atrás. Em tempos mais remotos eram os chamados práticos que, na maioria das vezes, exerciam - cada um na sua área - os ofícios de protéticos, dentistas, enfermeiros, parteiras, benzedores, professores, arrumadores de ossos e tantos outros. Quando, na sua cidade, no seu núcleo, na sua vila e nos grandes interiores, desprovidos de profissionais formados, aliviavam as dores dos seus compatriotas, eram de grande utilidade e muito bem vindos..

É um tema muito vasto e sobre ele poder-se-ia, com facilidade, preencher livros e mais livros. Mas vamos ater-nos somente ao assunto do título – as benzedeiras.

Quando a gente lembra a benzedeira, vêm sempre à memória as bruxas das lendas do passado ou as aventuras de Harry Porter. Bruxa, na idade média, era a figura má, com um único dente enorme na boca, de unhas crescidas e um grande nariz adunco, que voava tendo como meio de transporte uma vassoura. Todos os males que afligiam a humanidade, que não eram explicados pela medicina, imputavam-nas àquelas megeras que se divertiam em fazer maldades às criaturas. Não somente os povos considerados ignorantes criam nisso. Os que o eram de fato, ainda que creiam tudo saber, entre eles a Igreja Católica, cometeram as maiores atrocidades, perseguindo as tidas como bruxas. Foi assim que, em nome de uma “santa” inquisição, instalou-se processos, os mais demoníacos, em todo o mundo cristão da época.

Dessa onda de “purificação” não escapou nem a menina Joana D’Arc, nascida em 1411. Com apenas 20 anos de idade, em 30 de maio de 1431, foi condenada à fogueira pelos ingleses. Seu crime foi ter mediunidade, qualidade essa ainda não conhecida pela humanidade daquela época. Aos l3 anos, isto é em 1424, começou a ter visões várias. As mais marcantes foram as que lhe apresentavam São Miguel Arcanjo indicando-lhe o caminho a seguir – libertar seu país, a França, do jugo inglês – e ela, solícita e corajosa criança, prometeu coroar Delfim e torná-lo Carlos VII. Com uma tropa pequena defendeu com sucesso as cidades de Orleans e Paris. Por seus dons, considerados heréticos e demoníacos pelas autoridades eclesiásticas da época e pelo seu heroísmo perigoso aos políticos, em 1430 foi feita prisioneira e vendida ao duque de Borgonha que a entregou aos ingleses. Em 1920, porém, o papa Bento XV a declarou “santa”, isto é, um espírito puro, remido de todas as nódoas adquiridas e expiadas em sucessivas reencarnações.

A continuar essa faina inquisitória até nossos dias, as testemunhas do aparecimento de Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, seriam sumariamente sacrificadas numa fogueira “santa”; dos “Pais de Santo”, benzedeiras ou os de similar poder mediúnico não sobraria um só para contar a sua história. O mesmo aconteceria, também, aos médiuns espíritas, uma vez que seu líder maior – Allan Cardek – já teria, em sua época, virado churrasquinho “santo”.

Superado todo o barulho formado em torno da caça às heréticas bruxas que, segundo registros, começou no século X pelo poder civil e continuou na Idade Média através do clero, ainda em nossos dias o cinema lhe faz a corte.

Uma coisa boa verificamos num recorte de jornal datado de 03/ll/2002. Numa cidade da Áustria foi aberta em 1998 uma escola para bruxas. È isso mesmo. Uma escola para bruxas modernas. Mas, ao contrário daquilo que rezam as cartilhas antigas, as alunas daquela escola especializam-se em diversas ciências e, uma vez formadas, usam seus conhecimentos para ajudar gratuitamente a humanidade. Nada mau, não acha o leitor? Um mal (entendido) transformado em bem.

Como eu dizia no começo dessas considerações sobre o assunto, o mercado informal está presente em tudo, e é um fato. Destina-se ao suprimento, com preços reduzidos ou, em certos casos, gratuitamente, de repor a preços módicos, aquilo que o mercado formal deixa de prover, ou, simplesmente, não põe ao alcance do poder aquisitivo da pobreza.

No contexto “saúde”, como não existiam as facilidades que os órgãos públicos oferecem hoje nas cidades e lugares de fácil acesso à saúde pública, em cada lugarejo morava uma mulher com conhecimentos e larga experiência junto às gestantes e cujos préstimos eram solicitados. Lá na terra onde nasci era minha mãe a parteira e a benzedeira por todos conhecida e que não levava em conta a hora do dia ou da noite para trazer à luz do mundo mais uma criança ou, se já nascida e doente, fazia-lhe rezas para livrá-la da sua enfermidade. Aliás, esse tipo de procedimento é encontrado em larga escala no “Livro de São Cipriano”, um bom espírito que passou seus dias na terra ajudando o próximo em suas doenças e dificuldades. Na leitura superficial desse livro chamou-me a atenção uma oração em prol dos enfermos intitulada “Oração para curar enfermidades naturais”. Depois que o rezador recitou com muita fé e recolhimento essa oração, termina com o “benzimento” (aspersão) do paciente com água benta. Lembro o fato para, talvez, desculpar-me do tamanho do artigo para dizer alguma coisinha que me é muito cara e, com certeza, a maioria dos leitores não têm noção da utilidade e da aceitação que as benzedeiras têm. Nas cidades elas são “bichinhos” em fase de extinção.

A Carta Magna brasileira de 1988 reza que a saúde é um direito do cidadão e dever do Governo fazê-la chegar até ele. E desse modo, primeiro era o extinto INAMPS que, a nível nacional, foi o responsável pela saúde. Suscedeu-o o SUS que agora a administra, através dos municípios, sob cujo encargo foi centralizado esse bem natural do povo. Porém neste vasto Brasil de dimensões continentais há largos espaços que engolem Estados e regiões inteiras, principalmente no norte e nordeste, a serem cobertos. Torna-se quase impossível à própria saúde preventiva chegar, quanto mais, que o atendimento oficial venha em tempo hábil de salvar os doentes quando esses necessitam usufruí-lo com urgência.

Aí é que aparece o mercado informal. Continuam sendo valorizadas as parteiras, que viajam a pé, a cavalo ou de barco, enormes trechos para socorrer as parturientes. São, também, procurados e aceitos como tal, todos aqueles profissionais – não formados – mas com experiência altamente qualificada para suprir a falta de profissionais saídos das universidades.

E, aí também, encontramos as benzedeiras, conhecidas nos sertões, nas vilas e nas cidades, como sendo pessoas boas, modestas e solícitas, os Anjos da Guarda de crianças e adultos, aliviando dores e curando certos tipos de doenças para cujo mal a medicina só receita paliativos. Sabendo-se que os remédios químicos, que rendem bilhões aos laboratórios de todo o mundo, são todos eles fabricados a partir de ervas e raízes, temos grande parte dessas ditas benzedeiras que, sem ter laboratório nem cobrar nada pelo seu conhecimento, fazem uso dessas mesmas ervas e raízes “in natura”. E todas elas sobrepõe as mãos ao paciente e o aspergem com ramos de ervas e água benta ou outra água potável (em certos casos fluidificada por elas, através dos seus guias). Não sei se estou devidamente afinado com a ciência e a filosofia do espiritismo para afirmar em termos absolutos. Tenho, porém, quase a certeza de que se trata de mediunidade de que essas senhoras se valem para curar uma porção de doenças que, pelos motivos acima expostos, o Governo não tem condições de fazer chegar ao povo os agentes de saúde, a tempo de prestar socorro.

Agora pergunto: essas benzedeiras podem ser consideradas bruxas? Com todo o respeito para com quem assim pensa, tenho certeza que não as são. Lembro sempre minha mãe, quando penso nessas benzedeiras. No lugarejo onde nasci, valia-se de conhecimentos que, talvez a curiosidade lhe tivesse proporcionado – uma vez que não tivera quase nenhum estudo. Ela era a professora da escolinha, a benzedeira das crianças e dos velhinhos e, em maior escala, era a parteira que todos lembravam quando um filho daquelas grotas queria ver a luz do mundo. E essa – ponho ambas as mãos no fogo – era uma santa mulher.

Conforme assisti dias passados num desses jornais de televisão, querem terminar com as benzedeiras. Isto é um acinte pretender extinguir o que já faz parte do nosso folclore – e em prática útil e gratuita – em todos os recantos do território nacional. Não acredito mesmo que o consigam, mas, se o Governo – “a pedido” ou “imposição” – baixar uma medida provisória ou coisa assim, nesse sentido, o que vai acontecer é que, mais cedo ou mais tarde, algumas dessas boas senhoras poderão ter problemas com a Justiça. Uma medida acertada seria esse mesmo Governo, através dos Estados e Municípios, prover essa gente abandonada de cuidados médicos e farmacêuticos. Já é hora de todas as regiões, mesmo as mais remotas e ignotas do território nacional, terem acesso pleno à cidadania. Uma outra coisa que a ciência deveria explorar e admitir em larga escala, é o tratamento baseado em ervas naturais, já que as medicamentos feitos em laboratórios todos o são a partir das plantas da nossa rica flora e dos elementos que a natureza lhes fornece. Se, ao invés de aliciar os povos indígenas com perversidades que eles ao natural não têm, deles os brancos, que se dizem civilizados, colhessem os sábios exemplos; se ao invés de perseguir esses doutos senhores das florestas, conhecedores do poder das ervas, exercessem também sua medicina milenar, num paralelo traçado com dignidade e com isenção de ganância, essa parceria renderia ótimos frutos para o povo brasileiro. Eles são conhecedores da medicina que, por tradição, seus ancestrais lhes legaram. Nunca viram, nem eles, nem seus maiores, um prédio sequer de universidade alguma por dentro, quanto menos tiveram ensinamentos acadêmicos, mas, em todos os tempos, curaram seus doentes e cuidaram das suas feridas com os elementos colhidos na natureza e com rituais que simulavam benzimentos.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 27/12/2009
Reeditado em 07/01/2010
Código do texto: T1998353
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