Diversos olhares entrecruzam-se sob a ótica crítica machadiana
Diversos olhares entrecruzam-se sob a ótica crítica machadiana
Machado de Assis nascera no Morro do Livramento, aos 21 dias do mês de junho no ano de 1839. Primogênito do pintor Francisco José de Assis e da lavadeira Maria Leopoldina Machado de Assis. Seu pai era mulato, filho de escravos que ganharam a liberdade e a sua mãe era branca, natural da Ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, pertencentes a Portugal. Seu avô paterno fora escravo na chácara vizinha ao morro, propriedade de D. Maria José de Mendonça Barroso, que foi madrinha dele, batizado aos treze dias de novembro do mesmo ano, como Joaquim Maria Machado de Assis. Ela morrera de sarampo em 1845 mesmo ano em que a irmã de Machado nascida em 1841, morreria também de sarampo. E sua mãe morreria de tuberculose, aos 18 dias do mês de janeiro de 1849. O pai casou-se anos depois, com Maria Inês da Silva, lavadeira, cozinheira e doceira.
Em 1856 começara a publicar vários poemas dedicados a sua mãe falecida, sempre ressaltando a saudade, e a não conformidade em perdê-la.
Conta-se, que certo dia o chefe da gráfica na Tipografia Nacional queixou-se ao diretor, Maneco de Almeida, de um aprendiz, recentemente contratado, que com freqüência era pego escondido em algum canto lendo um livro. O chefe pediu a demissão do aprendiz, Maneco não atendeu ao pedido e em vez de demiti-lo, promoveu-o, dando-lhe um aumento, que o ajudou muito naquele momento em sua vida.
Com a convivência das personalidades do meio literário e com a proteção de Maneco Almeida, permitira a Machado perceber o que queria do futuro e assim intensificou a colaboração em jornais, a composição de poemas e em seguida, a produção teatral.
Em 1858, já atua como revisor de provas no jornal Correio Mercantil, graças às apresentações de Maneco.
O primeiro conto de Machado foi Três tesouros perdidos, publicado no Marmota aos cinco dias do mês de janeiro no ano de 1858. Em 1860 estaria no Diário do Rio de Janeiro, apresentado por Maneco ao diretor do periódico, Saldanha Marinho, e ao seu principal redator, Quintino Bocaiúva.
Machado conhecia bem as referências intelectuais correntes, as da moda, e também se aprofundou em filósofos contemporâneos, como o alemão Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), poucos lidos em seu meio. Ele foi um autodidata.
Em 1864 lançou sua primeira obra em livro, a coletânea de poemas Crisálidas. Não alcançou grande repercussão, pois ainda não estava presente o gênio literário, que se manifestaria na prosa: crônicas, contos e romances. Foi o ano em que ele iniciou também a sua carreira como contista, publicando histórias no Jornal das Famílias, com vários pseudônimos.
Em 1866, vinda da cidade do Porto, em Portugal, chega ao Rio de Janeiro Carolina Augusta Xavier de Novais, irmã do poeta Faustino Xavier de Novais, amigo de Machado. Casaram-se em 1869, no mesmo ano em que ele fechava contrato com o editor Garnier, que publicaria toda a sua obra, para o lançamento de seu primeiro volume de contos reunidos, Contos Fluminenses. Em 1873 Machado fora nomeado para a Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, um emprego que lhe proporcionou estabilidade financeira até o final da vida.
Em 1884 Machado mudou-se para Rua Cosme Velho, nº 18, nas Laranjeiras, era um conjunto de casas que pertencia à condessa Mamede, viúva, que se casou com um irmão de Carolina de nome Miguel, e o aluguel lhe custava apenas cento e trinta mil réis mensais.
Em 1888, é condecorado pelo Imperador D. Pedro II, com a Ordem da Rosa, um mérito concedido às maiores personalidades do país. Em 1889, é indicado como diretor da Diretoria do Comércio na Secretaria da Agricultura, último posto da carreira.
A ascensão no funcionalismo público e a popularidade de sua literatura, garantiram-lhe uma prosperidade modesta, que só fez bem à sua produção.
Os romances e contos machadianos da primeira fase e anteriores ao ano de 1881, são românticos com histórias simples e interesses divergentes: orgulho versus amor, ambição versus piedade entre outros. Era visto como um passatempo superficial do público feminino da época, porém com um olhar mais crítico podemos dizer que Machado já se interessava pelas razões particulares e sociais que faziam com que as pessoas agissem de uma determinada maneira, do que pela ação propriamente dita.
As personagens desta primeira fase, não são estereotipadas e nem simples, nem há transparência dos símbolos do bem e do mal. E apresentam comportamentos imprevistos como Iaiá Garcia ou Guiomar da obra: A Mão e a Luva que estabelecem um plano para conquistarem seus futuros maridos, não por amor e sim por interesses.
Por isso há contradições entre o romance romântico em que o casamento era a cura para todos os males e fiador da ordem social. Machado via o casamento como uma espécie de comércio ou troca de favores. Era uma denúncia realista da vida brasileira na época.
Na segunda fase machadiana ao criar suas personagens nada lhes perdoa: as mesquinharias pequenas e grandes, as indecisões, a falsa devoção, a moral de fachada, as falsas virtudes, os interesses escusos, a caridade ostensiva, tudo enfim, que constituía o avesso de uma vida social digna e respeitável. E ao narrar as suas histórias, é cético quanto à sociedade brasileira e à natureza humana, mas o ceticismo machadiano apresentava ironia em frases curtas e de longo alcance, e como tal era muito eficiente como postura literária, que mantinha distância do leitor e do caso que estaca a contar, não havia envolvimento.
A calma, o ritmo pausado, a completa ausência da pressa na narração dos episódios são outra maneira de distanciamento. As ações são desenroladas lentamente e o narrador, as interrompe de modo para fixar a sua e a nossa atenção em elementos circunstanciais e periféricos. Como se a história parasse por algumas linhas ou capítulos. Tudo previsto para garantir distanciamento crítico.
Machado nunca esquece de que alguém está a ler seus escritos e sempre dirige a palavra a este leitor anônimo, geralmente tratado de “Tú”, como uma certa intimidade e condescendência. Tais referências diminuem e dificultam um envolvimento cego com a leitura e retardam o desenlace e desobriga o narrador de contar os episódios em sucessão cronológica, permitindo-lhe começar a história de um ponto qualquer e desenrolando acontecimentos que não precisam, serem narrados na mesma ordem em que costuma ocorrer na vida real. Desaparece qualquer linearidade da narrativa, por exemplo: pode-se narrar primeiro a morte da personagem, e só depois contar o seu nascimento. Portanto, as histórias se desfazem em fragmentos e pedaços, unidos um ao outro pelas intervenções do narrador.
A brasilidade machadiana evita falar de índios coloridos e tipos regionais e consiste na fidelidade em que o romancista traz para seus romances todo o ambiente da sociedade urbana brasileira, nos salões e grupos humanos do Segundo Império e dos primeiros anos da República.
Visto como o mundo carioca e brasileiro de uma sociedade arcaica, cujos hábitos antigos e cerimoniosos e cujas atitudes convencionais dissimulavam, na boa educação e nos modos polidos, toda a violência de uma sociedade escravocrata, em que o apadrinhamento e o “jeitinho brasileiro” solucionavam, sempre que necessário, as situações geradas por uma estrutura social assentada nos privilégios e numa divisão desigual dos bens.
Uma sociedade dura e sem piedade, preconceituosa quanto à cor e posição social, sem nenhuma tradição política, pois os dois partidos políticos: Conservador e Liberal, cumpriam a mesma função: sustentar o regime , o governo, o Estado. Mesmo a República, é vista, como simples mudança de fachada, pois os alicerces do tempo continuam os mesmos. Nesse sentido, Machado é profundamente brasileiro, desmistificando nossa fama de povo democrático e não violento.
Machado é o único que lemos em nosso idioma – o português – em sua obra ele perpetrou um português brasileiro, aquela com a qual aprendemos a identificar as coisas do mundo.
Ele é uma singularidade, como todo ser brasileiro, nem integrado nem à parte do mundo desenvolvido. Era um autor popular de sua época e o queria ser. E tinha a consciência de estar formando um público para uma literatura brasileira, explorando personagens, ambientes e situações brasileiras, pois os leitores estavam condicionados ao romance francês traduzido e aos grandes nomes da literatura portuguesa. E seus livros vendiam bem na Corte.
A musa da literatura machadiana seria a verossimilhança, algo que é semelhante à verdade. Algo que pode ser verdade, mas só por convencimento de que o seja. Ele nos coloca no interior e no confronto com o prodígio da ficção. A consagração do ser humano. Como se fosse a Nossa Obra. Uma maneira de denunciar que a realidade não engana, mas é a maior história criada pelo ser humano. E só pode ser real se forem muitas e que a nossa essência é criação.
Em 1889, Machado de Assis lança Dom Casmurro. Uma história de amor traído e ciúme, em que Bento Santiago, um advogado entre os 55 e 57 anos, narra seu namoro adolescente e casamento com Capitu e a acusa de havê-lo traído com Escobar, seu melhor amigo, nessa altura, já haviam falecido, assim como Ezequiel, que segundo Bento Santiago, Bentinho ou Dom Casmurro, não seria seu filho e sim, filho do adultério de Capitu e Escobar.
Mais de sessenta anos se passariam e só então os estudiosos alertados por uma crítica americana Helen Caldwell atentaram para a possibilidade de estarem lendo o livro equivocadamente, isto é, de não considerarem a possibilidade de Capitu ser inocente das acusações de Bentinho.
Em 1936, a crítica Lúcia Miguel Pereira, havia levantado essa hipótese de passagem, mas a convicção da infidelidade era tão forte, que ninguém havia se dado conta da revolução que Pereira sugeria, e que ainda estaria por acontecer no meio machadiano, apesar dela ter inclusive retornado ao assunto, em crítica de vinte anos depois.
E depois que a máscara de Bentinho foi denunciada, ele passou a ser conhecido também como um fantástico e ardiloso artífice da narrativa. A nova leitura metamorfoseou não apenas Dom casmurro, mas a imagem de Machado na Literatura Brasileira.
Carolina falecera aos 69 anos, aos vinte dias de outubro de 1904, depois de sofrer de um tumor nos intestinos.
Em 1908, Machado ainda escreveria Memorial de Aires e ao que parece, tenha admitido a Mário Alencar que na personagem Carmo há um retrato amoroso e meigo de sua Carolina.
Falecera aos 19 dias de setembro no ano de 1908, com um doloroso câncer na boca.
Segundo Luiz Antonio Aguiar, em sua obra Almanaque Machado de Assis dos 19 aos 39 anos, Machado foi um dos críticos mais produtivos na Imprensa Brasileira, mas aos poucos foi tornando-se escasso ou começara a ocupar espaços dentro da sua obra literária.
Para Aguiar, o leitor precisará de uma visita guiada, isto é, de um Guia para explicar os destaques, mas se o leitor quiser ir por si mesmo, é melhor conhecer o contexto em que a obra está inserida, com o quê e com quem estava à polêmica. Há trechos que ajudam a entender melhor as propostas estéticas, o que ele queria escrever e a descoberta de que maneira Machado ajudou o Brasil a ficar mais inteligente e a pensar sobre si mesmo.
Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea; é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura. (...) Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir de um escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
Instituto de nacionalidade, 1873.
O exemplo mais notório dessa lucidez é o ensaio Instinto de nacionalidade, em que Machado responde a algumas críticas que o acusavam de não privilegiar matéria nacional em sua Literatura. Buscavam nos dar uma tradição, em substituição à antiguidade da cultura européia, e por isso elegeram o indígena brasileiro idealizado, um herói de epopéias clássicas européias transportado para o nosso ambiente tropical, o que nem de longe se tratava de uma aproximação em relação à cultura indígena. O que Machado critica é a tendência a radicalizar essa moda, torná-la numa fórmula rígida para toda a Literatura, o que poderia empobrecê-la.
Por outro lado, era uma tentativa de nos fazer questionar essa relação que tínhamos com os países mais poderosos do mundo ocidental, de onde vinha grande parte da cultura que prezávamos. Caberia a nós rejeitar essas influências, ou buscar esse sentimento íntimo de que ele fala, e que poderia ser mais poderoso e profundamente nacional (um instinto de nacionalidade) do que o apego demasiado ao “assunto local”?
Outra crítica de Machado, fora o seu comentário de 1878 a O primo Basílio, de Eça de Queirós, o qual ele, além de alegar que haveria várias inconsistências no romance principalmente no caráter da protagonista, Luísa, critica a crueza que considera apelativa de algumas cenas do livro, dadas a título de retratarem a realidade da vida.
Eça compreendeu perfeitamente a bronca de Machado: não contra Eça em si, nem mesmo contra O primo Basílio, mas principalmente contra o Realismo, ao qual Machado achava que faltava sutileza e capacidade de construir tramas e cenas pela insinuação e ambigüidade e isso para ele era um crime de lesa-literatura.
Machado ora se reveste de uma camuflagem romântica, ora recorre à narrativa realista, invoca o fantástico, o delírio, a loucura, vale-se de experimentações na inusitada linguagem, combina técnica de romance, conto e prosa e tudo o mais que lhe pareça apropriado para potencializar sua história, para entregá-la com sabor e malícia ao leitor. Chamá-lo de Realista é tentar domesticar sua genialidade.
Enfim, seus ensaios críticos guardam revelações, esclarecimentos e tesouros inexplorados.
Lúcia Miguel Pereira, com a obra de intitulada Machado de Assis enfatiza que o autor não foi apenas um intelectual, ou um esteta, mas um homem em que o maior valor de sua obra está no modo de interrogar a vida. Interrogação que ficou sem resposta, pois não ousou ou não pôde ir até o fundo dos problemas, ou talvez, porque as perguntas não poderiam ser satisfeitas pelo gênero humano.
E para esconder essa incapacidade, ou a decepção preferiu sorrir, ficar de lado, com um ar de espectador desinteressado.
Uma atitude digna, mas que se assemelha a uma confissão de fraqueza. Uma atitude de demissionário e não de quem se manteve na superfície das coisas. Talvez, por pressentir a realidade trágica da vida é que ficasse horrorizado com o que via.
Há o sal de lágrimas e do sangue em seus livros, o sangue do homem sofredor, as lágrimas do desespero que se sabe inútil.
Olavo Bilac, in Gazeta de Notícias diz que Machado de Assis não odiou os homens, teve pena de todos eles, porque teve pena de si mesmo.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
AGUIAR, Luiz Antonio. Almanaque Machado de Assis: vida, obra, curiosidades e bruxarias literárias. Rio de Janeiro: Record, 2008.
COSTA, Pedro Pereira da Silva. Machado de Assis. São Paulo: Três, 2003.
LAJOLO, Marisa. Literatura Comentada. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1988.