LEMINSKI E A RECONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE CRUZ E SOUZA
MARCIA SANTOS DA SILVA
RESUMO
O presente artigo traz uma breve análise da forma como Paulo Leminski biografou a vida de Cruz e Souza, o maior poeta simbolista brasileiro, incompreendido por muitos e que não recebeu o devido mérito pela importância que representou (a) para a literatura brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Cruz e Souza, Paulo Leminski, Biografia, Autobiografia
INTRODUÇÃO
Cruz e Souza - O Negro-Branco. Leminski já instaura a polêmica desde o título conferido à biografia de Cruz e Souza escrita por ele, dando margem a leituras e interpretações diversas e ambíguas. Num primeiro contato, o leitor desavisado pode simplesmente inferir que Cruz e Souza renegava o sentido de pertença étnica associado ao desejo de ascensão. Em algumas biografias de cunho tradicionalmente histórico, escritores e críticos chegam a sugerir que em suas poesias estão as marcas e as imagens que denunciam essa atitude. Porém, ao adentrar a leitura do livro, o equívoco logo se desfaz. A imagem de Cruz e Souza descrita por Leminski é a de um homem que, apesar de ter sido criado e educado por brancos, já que fora “adotado como filho” pelos senhores de seu pai, trazia na alma inquietações e tristezas, além de determinação e inteligência para mudar ou pelo menos tentar, através de uma educação privilegiada, o curso da sua história e daqueles que como ele carregavam o estigma e a herança da escravidão. O fato é que Cruz e Souza sentia as “mesmas dores”, aflições e desesperança que atormentavam o corpo e o espírito dos cativos. Uma ironia na vida de um “negro retinto e branco.” Ironia que para Paulo Leminski “é a figura de retórica que traduz de maneira mais adequada a fala (poesia) do poeta simbolista, que diz uma coisa dizendo o contrário”. (LEMINSKI, 1983, P.9)
O objetivo desse artigo é analisar brevemente sob qual aspecto Paulo Leminski reconstrói a vida e a obra de João da Cruz e Souza.
Leminski: O biógrafo e suas lacunas
O biógrafo é aquele escritor que se deixa levar pelo desejo de conhecer o indivíduo com mais profundidade do que a sua obra deixa transparecer. Para Oliveira (2007), “o biógrafo é aquele que reconstrói e fornece do seu ponto de vista, uma compreensão das vidas de sujeitos, individuais e coletivas, em conexão com sua (s) obra (s).”
Leminski foge da escrita tradicional no que se refere à biografia, permitindo que lacunas sejam formadas e outras informações incorporem o texto, deixando de lado a linearidade e investindo de forma mais subjetiva na construção do discurso. Isso pode ser explicado em um fragmento que diz que “o essencial não é o fato objetivo, mas o sentimento” (ROUSSEAU apud HOISEL, 2006), ou seja, sai de cena o modelo convencional para dar espaço a um novo olhar, reconstrutor. Percebe-se que a sua intencionalidade ao decidir reescrever a biografia de Cruz e Souza não é produzir um retrato rico em detalhes acerca da vida e obra do biografado. Isso torna-se claro quando ele diz: “Não quero dar, nessas páginas, espaço maior à vida de Cruz do que o tempo que ele teve no espaço-tempo concedido aos animais deste terceiro planeta depois do sol”. (LEMINSKI, 1983, p. 37-38). Uma contradição já que a palavra biografia é traduzida como escrita da vida. Enquanto biógrafo ele conseguiu conectar-se ao seu objeto de investigação e até mesmo fundir-se nele, por meio das similitudes que entrecruzam suas vidas. Não só movido pela curiosidade, que é um dos fatores que leva um escritor a optar pelo gênero biográfico, como também, possivelmente despertado por um senso de reparação àquele que foi um dos maiores poetas brasileiros do período simbolista.
“O observador frio é substituído pelo ardente confessor” (LEMINSKI, 1983, p. 46), palavras de Leminski que podem ser usadas para traduzir a sua postura enquanto biógrafo; o poeta agindo na reconstrução de uma identidade, revelando viés de uma vida: Cruz e Souza. Leminski transita livremente entre vários nomes (Rimbaud, Baudelaire, Saussure, Ezra Pound, Camões, etc.), estilos e conceitos para compor a biografia de Cruz e Souza, imprimindo a sua marca pessoal de “poeta marginal”, já que, segundo Foucault (1992, p. 54), “O texto traz sempre consigo um certo número de signos que reenviam para o autor”.
VIDAS CONVERGENTES
Leminski era mestiço, pois sua mãe era negra e seu pai polonês, enquanto que Cruz e Souza era filho de negros, sendo que sua mãe era alforriada; originários do Sul do país, região predominantemente colonizada por europeus, graças à “política de branqueamento” disseminada pelo governo brasileiro, que nada mais era do que uma forma de atestar a “superioridade da raça branca”, fato que aumentava sobremaneira a discriminação, o preconceito e o deslocamento dos negros que eram vistos apenas como mão-de-obra. Cruz e Souza era a prova de que o negro não era provido apenas do vigor físico; ele era dotado também de uma invejável capacidade intelectual que despertou a admiração do cientista alemão Fritz Müller, adepto da teoria evolucionista de Charles Darwin, segundo Leminski (1983, p. 24). Ao seu turno, Paulo Leminski teve seus dissabores com a ditadura que oprimia o Brasil na década de setenta.
“Poetas marginais”, eles eram transgressores por não se enquadrarem nas regras vigentes na sociedade quanto à forma de escrever, de publicar, de sentir prosa e poesia e por não atenderem aos requisitos da classe formadora de opiniões em seu critério de seleção dos cânones. Eles acreditavam que os sentimentos transcendiam às palavras, por isso usavam símbolos e formas como meio de representá-los.
Pertencentes a diferentes gerações, biógrafo e biografado se encontram no terreno das afinidades, o que nas palavras de Couturier (1995:19 apud COUTINHO, 2004:176),
Atribui importância à dimensão comunicacional da obra e a concebe como uma troca entre dois sujeitos separados no tempo e no espaço, não tanto no nível dos conteúdos, mas da relação intersubjetiva, indicando duas práticas fundadas no princípio da comunicação textual que, para ele, colocam em questão a abordagem estruturalista e desconstrutivista e apontam o caminho da reabilitação do autor.
No trecho acima, entende-se que obra e autor adquiriram tamanha dimensão e importância para o atual contexto, que o biógrafo conferiu-lhe uma espécie de “passaporte de retorno”, autenticado e legitimado pelo cruzamento de suas vidas por meio da literatura e da história.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
Parafraseando Hall (2003, p. 338), o momento histórico é de valorização, de promoção de novas identidades e sujeitos, de reafirmação de valores que nem sempre estiveram/estão no centro, e sim, às margens, o que não significa dizer que tudo está resolvido e que a Terra finalmente “edenizou-se”.
As diferenças, em geral, exercem um fascínio sobre os pós-modernistas, principalmente no que se refere à questão étnica. Infere-se do texto de Hall (2003, p.339), que alguns incorrem no erro da espetacularização como forma de visibilidade racial; um jeito de parecer engajado diante de uma sociedade que ainda está aprendendo a respeitar o outro enquanto semelhante, embora diferente.
No caso de Paulo Leminski em relação à Cruz e Souza, o que se percebe é uma profunda identificação, uma releitura respeitosa de um significante “negro”.
O percurso feito por Paulo Leminski para reescrever a biografia de Cruz e Souza por uma vertente contemporânea e sob um olhar que escapa à tradição literária, revela a fusão entre sujeito e objeto de tal forma que um (o biógrafo) tem suas próprias vivências reveladas e refletidas na história do outro (o biografado).
Paulo Leminski, em sua escrita biográfica, ou até mesmo autobiográfica, pela postura convergente que tem diante do outro, proporcionou a Cruz e Souza a valorização identitária e autoral que lhe foi negada enquanto escritor, ser humano e porta-voz de uma minoria oprimida, uma forma de repúdio à exclusão, conferindo-lhe visibilidade positiva e ressignificada.
REFERÊNCIAS
COUTINHO, Maria Antônia Ramos.Os papéis do autor. In: Estampa de Letras: Literatura, Lingüística e Outras Linguagens. Salvador. Quarteto, 2004.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovnik. Belo Horizonte: Editora UFMG. Brasília: Representação da Unesco no Brasil, Págs. 335-348. 2003.
HOISEL, Evelina. Grande Sertão Veredas: Uma Escritura Biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006.
FOUCAULT. Michel. O que é um autor. Lisboa: Veja, 1992.
LEMINSKI, Paulo. Cruz e Souza – O Negro Branco. Coleção Encanto Radical. Editora Brasiliense, São Paulo, 1983.
OLIVEIRA, Fátima Maria de. Você, Eu sou Cruz e Souza: A (auto) Biografia do(s) Poeta(s) e o Cruzamento de Vozes Mestiças. Disponível em
www.abralic.org.br/enc2007/anais/50/1539.pdf extraído em 11/2009.