O Médico, o Monstro e o Mito

Alguém desconhece as histórias de Romeu e Julieta ou de O Médico e o Monstro? Bom, de ler mesmo os originais, poucas pessoas no Brasil devem conhecer. Mas talvez isso nem seja necessário, tamanho o número existente de adaptações para outras formas de expressão que não a literatura dessas duas obras. A essência, por assim dizer, delas é de domínio público e universalizado.

Para o leitor, lembrar-se de Romeu e Julieta deve ser ainda mais fácil, considerando o sem número de filmes e novelas que fazem uso da fórmula do casal proibido, eternizado por William Shakespeare em sua peça teatral datada de algum ano entre 1591 e 1595. Nem vou me alongar na descrição da história original ou sequer da sinopse que virou clichê para o cinema, para a TV, para a dramaturgia em geral, de tão conhecida e enraizada em nosso imaginário coletivo que é essa genial trama. Mas O Médico e o Monstro (no original, Dr. Jeckyll and Mr. Hyde) é muito mais conhecido do que talvez suponhamos ao primeiro pensamento sobre a obra. Sim, claro, se não muitas pessoas devem ter lido Romeu e Julieta no original, menos ainda devem ter lido o romance O Médico e o Monstro fora do Reino Unido. Trata-se de uma obra ainda mais recente historicamente do que a anterior, pois datada de 1886, de autoria do escocês Robert Louis Stevenson. Dada sua pouca idade, torna-se ainda mais surpreendente como a ideia básica de sua história enraizou-se em nosso imaginário e como foi repetida, relida e adaptada para diversas mídias ao longo dos últimos cento e poucos anos. Não consegue se lembrar? Do Incrível Hulk, de Stan Lee, ao Dr. House, febre entre as séries norte-americanas, essa história do cientista reservado e tímido que eventualmente se transforma em um homem cínico, agressivo, canastrão e mulherengo, de tão boa, tão forte em seu poder de identificação e fantasia, está em todo lugar.

Vale lembrar duas boas adaptações para o cinema, marcantes por motivos diferentes. Uma é O Testamento do Dr. Cordelier (Le Testament du Docteur. Cordelier, 1959), do francês Jean Renoir, o diretor preferido de seu conterrâneo, cineasta e estudioso de cinema, François Truffaut; nota-se que à parte das diferenças de forma ou cotneúdo esse filme é considerado uma das adaptações mais fiéis à obra de Stevenson. O outro é o fantástico – em mais de um sentido – O Professor Aloprado (The Nutty Professor, 1963), dirigido e estrelado por Jerry Lewis. Nesta hilária comédia e virtuoso filme – há que se conferir a eloquência da direção de câmera de Lewis, além do marcante uso do colorido –, um professor tímido e desajeitado cria uma fórmula química que o transforma na versão lewiseana do Mr. Hyde, mulherengo e confiante.

E por que citei até um personagem super-poderoso dos quadrinhos? Ora, não é o Incrível Hulk uma versão pop e, por assim dizer, literal do Monstro, alter ego do cientista tímido e reservado Bruce Banner? Violento, irracional e destruidor, o monstro verde é a versão hiperbólica do também destruidor da ordem social Mr. Hyde.

E Dr. House? Numa variação do mito, temos a junção em um personagem só do Médico – genial, um tando nerd e solitário – e o Monstro – anti-social, agressivo, irônico, ácico e, para quem acompanha a série, destruidor dos corações femininos.

Grandes histórias, arquétipos e mitos existem em (in)certo número, repaginados e relidos à exaustão. Talvez nem existam tantas histórias, novelas ou roteiros diferentes assim na história da arte, mas sim um grupo finito de tramas básicas em cima das quais trabalham os dramaturgos. E nisso não há demérito algum, não vai aqui qualquer juízo de valor. Até porque uma coisa só se torna clichê – essa palavra amaldiçoada – quando é muito boa e foi original em algum momento.

Temos grandes histórias, universais e imortais, na literatura e, mais longe ainda, nos mitos, nas fábulas e mesmo na Bíblia. Sim, pois seja nas parábolas do Novo Testamento ou nas histórias de caráter mítico do Antigo Testamento – com suas narrativas épicas, de violência, libertação, tragédia ou superação – temos umas das principais fontes para novas narrativas, adaptações diretas ou apenas inspiração à essência da história. Fato é que ninguém precisa ler A Arte Poética de Aristóteles ou entender consciente e intelectualmente de teatro ou dramaturgia para apreciar – o que requer sensibilidade – ou para criar boas narrativas – o que requer intuição, sensibilidade de alguma bagagem.