O LEITOR: A NARRATIVA TESTEMUNHADA PELA MEMÓRIA
*MARCIA SANTOS DA SILVA
RESUMO
O texto ora apresentado pretende expor brevemente aspectos da narrativa exibidos no filme “O Leitor”, relacionando ficção, história e memória.
PALAVRAS-CHAVE: Narração, Narrador, Memória, Filme, História
INTRODUÇÃO
A existência humana é perpassada pela narrativa, o que comumente conduz o narrador a recorrer à memória como forma de presentificar os acontecimentos. O ato de narrar é um modo de comunicar algo de que se tem conhecimento, ampliando o número de sujeitos envolvidos no processo comunicativo, de acordo com Segre (1989 p. 58).
Houve um tempo em que as experiências adquiridas ao longo da vida eram narradas oralmente pelas pessoas mais idosas, fazendo com que a cultura e as tradições populares se propagassem de geração em geração, alimentando dessa forma a história e a memória dos povos. Com o aparecimento de novas tecnologias, a tradição oral vem cedendo lugar a outras modalidades, entre elas, a narrativa audiovisual. Nesse percurso, o cinema tem provado sua eficiência enquanto veículo a serviço da comunicação, que, aliado à ficção, tem se mostrado uma ferramenta eficaz para conhecimento da história, pois, o filme serve como testemunha do momento que o produziu, para além de sua importância enquanto obra de arte.
No entanto, nem de longe isso tira a grandiosidade da oralidade cuja capacidade agregadora era (é) um importante mecanismo de promoção da coletividade.
SÍNTESE DO FILME
O filme alemão, “O Leitor”, do diretor Stephen Daldry, lançado no Brasil em 2009, teve seu roteiro escrito a partir de um livro homônimo. Stephen Daldry opta por narrar a história a partir do seu desfecho final, em flashback. Seu enredo combina memória, narrativa, ficção e história, contextualizando a vida do protagonista Michael Berg (David Cross e Ralph Fiennes), ao período que sucede a Segunda Guerra Mundial.
A passagem de um bonde leva Berg a “viajar ao passado” e mergulhar em suas memórias para rever por outro ângulo os momentos que imprimiram profundas marcas em sua vida. As lembranças o conduzem ao ano de 1958, em Neustadt, uma pequena cidade Alemã, quando, ainda adolescente se envolve emocionalmente com Hanna Schmitz (Kate Winslet). Essa angustiante relação irá marcá-lo para o resto de sua vida. Hanna era uma mulher jovem e experiente que lhe proporcionou suas primeiras experiências sexuais, uma espécie de ritual de leitura e sexo, sem, contudo demonstrar envolvimento afetivo, o que denunciava a existência de um mistério por trás de sua máscara de mulher bem resolvida. Um dia ela desaparece misteriosamente, sem deixar vestígios. Alguns anos depois, ao participar de uma assistência num julgamento como parte de sua formação em Direito, Michael Berg a reencontra no banco dos réus, sob a acusação de ser uma das responsáveis pela morte de pelo menos trezentas prisioneiras judias (1944), enquanto trabalhara como guarda no campo de concentração de Auschwitz. Ele assiste perplexo ao julgamento e se abstém de revelar um detalhe que poderia alterar o veredito: o fato de Hanna Schmitz não saber ler nem escrever e lhe ter sido imputada a acusação pelo preenchimento dos relatórios para a SS, o que viria a evidenciar a sua posição de comando sobre as demais guardas. A vergonha a silencia, o que termina por condená-la a prisão perpétua. Nesse momento, é possível perceber o caráter ambivalente de Hanna Schmitz: uma mulher aparentemente forte e decidida, capaz de socorrer e cuidar de um jovem estranho, mas, que ao mesmo tempo permite a morte de trezentas prisioneiras num incêndio, durante a marcha da morte; sua coragem de assumir o que fez e sua vergonha em admitir que era analfabeta; O prazer sensível e até ingênuo ao ouvir as leituras de Michael contrastando com suas atitudes grosseiras e desumanas.
Michael Berg passa a gravar livros em áudio e os envia para Hanna que consegue aprender a ler e escrever na prisão. Vinte anos depois Hanna consegue a liberdade, porém não chega a sair da prisão. Diante da frieza e do distanciamento de Michael que foi convocado para ajudá-la em seu retorno ao convívio com a sociedade sendo ele sua única ligação com o mundo externo ao ambiente prisional, Hanna comete suicídio. O filme termina no momento em que Michael leva sua filha ao túmulo de Hanna. A partir daí, infere-se que ao compartilhar com alguém seus segredos de uma vida, ele escreverá um novo capítulo em sua história.
NARRATIVA E HISTÓRIA
O filme, “O Leitor”, pode ser enquadrado na categoria de narrativa memorialista, pois, segundo Silviano Santiago (1989), “o narrador mais experiente fala de si mesmo enquanto personagem menos experiente, extraindo da defasagem temporal e mesmo sentimental a possibilidade de um bom conselho em cima dos equívocos cometidos por ele mesmo quando jovem”. Essa é a tradução para a postura de Michael em relação a sua vida ou ao que foi feito dela. Um homem que, sendo livre, viveu a maior parte do tempo preso ao passado.
Essa narrativa autodiegética (o narrador atua como personagem principal, nada menos que o protagonista), tem como pano de fundo o drama vivido por milhões de pessoas que vivenciaram o horror nos campos de concentração, provocado pelo nazismo, regime totalitário de Adolph Hitler. Portanto, “a história é um romance real” (VEYNE, 1995, p. 12), que nesse caso, adentra o campo da ficção para, “informar-nos sobre suas guerras e seus impérios”. (idem).
As diferenças sócio-econômicas, a crise nas relações familiares, o individualismo segregador, presentes na sociedade alemã do pós-guerra são algumas das questões abordadas no filme, uma espécie de mimese (imitação do real), embora algumas delas estejam sutilmente diluídas no texto fílmico.
A história narra eventos e para isso seleciona, simplifica e organiza fatos e acontecimentos (ibidem). Certamente, a intencionalidade do diretor ao produzir o filme “O Leitor”, não era simplesmente ficcionalizar um drama romântico, todavia, mostrar vários ângulos de uma narrativa conduzida pela memória, o que, segundo Silviano Santiago (1989, p. 48), “é uma visão do passado no presente, procurando camuflar o processo de descontinuidade geracional com uma continuidade palavrosa e racional de homem mais experiente”.
Como toda obra de ficção, o filme se caracteriza como um discurso polivalente e polissêmico. Uma das marcas do filme é o fato da narratividade se dá pelo viés da subjetividade. O narrador-protagonista conta sua história totalmente desprovido de distanciamento, pois “narra mergulhado em sua própria experiência” (Santiago, 1989, p. 39).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O filme “O Leitor” impressiona pela dimensão psicológica de sua narrativa e pela abordagem que dá aos fatos narrados, entrecruzando “realidades” diversas sob o signo da ficção.
Na lógica do filme, o ser humano é visto pelo ângulo do individualismo e do capitalismo que automatiza, escraviza e inibe sua capacidade de compartilhar histórias, conquistas e fracassos, o que vem ocasionando o desaparecimento das narrativas orais, outrora tão comuns entre os indivíduos.
Sem apelar para grandes efeitos especiais, “O Leitor” é uma obra prima da ficção historiográfica, pela intensidade cênica de seus atores, que, parafraseando Aristóteles, representam “encarnando” as personagens como se ali vivessem suas histórias particulares.
A proposta do filme dá margem a uma investigação mais minuciosa o que poderá ser feito num outro momento, já que esse artigo não tem a pretensão de esgotar a discussão.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Obras Escolhidas. In: Magia e Técnica. Arte e Política. Brasiliense. 3ª Ed. São Paulo, 1987.
SANTIAGO, Silviano. O Narrador Pós-Moderno. In: Nas malhas da letra. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SEGRE, Cesare. Narração/Narratividade. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 17. Literatura-Texto. Lisboa: INCM, 1989. Recenseado por Fernando Guimarães. In: Revista Colóquio/Letras.
VEYNE, Paul. Introdução. Apenas uma Narrativa Verídica. In: Como se escreve a História; Focault revoluciona a história. Brasília: Ed. UNB, 1995. P. 07-15.