A variação linguística em sala de aula
Jamille Araujo
Rozeli Amaral
Este trabalho foi investigado em salas de aula das escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio, na cidade de Miguel Calmon, tendo como instituições observadas, o Colégio Polivalente e o CENSC. As análises realizadas estiveram centralizadas no ensino da variação lingüística nas turmas de 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e 1º e 2º ano do Ensino Médio.
Diante das investigações científicas realizadas no intuito de analisar fenômenos de variações linguísticas que ocorrem nas diversas regiões brasileiras, as quais acabam comprovando que as mesmas não têm tido espaço em sala de aula devido ao preconceito impregnado nos seres humanos, tomamos a iniciativa de desenvolver uma análise para detectarmos como são trabalhadas as variações linguísticas no meio escolar, qual a análise realizada pelos professores de língua portuguesa, como a perspectiva regional é abordada e como o livro didático traz essa abordagem.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais fazem indicações para serem trabalhadas em sala de aula questões voltadas à variação, estabelecendo objetivos a serem alcançados por alunos do ensino de Língua Portuguesa. Conforme esses parâmetros devem-se “[...] utilizar diferentes registros, inclusive os mais formais da variedade lingüística valorizada socialmente, sabendo adequá-los às circunstâncias da situação comunicativa de que participa.” (PCN, 2001, p.41). Faz-se necessário também, que os alunos, além de conhecerem as variedades da língua, possam verificar a regularidade das diferentes variedades populares na conversação, reconhecendo os valores sociais nelas inseridos.
Apesar de haver bastante estudo voltado para o uso da língua, há uma maior necessidade de centralizar o tema para o seu emprego em sala de aula, ou seja, analisar a abordagem lingüística feita pelo professor, juntamente com os alunos, os quais tanto fazem uso e muitas vezes são vítimas de discriminação, preconceito e estão à margem do prestígio social. Nas instituições de nível superior, fala-se muito sobre o avanço da cidadania e a conscientização para que se trabalhem tanto a norma culta, quanto as variedades do dia-a-dia, porém o que se observa são abordagens superficiais sobre tais fenômenos linguísticos.
Dado o exposto, pretendemos com esse trabalho, investigar como os professores de Ensino Fundamental e Médio têm se posicionado diante do vasto conhecimento cultural e regional dos seus alunos, bem como, os procedimentos empregados mediante ao uso de variedades populares, gírias, dialetos (variações faladas por comunidades geograficamente definidas), idioletos (particular a cada indivíduo), socioletos (variações faladas por grupos socialmente definido) etc. Ressaltando a intervenção do professor quando os alunos utilizam expressões estigmatizadas. Tomando por base as discussões de Marcos Bagno (Língua Materna: Letramento, Variação e Ensino) e Rosa Virgínia (O Português São Dois; Contradições do Ensino de Português.).
Para atingirmos o objetivo do nosso estudo, pretendemos encontrar respostas às seguintes indagações: quais os procedimentos pedagógicos utilizados pelos professores do Ensino Fundamental e Médio para trabalhar questões relacionadas às variações linguísticas, variedades populares e as variantes dos alunos? Quais os espaços cedidos à oralidade nas aulas de Língua Portuguesa? E como o livro didático aborda a diversidade linguística. Com isso podemos conhecer a prática adotada por alguns professores, ao trabalhar as variações e assim, repensarmos o objetivo do ensino de Língua Portuguesa para os próprios falantes.
Com base nos estudos realizados por Rosa Virgínia Mattos e Silva em sua obra “Contradições no Ensino de Português”, há diversas variações fonéticas que se inter-relacionam com problemas ortográficos que se defrontam entre professor e aluno em todo o trajeto escolar. Esses aspectos são decorrentes das falas brasileiras tanto rurais, quanto urbanas, não-escolarizadas ou escolarizadas em grau elevado ou não. O que percebemos é a presença marcante das características da fala nos usos escritos, causando preocupação às várias instâncias elitizadas da sociedade, inclusive às escolas, que por vezes não dão a devida atenção às variações linguísticas.
“[...] hoje há um número significativo de professores que, certamente, não dominam o padrão preconizado pela escola; decorrente dessa realidade lingüístico-social, existe hoje, no interior da escola brasileira, variantes dialetais não só usadas pelos alunos, mas também pelos professores que, em diferentes graus, a depender da sua formação, da sua origem socioeconômica, da sua área regional, dominam o padrão idealizado pela escola e estacionado nas gramáticas pedagógicas.” (SILVA, 2001.p. 53)
Maria da Conceição Paiva, autora do artigo Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa, baseado em sua dissertação, publicado em 1984, coloca a diversidade dialetal como essencial não só para o ensino de português como também para a teoria lingüística. Porém não é esta a visão de muitos professores de Língua Portuguesa, uma vez que, buscam apenas seguir os padrões da gramática tradicional, impondo aos seus alunos uma língua à margem da sua realidade, causando-lhes seqüelas, como cita a referida autora: “A consciência das especificidades dialetais se estabelece muito cedo, de forma que os alunos que são falantes do dialeto estigmatizado tratam de substituir, desde cedo, por conta própria, suas formas estigmatizadas pelas aceitáveis.” (1984: 127-128)
Em decorrência dos fatos observados em aulas de língua portuguesa, em que o professor pouco trabalha a variação lingüística, fixando-se apenas nas diversidades regionais trazidas pelos próprios livros didáticos, Rosa Virgínia Mattos e Silva diz que
“Tanto os fatos que marcam classes sociais quanto os gerais que causam problemas na aquisição da ortografia pelos alunos têm que ser conscientizados pelos professores, no seu processo de formação profissional, para deles tornarem seus alunos conscientes e para, é claro, uma maior eficiência de sua atuação.” (SILVA, 2001. p.60)
Para a coleta de informações, foram realizadas observações e anotações, durante dez aulas de Língua Portuguesa, que serviram de base para uma análise mais aprofundada. Estaremos relatando o que observamos durante as atividades da disciplina, as quais foram desenvolvidas nas instituições referidas anteriormente. Durante o processo de observação, estabelecemos uma reflexão sobre o ensino das variações linguísticas, acerca do trabalho realizado e à maneira como o aluno interage contribuindo ou não, para a diversificação linguística em sala de aula.
Com relação à metodologia do professor, procuramos focar se o seu trabalho visa a realidade do aluno, se o currículo interage com essa realidade, se os textos trabalhados possuem essa variedade linguística e como o mediador intervém quando os alunos expressam por meio da oralidade ou da escrita, essa linguagem desprestigiada pela sociedade culta. De acordo com o público alvo o qual observamos, nota-se que se trata de jovens que apresentam marcas linguísticas características da região em que residem, ou seja, das comunidades rurais e interioranas do Estado da Bahia.
Observando as práticas pedagógicas dos professores, notamos que o objetivo se resumia em ensinar a linguagem baseada na gramática da norma culta, buscando mudar aquela que o aluno já traz de sua realidade vivida, ou seja, transformar a maneira de falar dos alunos. Na explanação dos assuntos, percebia-se uma ênfase na pronunciação “correta” das palavras proferidas pelo professor no intuito de que a partir da observação, os alunos pudessem adquirir para si, aquela linguagem. Para confirmar, Mateus Haensch diz que “O contexto escolar e o sistema não têm permitido o desenvolvimento integrado de suas competências: a de falante e a de sujeito da comunicação. Salvo raríssimas exceções, os professores têm basicamente formado indivíduos com estatuto de observadores da produção verbal. (HAENSCH,1985. p.353)
Verificamos também, que durante as aulas, a maior preocupação estava centrada no ensino da norma padrão, e, para tal, utilizava-se exemplos distantes da realidade do aluno. Isso ocorre, “[...] devido a ausência do trabalho com a diversidade linguística e o plurilinguismo de certas comunidades, fatores que deveriam ser cultivados, não só para favorecer o desenvolvimento da expressão oral, como também para não criar bloqueios na comunicação escrita e oral no futuro.” (SILVA, 2004. p.26) A única diversidade abordada, era a regional, trazida pelo próprio livro didático, com variações dos diferentes Estados brasileiros. Segundo informações dos professores, algumas temáticas também eram trabalhadas, a exemplo de textos contendo gírias e linguagem coloquial para que os alunos identificassem e debatessem a respeito.
Atualmente existem muitos livros, os quais fazem menção às variantes linguísticas, de maneira bastante produtiva, como é o caso de “Português: Língua e Cultura", de Carlos Alberto Faraco. Como o próprio livro explicita:
do ponto de vista da qualidade lingüística, todas as variedades se equivalem: lingüisticamente não há uma variedade melhor, mais bonita, mais certa do que a outra. E isso porque todas são igualmente organizadas e atendem às necessidades dos grupos que as usam. (...) algumas vezes acontece que a diferença se transforma em discriminação e as pessoas de fala diferente passam a ser alvo de pesados preconceitos sociais, como aconteceu, por exemplo, com os nordestinos que migraram maciçamente para o centro-sul do país em meados do século XX. (...) as diferentes variedades sociais se equivalem do ponto de vista da qualidade lingüística porque todas são igualmente organizadas (todas têm gramática) e são funcionalmente adequadas para os grupos que as usam. [Grifos do autor] (pág. 107)
Observemos uma questão retirada do referido livro didático:
Aí, Galera
Jogadores de futebol podem ser vítimas de estereotipação. Por exemplo, você pode imaginar um jogador de futebol dizendo "estereotipação"? E, no entanto, por que não?
- Aí, campeão. Uma palavrinha pra galera.
- Minha saudação aos aficionados do clube e aos demais esportistas, aqui presentes ou no recesso dos seus lares.
- Como é?
- Aí, galera.
- Quais são as instruções do técnico?
- Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho de contenção coordenada, com energia otimizada, na zona de preparação, aumentam as probabilidades de, recuperado o esférico, concatenarmos um contragolpe agudo com parcimônia de meios e extrema objetividade, valendo-nos da desestruturação momentânea do sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada do fluxo da ação.
- Ahh?
- É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça.
- Certo. Você quer dizer mais alguma coisa?
- Posso dirigir uma mensagem de caráter sentimental, algo banal, talvez mesmo previsível e piegas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões, inclusive, genéticas?
- Pode.
- Uma saudação para a minha progenitora.
- Como é?
- Alô, mamãe!
- Estou vendo que você é um, um...
- Um jogador que confunde o entrevistador, pois não corresponde à expectativa de que o atleta seja um ser algo primitivo com dificuldade de expressão e assim sabota a estereotipação?
- Estereoquê?
- Um chato?
- Isso.
(Luís Fernando Veríssimo – Correio Braziliense, 13/05/1998)
1. O texto retrata duas situações relacionadas que fogem à expectativa do público:
a)A saudação do jogador aos fãs do clube, no início da entrevista, e a saudação final dirigida à sua mãe.
b)A linguagem muito formal do jogador, inadequada á situação da entrevista, e um jogador que fala, com desenvoltura, de modo muito rebuscado.
c)O uso da expressão "galera", por parte do entrevistador, e da expressão "progenitora", por parte do jogador.
d)O desconhecimento, por parte do entrevistador, da palavra "estereotipação", e a fala do jogador "É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça".
e)O fato de os jogadores de futebol de futebol serem vítimas de estereotipação, e o jogador entrevistado não corresponder ao estereótipo.
(pág. 112)
Outros como, "Português – Literatura, Gramática, Produção de textos", de Leila Lauar Sarmento e Douglas Tufano, possuem atividades que se limitam a identificação das marcas vocais da variedade em questão, bem como a construção da imagem do falante. Podemos analisar a seguinte questão presente no livro, retratando o que foi citado anteriormente.
1. No diálogo transcrito a seguir, um dos interlocutores é falante de uma variante do português que apresenta uma série de diferenças em relação ao padrão culto. Identifique, na fala desse interlocutor, as marcas formais dessas diferenças e transcreva-as. A seguir, faça uma hipótese sobre quem poderia ser essa pessoa (sua classe social e grau de escolaridade).
Interlocutor 1: Por que o senhor acha que o pessoal não está mais querendo tocar?
Interlocutor 2: É...a rapaziada nova agora não são mais como era quando nós ia, não senhora. Quando nós saía com o Congo, nós levava aquele respeito com o mestre que saía com nós, né? Então nós ficava ali, se fosse tomar arguma bebida só tomava na hora que nós vinhesse embora.
(pág. 181)
Os alunos observados eram na maioria oriundos da zona rural. Contudo, a linguagem utilizada tanto por esses, quanto pelos da cidade, trazia resquícios da linguagem de seus ambientes cotidianos, e a mesma não apresentava muita aproximação com a linguagem da norma culta. No entanto, pouca discussão havia em torno dessas questões linguísticas.
Sentimos a ausência de uma atenção voltada para as abordagens reais da linguagem utilizada pelos alunos, privilegiando principalmente, a variedade da região em que a escola está instalada. Percebemos que essa situação às vezes chega a ser constrangedora para o aluno, quando o mesmo percebe que a sua fala pode estar carregada de diferenças, as quais a escola encara como erros. Diante disso, Mary Kato (1993) nos diz que
“É necessário entender por que os estudantes escrevem como escrevem e porque a língua dos textos escolares, para as camadas que vêm de pais iletrados, pode parecer tão estranha... O Brasil apresenta assim um caso extremo de ‘diglossia’ entre a fala do aluno que entra para a escola e o padrão que ele deve adquirir”. (p. 20)
Segundo BAGNO, (1999; 2000 p. 70), “[...] ao professor de língua portuguesa cabe apresentar os valores atribuídos a cada variedade lingüística”. Partindo desse pressuposto, detectamos que as escolas, os professores de língua materna e os livros didáticos atribuem pouco valor a essa variação no ensino de língua, limitando-se às regionalidades e não contribuindo para o combate do preconceito impregnado e do pessimismo quanto ao desenvolvimento da língua e da suposta “dificuldade” em entendê-la.
Diante do que foi observado, há uma necessidade que os professores de Língua Portuguesa percebam a importância de se trabalhar as variantes linguísticas, fazendo uma discussão acerca das questões sócio-econômicas e históricas que interferem na diversidade linguística e na maneira como ela é trabalhada. Na visão de BAGNO (2004), não existem formas de pronunciar mais corretas que outras e sim uma variação no modo de falar que difere conforme a época, a faixa etária, a localidade geográfica, a condição social/cultural, etc.
Dessa maneira, entende-se que a língua como meio de expressão é heterogênea e diversificada, possibilitando diversas formas de comunicação. Sua variação se dá, devido à divisão social, ou seja, a variedade do “popular” e do “culto” que causam consequentemente interferência na linguagem oral e escrita, transformando a enunciação em estereótipos de “certo” e “errado”.
Com o advento da tecnologia, o professor pesquisador tem a vasta possibilidade de trabalhar as variedades linguísticas de maneiras diversificadas e interessantes, até mesmo com o suporte de alguns livros didáticos que abordam muito bem essa temática, porém o que dificulta esse desempenho é a má formação do docente e o despreparo em sala de aula.
REFERÊNCIAS
BAGNO, M. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz.? 7. ed. São Paulo: Loyola,1999.
BAGNO, Bagno; STUBBS, Michael; GAGNE, Gilles. Língua Materna: Letramento, Variação e Ensino. São Paulo: Parábola, 2002.
BORTONI-RICARDO. S. M; DELTTONI, R.do V. Diversidades Lingüísticas e Desigualdades Sociais: Aplicando a Pedagogia Culturalmente Sensível.In: COX, M. I. P; ASSIS-PETERSON, A.A. de. (Org.). Cenas de Sala de Aula. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2001.
MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 2001.
MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e segundo ciclos do ensino
fundamental: língua portuguesa. 3 ed. Brasília: MEC/SEF, 2001.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. O Português são dois: novas fronteiras, velhos problemas – São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
______. Contradições do Ensino de Português. São Paulo: Contexto, 2001.
HAENSCH, Mateus M. et al. Ensino Do Português Como Língua Materna, In: Actas Do Congresso sobre a Situação. op cit Lisboa: Instituto de Língua e Cultura Portuguesa, 1985. Disponível em: <http://www.assis.unesp.br/eela/volume1.htm>. Acesso em: 5 agos. 2009.